A Voz escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Não sigo a religião católica e não tenho completo domínio de seus dogmas e tradições. Peço perdão por quaisquer equívocos cometidos na história.



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Gabriel sempre gostou do seu próprio nome.

Nome bíblico, forte, comum. Fácil de se pronunciar. Mas não era nenhum desses adjetivos que o fazia gostar de seu nome. Gostava da história por trás: ser um nome de anjo.

Era isso o que sua mãe sempre lhe dizia: que ele era um anjo. Gabriel sabia o motivo disso. Não era porque ela esperava um bebê há muito tempo, ou qualquer história bonita que se dá ao nascimento de uma criança. Na verdade, era pelo contraste que a sua história tão sem graça tinha com outra. A história do seu irmão.

Sabia que seus pais sentiam falta de seu irmão.

E talvez fosse por isso que Gabriel sempre teve a obsessão com a ideia de Deus. Em sua casa, todos pareciam adorar um diferente. Seu pai aconchegava-se na poltrona, para dar graças aos deuses da mídia, depois de um longo dia de trabalho. Seu irmão perdeu-se na tentativa de fugir da própria realidade e encontrar Deus em substâncias químicas. E sua mãe encontrou uma saída na fé católica.

Vivendo sob a vista do Cristo Redentor, por muito tempo acreditou que aquele era o Deus que a sua mãe tanto adorava. Não demorou até que a suas limitadas faculdades mentais infantis começassem a gerar uma nova obsessão: ouvir a voz de Deus.

A voz de Deus que tanto se pregavam nos templos. Nunca a ouviu. Só ouvia voz dos homens que tentavam emular as palavras e ensinamentos. Mas, no final das contas, eram isso: homens. E nunca deixariam de ser.

Talvez por essa razão que importunou a sua mãe até irem ao Cristo. Mas, ao chegar lá, não ouviu a voz de Deus. Só barulho, o vento, conversas, flash de câmeras. Nunca havia estado dentro de uma multidão tão vasta, mas, ao mesmo tempo, nunca se sentiu tão sozinho.

Os anos passaram, e chegou a idade de ir para a escola. Aprendeu tantas coisas, coisas novas e que nunca imaginaria existir, mas nunca tirou da cabeça a vontade de ouvir a voz de Deus. A voz d’Ele poderia estar em algum canto do universo? Ou na ciência das palavras? Talvez nos números, ou em algum lugar no tempo. Não sabia, mas sabia que não a escutava, por onde quer que procurasse.

Tinha um buraco dentro do seu peito do tamanho da sua saudade.

Saudade de algo que nunca teve. Nunca conheceu.

Foi quando chegou ao ensino médio e passou a ter aulas de filosofia que então se decidiu: queria se tornar padre. Achou que uma vida inteira dedicada aos ensinamentos e à igreja seria a sua passagem para ouvir a voz de Deus.

Entretanto, o caminho não fora assim tão fácil. Teve de resistir às tentações. Teve de se matricular em uma faculdade de filosofia. Teve de ouvir homens falando sobre assuntos humanos, o qual não tinha o menor interesse. Gostaria de ouvir Deus falando sobre assuntos divinos.

Da maneira em que se aplicou naquilo, passou os quatro anos da faculdade como um espaço em branco. Não fez amigos, não criou novos pensamentos. Estava focado em apenas um objetivo. E conseguiu. Ou achou que conseguiu, quando entrou ao seminário.

Mais quatro anos em que estudou e dedicou-se à palavra do Senhor. Ou pelo menos em sua maior parte. Fez poucos amigos, e, nas poucas vezes que voltava para casa, não via grandes diferenças. Sua mãe rezava com cada vez menos fé, e o seu pai tinha uma televisão quase inversamente proporcional ao tamanho da fé dela.

Começara a se perguntar se seus colegas de seminário estavam ali para também ouvir a voz d’Ele.

E esse questionamento lhe despertou sentimentos. Sentimentos que nunca conheceu, como a vergonha. Tinha vergonha de não ter escutado a voz divina. Vergonha de, depois de uma vida, ainda não conhecer o Deus que servia.

Foi essa vergonha que lhe motivou a confessar isso ao seu professor preferido. Pensou que seria expulso, no mínimo. Mas, em vez disso, recebeu um sorriso.

— Você conhece Deus, Gabriel. Ele também é você, mas você não é Ele.

Não soube reagir com aquela resposta. Em todas as suas orações, recebia o silêncio. Em todas as suas leituras, encontrava metáforas que não lhe cabiam. E quando olhava para o espelho, via uma pessoa. Um homem.

Um homem falando sobre coisas de homens.

Talvez, e só talvez, esse Deus que ele procurou por tanto tempo nunca existiu.

Aquele era o limite de sua fé. E sentiu-se triste porque dali para frente era só descida. Lentamente desacreditando e fazendo longos questionamentos sobre o que havia feito da sua vida.

Gostaria mesmo de ser padre? Poderia amar tanto assim alguém que esteve por tanto tempo em silêncio?

Pensou em abandonar o seminário, guardar na gaveta o seu mais antigo sonho e buscar por novos horizontes, respirar novos ares. Mas acabou por racionalizar o irracionável, e percebeu que já tinha quase trinta anos e não sabia fazer basicamente nada a não ser aquilo.

Já quase não era mais homem, então. Se tornou algo diferente. Algo mecânico.

De modo mecânico terminou o seu tempo no seminário. Se tornou diácono e só então começou a viver o seu sonho. Só que não parecia um sonho. Não. Seu sonho agora estava longe. Distante. Mais do que nunca. Sonhava em estar em outro lugar, em outro tempo. Ser outra pessoa.

Mesmo assim, tornou-se padre, finalmente. Padre em uma igreja pequena, na cidade em que nasceu.

Uma cidade em que o Cristo Redentor deitava o olhar, mas as pessoas eram sujas. Sujas de dentro para fora. Onde pessoas confessavam os seus pecados e que não pareciam buscar por espiritualidade, apenas por absolvição moral.

Gabriel encontrou um novo sentimento. Nojo.

Nojo daquelas pessoas. Daquela cidade. Nojo até de si mesmo, exercendo aquele trabalho que já quase não mais acreditava. Acabou por se tornar mais um homem tentando emular a voz divina, mas que no final era como todos os outros: um homem falando sobre assuntos humanos.

Todos os dias sentia pena de si mesmo, e depois da última missa, fechava as portas e se guardava em quietude, para rezar. E todos os dias, alguém batia à porta, no mesmo horário. Sempre alguns minutos depois que Gabriel trancava tudo.

Nunca abria.

Não precisava de mais pecadores.

A cada fim do dia, encontrava a si mesmo voltando a ser menino e rezando baixo, pedindo para ouvir a voz de Deus. Não tinha mais a mesma fé de quando era menino. Acreditava menos a cada nova oração.

E assim os dias se tornaram semanas, e as semanas em meses, e os meses em anos.

Fechava a igreja e recolhia-se. Costumava esperar alguém bater na porta, ouvia as três batidas usuais e então começava a rezar.

Repetiu essa mesma rotina tantas vezes que acabou por não conseguir mais diferenciar um dia do outro.

Até que um dia cansou-se.

Assim que a última missa terminou, trocou os mesmos apertos de mão de sempre, mas rezava em silêncio. “Se houver algum Deus aí em cima, me perdoe. Mas esse é o meu limite”.

Esperou que todos fossem embora. Esperou o horário de fechar as portas e, desta vez, fez o contrário. Mas algo aconteceu que lhe impediu de sair. Algo quebrou o silêncio. Algo se fez ouvir.

E quando abriu a porta, não viu uma gloriosa luz vinda de uma nuvem no alto do céu.

Viu o pai, a mãe e o filho. O homem, a mulher e a criança. Viu dois que se tornaram um. Um que voltou a ser dois. Viu a mim. Viu a você.

Imagem e semelhança.

A voz de Deus.


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