Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 13
Apoteose aos Caídos


Notas iniciais do capítulo

Entramos então na reta final do desafio! Assim, nestes últimos dez dias vou postar os capítulos que faltam. Espero que gostem!



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Matriesse — Abreviação da antiga expressão da região de Vogma “Matri Savariesse”, traduzida à letra como “A todos olharemos”. Num grupo, servia para significar união, tendo como expressão idiomática equivalente “Um por todos, todos por um”.

Dois anos se tinham passado desde que o Matriesse abandonara porto naquele lusco-fusco de fim de tarde. O pequeno barco avançava por cima das poucas nuvens de uma manhã de Verão em direção a Sudoeste, em calma perseguição a um zepelim roubado de uma empresa de transportes aéreos.

Leanor queixara-se e resmoneara face à proposta. Não gostava de fazer trabalhos para gente muito “oficial”, detestava burocracias e queria-se livre de legislações e contratos formais. Era tão mais fácil, tão mais simples perseguir recompensas e inimigos de gente à margem da lei: tragam-me aos pés o gajo que me roubou um barco da frota e levam o vosso peso em ouro. Saqueiem aquele clã anti Confraria, fiquem com o que eles tiverem, e sobem na lista dos requisitados para serviços. Não que o Matriesse precisasse de subir na lista — já estavam quase no topo.

Mas as empresas temiam-nos e precisavam deles, logo pagavam melhor. Não sabiam os sistemas da Confraria de Clãs, ou o ambiente em que trabalhavam. Consideravam-nos assassinos a sangue frio com contactos temíveis e métodos de fazer exercer a sua própria lei, e preferiam pagar-lhes a lidar com as consequências — fossem estas quais fossem.

O que também significava que o desinteresse de Leanor atingia níveis inimaginavelmente altos. A adrenalina escasseava, o desafio era pouco. Uns ladrõezinhos reles, um grupo de funcionários da empresa que se fartou do emprego e decidiu roubar um zepelim, provavelmente para o vender a peças num mercado negro qualquer. Que aborrecido seria.

Já a Teresa, as mãos suavam-lhe de excitação enquanto batia o pé nervosamente, apoiada na parede do convés. Por ser algo a que a irmã pouca importância dava, concedeu-lhe a que os acompanhasse e, se necessário, desse cabo de alguém. Ainda que Leanor garantisse que iria ser fácil, a ansiedade engolira-a — se falhasse naquilo, que era tão simples aos olhos de Leanor, como conseguiria ganhar a sua confiança depois? Assim que avistou uma ponta da elipse opada do zepelim, rúbea e traçada a cordas e cabos de ferro, assobiou para avisar os restantes. Savira rodou o leme e puxou a manivela para dar velocidade ao barco, e traçou rota para o flanco enquanto todos os outros surgiam das cabines, cintos e casacos de couro e cabedal recheados a armas de fogo e lâmina.

— Pronta? — Teresa ouviu a voz da irmã, e soube que era para si. Assentiu.

Um grito de Savira a partir do leme, e sabiam que estavam em posição. Foi uma questão de segundos até o Matriesse estar próximo o suficiente para saltarem nas muradas do convés para as cordas entrançadas mais próximas, de onde desceram até às cabines.

Tudo o resto foi mais frenético do que poderia ter antecipado.

Para um grupo de empregados desertores, o grupo de duas mulheres, dois homens e um adíade que pilotavam o veículo roubado deram mais luta do que seria de esperar. Estavam pobremente armados, com o tipo de caçadeiras de engrenagens de fraco alcance e fraca potência que os lojistas impingiam aos inexperientes, mas disparavam com um fervor de quem não iria abaixo sem luta. Notou que durante a guerrilha uma das mulheres se esquivou para os compartimentos mais recuados, e decidiu segui-la. Seria ela a apanhá-la, conseguiria provar que era tão capaz como os outros.

Seguiu-a em pés de lã até ao fundo do corredor, onde a mulher empurrou a custo uma pesada porta de ferro e seguiu para o interior. Ao entrar também, viu-se num compartimento coberto de um labirinto de máquinas, engrenagens, cabos e tubos. Chegara à casa das máquinas do zepelim, e não esperaria mais. Atirou-se à mulher por trás, jogando-a ao chão e conseguindo desferir alguns golpes na cara dela enquanto ela tentava, sem sucesso, socá-la também. Debateram-se por meros minutos, até Teresa decidir que já chegava, e lhe soltar uma das mãos para alcançar a adaga no cano da bota.

O seu maior erro, que até hoje via e revia e martelava todas as maneiras de que o podia ter evitado. Aproveitando-se da abertura, a outra alçou o braço e puxou a primeira coisa em que a mão tocou — calhou ser um tubo do líquido de refrigeração das máquinas, que esguichou como uma mangueira de pressão diretamente para os olhos da rapariga.

A sua única sorte foi a de a mulher não ter aproveitado o facto de que se jogou para o chão agarrada aos olhos a contorcer-se e a soltar gritos aflitos de dor, para a atacar de volta. Não, a outra já estava demasiado assustada, envolta de um pânico tal que queria apenas fugir. Conseguiu passar pelos piratas do Matriesse apenas porque estes, alertados pelos gritos de voz conhecida, ignoraram a sua presença e correram para a casa das máquinas. A mulher não voltou à zona principal do navio, onde estariam os seus colegas — vivos ou, mais provavelmente, mortos. Abriu a porta de acesso ao exterior, embarcou numa motorizada aérea, e não mais foi vista.

Enquanto isso, Leanor era afastada da irmã por Ismael, num surdo pânico, enquanto Adine assumia o controlo da situação e lhe limpava os olhos do líquido frio, enquanto lhe pedia que se acalmasse, que a deixasse ver. A dor era lancinante, como fogo e agulhas a desfazer-lhe as orbes, e a muito custo apenas as conseguiu abrir. Ao expô-las ao ar, porém, sentiu lágrimas de sangue quente a descer-lhe pelas bochechas, e voltou a fechá-los enquanto implorava por ajuda.

— Calma, Teresinha, vai ficar tudo bem — mas, entredentes ouviu-a soprar para os outros — isto está mau. Temos de a levar para o hospital rápido.

Sabia pelas vozes, abafadas pela dor que lhe entorpecia todos os sentidos, que foram a irmã e Adine que a levaram de volta ao Matriesse e a sentaram entre as duas numa motorizada aérea de emergência, partindo de imediato para o hospital mais próximo. Descobriram não estar muito longe de Rorise, a capital do Distrito Magno, e para o hospital central a levaram. Graças à sua situação emergente, auxiliada talvez por estar acompanhada de duas piratas da Confraria, foi rapidamente admitida numa sala de cheiro a álcool e desinfetante onde ouvia médicos a falar e movimentar-se à sua volta enquanto era deitada numa maca. Lavaram-lhe dos olhos os restos do líquido refrigerador com uma solução neutra e injetaram-lhe um analgésico forte na curva interior do antebraço.

À medida que as dores se iam tornando mais suportáveis, conseguia ouvir a médica informar, ainda a medo, Adine e Leanor do seu estado. Más notícias, estava cega, os olhos irreversivelmente destruídos. Boas notícias, a lei permitia que lhe colocassem olhos mecânicos, e a irmã teria apenas de pagar metade do valor.

— E fica a ver bem outra vez? — Perguntou Adine, tentando disfarçar o tremor da voz.

— Não a cem por cento, os olhos artificiais comparticipados têm as suas limitações. Mas em grande parte, sim. Vai poder fazer uma vida normal—

— Não há maneira de lhe recuperar a visão toda? — Interrompeu Leanor, tomada da neutralidade apática que lhe conhecia dos tempos de Vogma. A médica hesitou.

— Sim, mas… esse tipo de olhos não é comparticipado…

— Não quero saber. Eu pago, recuperem-lhe a visão toda.

Realmente, havia os seus benefícios em se estar no topo da lista da Confraria.

Foi admitida a cirurgia nessa mesma noite, assegurada por Leanor de que toda a burocracia seria tratada e que ela apenas se preocupasse em melhorar, enquanto a abraçava e se despedia. E apesar de se sentir reconfortada, algo no fundo da sua mente a desassossegava: tinha, de qualquer modo, desperdiçado a oportunidade que a irmã lhe dera.

Apenas uns dias depois da operação pôde abrir os olhos. E sim, via tudo como anteriormente, com a exceção de as cores lhe parecerem mais vívidas, e as formas mais nítidas. A recuperação foi calma, acompanhada por uma médica de nome Marise, responsável pelo seu caso, e as visitas esporádicas da irmã e de Adine. Certo dia, a tripulação do Matriesse conseguiu autorização para a ir visitar. Esqueceram imediatamente as regras que lhes foram impostas de manter o silêncio, e atiraram-se a ela num fervor de abraços e saudades.

— O barco não é o mesmo sem ti, pequenita — Ismael afagava-lhe os cabelos encaracolados, ignorando os seus protestos.

— Olha para nós, deixa-nos ver os olhos novos — Manifestava-se a curiosidade de Rénia e Savira, que pasmavam a observar o núcleo de éter e as pequenas engrenagens.

Conversaram pela tarde fora, tanto quanto lhes foi permitido. Até que, à chamada da funcionária, tiveram de partir. Antes, no entanto, Leanor disse-lhe:

— Vamos partir em viagem.

Sentiu um baque no peito. Iam partir de viagem sem ela. Já devia ter calculado.

— Escuta — continuou — não fiques com macaquinhos na cabeça. É aquele trabalho da captura do fugitivo que já tínhamos marcado, nada de mais. Mas daqui a umas semanas estamos cá, não te preocupes. Voltamos antes ainda de teres alta para te virmos buscar.

— Vai ser um trabalho de merda, de qualquer maneira — Rénia encolheu os ombros, os outros assentiram com um riso contido — um maluco qualquer, cheio de dívidas e inimigos, que fugiu num cargueiro para se livrar de ser morto. Bah, subornamos o capitão e arrastamo-lo de volta à Confraria. Tão fácil.

Tão fácil teria sido.

E partiram.

Nas semanas que se seguiram, Teresa ocupou-se de explorar a Ala, sem grande ocupação que lhe valesse. Acabou por conhecer esta rapariga de olhos claros e sorriso caloroso, e aquele rapaz de mão de metal e o pior humor matinal que já havia visto. Teve medo de lhes falar do Matriesse, porque falar demais às pessoas erradas dava sempre resultados inesperados. Falou-lhes apenas de uma normalíssima irmã trabalhadora Leanor, e de um grupo de amigos mais normal ainda, sem entrar em detalhes. A vida corria lenta, mas languidamente satisfatória.

Até que a notícia veio por um rádio mal sintonizado.

Calhou estar a passar por ali a caminho da cafetaria, naquela noite, para uma bebida antes de se deitar. Calhou a funcionária se estar a entreter a ouvir rádio para passar o tempo, num volume baixo para não incomodar. Calhou ela ter boa audição, e um vocábulo solto lhe ter chamado a atenção.

“…nau…”

Parou no corredor, aproximou-se do balcão sem que a secretária parecesse notá-la. Por lá ficou a ouvir.

“Estamos em direto de Diavena, onde acabou de colidir uma nau voadora com a Capela da cidade. Os serviços de emergência do Hospital Magno já chegaram, e bloqueiam o acesso ao local do impacto enquanto evacuam os sobreviventes. Estamos a tentar obter informação junto das fontes— sim, é sabido o nome da nau! Matriesse!”

O coração parou-lhe no peito. De seguida, uma leva de conflitos interiores, uma prece muda para que tivesse ouvido o nome mal, por favor, por favor, que me tenha enganado. Mas a locutora não dava espaço para engano.

“A nau Matriesse, segundo as nossas fontes, era um nome conhecido na Confraria de Clãs Piratas, liderado pela Capitã Leanor Ascolana. Aguardamos para saber se a tripulação se encontra viva…”

A partir daí, as suas memórias assemelhavam-se a um borrão indistinto.

Correu para a saída do hospital, saiu pelas portadas da Ala aproveitando a entrada de um médico, ouviu a voz dele a gritar por ela, e depois por ajuda, enquanto se afastava a galgar para a saída. Não sabia o que planeava. Não sabia sequer em que pensava. Só sabia que tinha de chegar a essa tal Diavena, tinha de ver a irmã, Adine, todos os outros. Não podiam ter morrido, não podia ser, por favor, não podia!

Conseguiu ainda chegar longe, graças à resistência que criara em todos os seus anos tanto em Vogma como no Matriesse, chegando perto de uma rua onde o cheiro inconfundível a fumo e o som besourado de uma coluna acusavam proximidade a uma estação de comboios. Só parou quando foi apanhada pelos dois tripulantes de uma motorizada de emergência a éter, enviada do Hospital Magno para a levar de volta.

Larguem-me! Deixem-me! A minha irmã, por favor, tenho de ir ver a minha irmã! Por favor! Parem!

Até a sua voz lhe soava oca e estranha.

Tinha sido sedada e transferida para outra Ala para a noite. De manhã, fora encaminhada para uma assistente social acompanhada de uma psicóloga.

Toda a tripulação do Matriesse havia morrido na colisão.

A assistente, mulher fria que odiou assim que lhe pôs os olhos em cima, estava lá apenas por uma razão: Teresa era maior de idade, e beneficiária do testamento de Leanor. Entregou-lhe um envelope selado, e disse-lhe que se dirigisse ao gabinete jurídico mais próximo assim que pretendesse levantar os bens que lhe cabiam. Gritou-lhe que não queria bens nenhuns, queria a sua irmã, e dois enfermeiros que nem tinha visto chegar precipitaram-se a segurá-la. Apesar do choque inicial, a assistente logo recuperou a compostura e pousou o envelope na cómoda da sala. Daí em diante, teria de se encontrar com a psicóloga todos os dias, pois esta ajudá-la-ia a recuperar.

Nunca acreditou. E verdadeiramente nunca se chegou a curar, a aceitar a dor e a, assim, minguá-la como a lua dos meses que passou em silêncio no estreito quarto da Ala ao lado. Apenas a sua apatia cresceu, de tal forma que esmagou sobre si a dor. O sofrimento permanecia, em irónico paradoxo, como uma sombra a persegui-la de entre a ausência de sentir. A sua vida mergulhou numa latência em que a tristeza provinha da apatia, até que se habituou a esse estado, como uma ferida que não sara mas cuja dor já é familiar e aconchegante.

Tiraram-na do quarto da Ala ao lado quando perceberam que, ainda que qualquer tentativa de a tirar da miserável melancolia apática fosse inútil esforço, ela já não constituía perigo ao bom funcionamento do hospital ou à comodidade dos outros pacientes, auxiliada pela asserção da psicóloga de que ela melhoraria depois de cumprir o seu luto. Quando a transferiram de volta para a Ala dos Mecanizados, sentiu finalmente algo no meio do nimbo vazio que a envolvera: medo, um pânico desconcertante; reencontraria aqueles que considerava seus amigos, e aí sabia que havia uma tão grande probabilidade de os perder também. Por a acharem instável, por ter fugido, por se terem aproximado de outras pessoas na sua ausência e se terem apercebido que não precisavam dela. Tantas eram as possibilidades, que sentiu que aquilo que a ela os agarrava era não mais que um frágil fio.

— Olá, Teresa. Como estás? Tive saudades tuas.

A outra tinha olhos do azul da madrugada, lábios pequenos e curvados, e o ar de a quem todos os problemas do mundo não conseguiriam deitar abaixo. Lembrava-lhe a alvorada, em todos os sentidos, mas nunca lho diria. Fechou a névoa em sua volta.

— Oi. Estou bem. Está tudo bem.

Irina olhou Silas desconfiadamente, mas nada disseram. Os dias passaram a ser longos e escorridos. E antes que se apercebessem, Teresa tinha quase desaparecido.


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