Divagando no escuro escrita por Agama


Capítulo 3
Luz Vermelha




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Elza amava Manuel. Isso era indubitável. Sempre que ela olhava para a pele morena de seu amado, calafrios percorriam seu corpo e seu interior se preenchia de desejo. O inverso também era verdadeiro. Era um amor mútuo e perfeito. E tal amor seria celebrado hoje.

Ele preparava há dias este jantar. Teria que ser perfeito, digno das bodas de cristal do casal. Quinze anos não é para qualquer relacionamento. É preciso ter firmeza e reciprocidade. É necessária cooperação total de ambos os indivíduos para o encaminhamento correto da relação. E óbvio, muito amor. Manuel passara a noite toda arquitetando o que seria o momento de suas vidas. Ele tratou de conseguir o prato favorito de sua amada, este já servido na mesa ao redor de diversos outros aperitivos e secundários. O vinho era da melhor qualidade e as taças já estavam dispostas em ambos os lados da mesa. Naquele momento, Manuel servia a taça de Elza com cuidado e atenciosidade.
Mas o principal de tudo, o grande objetivo, era sem dúvida o grande sonho dela se concretizando. Um jantar romântico, tematizado e decorado todo de vermelho. Qual cor poderia ser mais sensual do que o vermelho, não é mesmo? Que matiz mais primorosa poderia despertar mais as necessidades carnais do ser humano? Atiçador das sensações, despertador da paixão. A sala de estar estava preenchida pelas luzes vermelhas que invadiam todo o aposento. Ela, com um apertado vestido rubro e saltos altos; ele, com um fraque negro e adereços de cor carmim, sapatos formais, tudo da mais alta grife. Enquanto servia Elza, Manuel tece uma conversação:

— Está ansiosa, querida? - Pergunta o marido, despejando o líquido no recipiente.

— Você já sabe que estou. - Ela sorri, atraindo o olhar do moreno para seus lábios carnudos e vermelhos. - Estamos programando isso a dias.

— Sim, com certeza. Vou ligar a música e logo começaremos o jantar.


Manuel põe a garrafa em sua posição original na mesa e vai até um criado-mudo próximo. Acima do mesmo, um rádio é sintonizado em uma estação específica. A música começa a tocar e entrar nos ouvidos de todos no aposento.


"Telhado agora é porão tira de cima de mim esse pedaço de pedra...

 


— Podemos começar? - Pergunta o homem, sentando-se em sua mesa. A mesa era grande, algo estranho, pois os dois estavam a uma distância considerável um do outro. Elza começa a servir-se, mas Manuel intervem. - Você sabe que te amo, não é?

— Como não saberia? Olhe tudo que fez, ficou tão perfeito, tão... eu não tenho palavras. Tanto vermelho, tanto glamour. Eu fico tão excitada. - Ela sorri um sorriso devasso e provocante.

— Vamos comer primeiro. E então, eu me entregarei de corpo e alma pra você. - As velas vermelhas tremulavam levemente com a brisa da noite.

— Foi bom termos saído da cidade, não é? Aqui é tão tranquilo, pacífico. Ninguém pode atrapalhar nosso momento.

— Bom, a cidade não é de toda ruim. Eu nunca teria conseguido o prato principal, não fosse minha ida no centro.

— Me surpreende você ter encontrado algo tão específico em meio a toda aquela baderna.

— Nada muito trabalhoso. Por você, nada é, meu amor.

— Você é sempre tão atencioso comigo. Desde que nos conhecemos, você não mudou nada. Lembra? Há 15 anos. - Ela fala, suspirando.

— Eu lembro de você me olhando no campo, depois dos treinos. Você era a mais linda daquela arquibancada. - Ela sorri, aparentemente corada, mas era praticamente impossível de distinguir diante as luzes rubras.

— E já fizemos tantas loucuras, desde então.

— E eu não me arrependo de nada, linda. - Ele ratifica.

— Nem da Nair, Manuel? - Elza fica completamente séria e com um olhar frio e ameaçador. Sua voz diminui de tonalidade enquanto ela encara o marido. O mesmo também fecha a expressão ao escutar tais palavras.

— Você sabe que isso não significou nada pra mim, Elza. O que você quer que eu fale?


"Quem tem cadarço não sobra

Quem tem um pão pra comer..."


O ritmo da música se acelerava ao passo que a discussão se acalorava.


— Você comeu ela, com vontade, seu cachorro! - Ela joga um dos garfos no seu cônjuge. Ele desvia com rapidez, agora com uma expressão de raiva na face. Ele se levanta da cadeira.

— O que você quer que eu diga? Hein? Sim, eu comi ela. Sim, ela era gostosa pra caralho. - Seu semblante começa a relaxar à medida que o mesmo se senta. - Mas ela não significou nada pra mim. Eu juro. Vamos... vamos apenas comer, amor? - Ele fala num tom tenro e suave. Elza sorri.

— Está certo. Você está completamente certo, desculpa, querido. Vamos comer. A noite é como uma criança, tem que ser bem degustada. - Ele levanta e pega o garfo caído no chão, limpando-o com um guardanapo, por educação, devolvendo-o logo em seguida.

— Vamos começar pela coxa? - Ele fala, cutucando o prato principal.



Ambos mantém-se parados por um tempo. Olhando para aquela farta refeição. O vermelho das luzes realmente acendia algo dentro deles. Amor, raiva, paixão, ódio. O limiar que separa esses sentimentos é extremamente delicado. E mais delicado ainda é o desejo de alimenta-los. Sob a luz carmesim, Manuel levanta da mesa e com velocidade, toma Elza em seus braços e beija sua dulcineia com tesão incomparável. O vermelho ardia e fervia as almas dos amantes. Almas essas que com certeza hão de ferver ainda mais no futuro. Eles se deleitam um do outro com êxtase febril. Manuel arranca as roupas de Elza e em cima da mesa, sacia seus mais íntimos desejos. O sexo consome o pouco tempo, os míseros quatro minutos que eles tinham conseguido na negociação. Até a porta ser arrombada.

"Olha, não tem ninguém na praça"

Policiais adentram o recinto.

"Só tem um sol sem graça"

— Eles mentiram! Malditos selvagens, eles já a mataram... - Dizia um dos policiais, visivelmente furioso.

Eles encontram Elza e Manuel, nus, abraçados um ao outro, próximos à mesa. Em cima da mesma, membros de o que parecia ser uma criança, desmembrada, aparentemente cozida e disposta numa bandeja do que seria claramente cor de prata.

"Não tem ninguém para ver e contar"
 

Não fosse o vermelho das sirenes do lado de fora da casa, iluminando a macabra antropofagia, iluminando toda aquela escória da raça humana.

 


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Notas finais do capítulo

sweet dreams.



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