Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 5
Capítulo 4 — “Não foi de propósito.”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, tudo bem? (。ノω\。)゚ Peço perdão pela imensa demora (again), mas finalmente vim aqui atualizar a história. Antes de passar o glossário do capítulo pra vocês, eu gostaria de fazer um pedido. Ando preocupada com a qualidade da história e eu gostaria muito, de coração, de saber o que vocês estão achando do andar das coisas. Não em relação a ação (porque eu já expliquei nas notas do capítulo anterior que não é o nosso foco aqui), mas em relação à história mesmo, às criaturas escolhidas, enfim, se eu tô fazendo um bom trabalho. As vezes fico com a impressão que tô decaindo... enfim, eu agradeceria muito se pudessem me ajudar com isso. ♥ Então bora pro que interessa?

Kakebuton :: Cobertor grosso que compõe o Futon;
Bakeneko :: Yōkai em forma de gato;
Yukata :: Quimono de algodão ou linho usados no verão ou em festivais típicos;
Genkan :: Área externa da casa onde se deixam os calçados antes de entrar;
Zabuton :: Almofadas onde as pessoas sentam ao redor da mesa baixa;
Chonmage :: Penteado masculino usado principalmente no período feudal e nas vilas mais tradicionais, onde há uma tira no centro da cabeça que é raspada enquanto o resto do cabelo é preso em um pequeno rabo de cavalo cruzado no topo;
Tatame :: Esteira de palha de arroz entrançada que serve de tapete nas casas japonesas;
Kosode :: Parte superior da vestimenta da época (para homens e mulheres);
Buruburu :: Yōkai que tem seu nome baseado no som de uma tremedeira;
Futon :: Tipo de colchão usado na tradicional cama japonesa;
Reiki :: Palavra formada da junção dos kanjis “rei” (espírito) e “ki” (energia);
Yōkai :: Como comumente se chama as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Bentō :: Tipo de marmita japonesa;
Fusuma :: Portas de correr;



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23 de junho, terça-feira;

A chuva de verão que incidiu sobre a vila durante a madrugada, e que se estendeu por toda a manhã daquele dia, fora o suficiente para reverdecer o ambiente e avigorar o espírito dos habitantes. A terra seca da base da montanha absorveu a água que caiu do céu como um pai que recebe um filho há muito perdido. Havia uma sensação refrescante e suavemente gélida no ar, percorrendo as esquinas e ruelas, e mesmo o sol, que se erguia no céu como de costume, parecia desbotado em meio às nuvens borradas.

Ocorreu-me que era um ótimo momento para relaxar e degustar chá verde, sentada em frente à mesa e enrolada em meu Kakebuton, porém, a voz estridente de alguém do lado de fora da casa, que chamava o meu nome com visível exasperação, obrigou-me a levantar-me em um pulo e correr em direção à porta. Encontrei o chefe do vilarejo aflito, suando, e apoiado nos próprios joelhos enquanto tentava reunir fôlego para falar:

— Iwasaki-san, o que aconteceu?

— É o Nakamura-san. — Murmurou entrecortado. — Ele se machucou na horta, sofreu um acidente, ele está...

Notei manchas avermelhadas nas roupas, nas mãos e no rosto dele.

—Traga-o para cá. — Eu disse sem hesitar.

Instantes depois, acompanhei a chegada de um grupo de homens que carregavam uma pessoa inconsciente. Havia muito sangue e as gotas do líquido vermelho escuro caíam no chão e marcavam o caminho por onde vieram. Os únicos pensamentos que preenchiam a minha mente naquele instante eram que eu, definitivamente, não esperava lidar com uma situação daquela magnitude tão cedo, e que a pressão do momento era esmagadora.

Afastei a mesa da sala, visando adquirir mais espaço, e eles colocaram o homem — adulto, forte, vestindo trajes simples — deitado no chão. Vi o ferimento profundo em sua perna direita, pouco acima do joelho, e pedi que um dos visitantes buscasse um punhado de água ao mesmo tempo em que me dirigia rapidamente aos meus pertences, separando ataduras e uma solução anti-séptica.

Quando retornei para perto do ferido, solicitei aos que se amontoavam ao seu redor que se afastassem para que ele pudesse respirar melhor e eu fosse capaz de realizar os primeiros socorros. Minhas mãos tremiam discretamente e eu sentia meu coração pulsar próximo à garganta, pois, apesar de eu ter me deparado com inúmeras situações hipotéticas como aquela em minhas aulas práticas no meio acadêmico, enfrentá-las na realidade era muito mais assustador.

— Quando isso aconteceu? — Indaguei sem olhar para nenhum deles. — Quero dizer, há quanto tempo ele está sangrando?

— Não sabemos. — Um deles admitiu. — Estávamos na horta e ele estava bem quando o deixamos por um instante. Ao retornarmos, Nakamura-san estava no chão, se debatendo, ao lado de uma foice que estava também suja de sangue.

— Foi o que o feriu?

— Não sabemos. — O homem parecia realmente preocupado enquanto o outro retornava com um balde de madeira cheio de água. — Só estava ao lado dele.

Voltei minha atenção para o paciente, depois que o despi parcialmente, e percebi que ele suava muito. Chequei o pulso e notei que, ao contrário da respiração, que era inconstante, a frequência cardíaca era baixa. Ele estava semiconsciente e balbuciava vocábulos ininteligíveis. A quantidade excessiva de sangue me preocupava e sugeria que era possível que uma veia tivesse sido rompida.

Ergui a perna dele, apoiando-a em um pequeno suporte de madeira para desacelerar o fluxo sanguíneo naquela área, e apanhei um pano limpo. Prontamente imergi-o na água, antes de dobrá-lo e aplicar a solução anti-séptica, usando-o para limpar a parte externa da ferida — que tinha uma aparência bastante desagradável — contornando as bordas. Respirei fundo, no intuito de me concentrar nos próximos passos, e fixei os olhos na carne lesionada.

— Nakamura-san, pode me ouvir? — Ele tinha os olhos fechados, mas percebi que as pálpebras tremiam e os lábios dele se mexiam como se quisessem pronunciar alguma coisa. — Mantenha-se acordado. Você vai ficar bem, não se preocupe, só fique acordado.

Preparei uma compressa e apliquei-a sobre a laceração, pressionando minhas duas mãos sobre a perna, afim de estancar o sangramento. O branco tingiu-se de vermelho quase instantaneamente, mas eu me mantive firme para evitar que a coagulação fosse interrompida. Alguns minutos depois, no entanto, quando de meus dedos já pingava sangue e eu podia sentir o cheiro forte do ferro, apliquei outra camada de panos limpos e assim permaneci por pouco mais de dez minutos.

Eu tinha consciência de que era uma situação grave, muito sangue havia sido perdido e a ferida era profunda, e que a recuperação dele dependeria de sua reação aos meus procedimentos, mas eu sabia que se pudesse mantê-lo calmo e consciente, e fosse capaz de conter a hemorragia, isso o tiraria da linha de risco até que eu conseguisse pensar no que fazer. Apreensão se apoderava de mim, mas eu entendia que a precisão da minha atitude, que dependia diretamente da minha calma e frieza, era crucial para reverter o quadro.

Após certo tempo, o fluxo de sangue finalmente diminuiu. Suspirei aliviada, checando o pulso — que continuava fraco —, e finalmente afastei-me dele e abri a porta da sala para os visitantes que esperavam do outro lado.

— Ele está estável. — Murmurei. — As próximas horas decidirão o que acontecerá.

Preocupação transbordava nos semblantes alheios e eu os observava enquanto limpava as mãos ensanguentadas em outro pano umedecido.

— Ele vai ficar bem? — Um deles perguntou.

— Eu farei todo o possível. — Falei com honestidade. — Mas eu preciso saber o que aconteceu.

— Nós saímos por um instante, para buscar sementes novas, e, quando voltamos, ele estava deitado no chão, com esse corte na perna. — Um segundo tomou a dianteira. — Ele pode ter tropeçado em alguma coisa e caído sobre a ferramenta. E arrancou-a depois. E isso é muito estranho pois Nakamura-san é sempre muito cuidadoso.

— Não havia ninguém por perto? — Insisti, sentindo estranhamente os meus sentidos inquisitivos aflorando. — Nada fora do comum?

— Não. — O mesmo homem afirmou. — Mas Mochizuki-san, que estava escalado para trabalhar na parte superior da horta, com as cenouras, não apareceu. Não sei se isso tem alguma relevância.

— Como é a relação deles? — Indaguei, fingindo interesse puramente trivial.

— São amigos. — Afirmou um terceiro. — Sempre foram.

— Nakamura-san tem família? — Continuei. — Alguém a quem devamos informar sobre o ocorrido?

— Não. Creio que teve um filho, mas ele partiu deste mundo há muitos anos e desde então ele tem vivido sozinho.

Balancei a cabeça em afirmação, dizendo a eles que seu amigo ficaria em minha casa pelos próximos dias, e, com visível angústia, eles partiram. Usei um pouco da linha que eu tinha em meu estoque para costurar superficialmente o corte. Quando terminei, recostei-me à porta de madeira, sentindo-me finalmente apta a respirar com tranquilidade, e fechei os olhos por um instante.

Não sabia dizer ao certo quando tinha surgido, mas havia uma necessidade inquietante dentro de mim de saber mais sobre o caso. Eu tinha noção da imprevisibilidade de um acidente, mas havia um quê de estranheza na sucessão dos fatos. Admitia que a possibilidade de que as aventuras dos dias passados, que impeliram-me a invadir um templo sagrado e desenterrar um corpo, tivessem modificado alguma coisa no meu modo de ver as coisas, porém também era um fato incontestável que eu me sentia motivada a descobrir a história por trás da fatalidade.

— Pensando no quanto sente minha falta? — A voz de Aomaru ressoou atrás de mim e logo observei-o sentar-se ao meu lado. — E quem é o cara quase morto na sala?

— É um aldeão. — Expliquei categórica. — Houve um acidente com as ferramentas e ele se machucou na horta.

— Machucar é uma palavra bem ínfima para descrever o estado dele. — O gato, na forma comum que ele normalmente envergava durante o dia, oscilando os bigodes. — Não que eu me importe com isso.

Eu respondia mecanicamente por estar deveras compenetrada no simples fato de a minha intuição — ou talvez um faro dúbio para mais uma peripécia — dizer-me mudamente que havia alguma coisa errada.

— Tem tempo livre agora? — Perguntei sob o franzir da testa peluda de Aomaru. — Vigie-o um minuto. Eu volto logo.

O Bakeneko encarou-me com dúvida antes de eu dar-lhe as costas e partir.

Coloquei-me no encalço da casa de Mochizuki-san — cuja presença no local do acidente, e de seu trabalho diário, não havia sido confirmada — depois de me certificar de que o paciente aos meus cuidados dormia e de deixar algumas recomendações para quem tomaria conta dele. Eu planejava fazer algumas perguntas ao homem. Talvez, com o esclarecimento correto, aquela sensação estranha que agitava o meu coração desaparecesse.

Ao atingir a altura da grande horta do vilarejo, localizada exatamente no centro e ao lado da árvore que tanto chamou minha atenção quando cheguei, meus olhos foram tragados à pintura rural que brilhava diante de mim. Os legumes, coloridos e vibrantes, se mesclavam em um mosaico natural que, da distância em que eu estava, assemelhava-se a uma pintura tradicional. Haviam homens trabalhando, curvados em direção ao solo, em movimentos desajustados, enquanto uma brisa agradável soprava do leste e fazia-me recordar o quanto eu já gostava daquele lugar.

Depois de achar a casa onde Mochizuki-san morava, auxiliada pelas orientações dos aldeões para quem pedi ajuda, bati na porta. Esperei durante alguns minutos e então tornei a bater com um pouco mais de força para o caso de não ter sido ouvida.

— Mochizuki-san? — Chamei. — Eu me chamo Kikui Makoto, e cheguei no vilarejo há alguns dias, creio que uma pessoa que você conhece sofreu um acidente e ajudaria muito se eu pudesse conversar com o senhor.

Não recebi nenhuma resposta, mas decidi bater uma terceira e última vez. Ouvi um ruído abafado vindo de dentro. Arqueei a sobrancelha, estreitando os olhos, e perguntei a mim mesma se não seria melhor ir embora e esquecer aquela história. Tinha sido um acidente, afinal, e talvez não houvesse nada anormal como o meu âmago insistia em me dizer que tinha.

Repentinamente, porém, quando eu me virei e me preparava para deixar a propriedade, a porta se abriu e eu voltei de súbito a cabeça na direção da pessoa que se revelou. Uma mulher — de longas madeixas castanhas, lisas e presas por uma fita branca próximo às pontas, vestindo um Yukata amarelo — recebeu-me com uma expressão receosa no rosto.

— Posso ajudar?

— Perdão pela intromissão. — Curvei-me em uma mesura educada. — Eu estou procurando por Mochizuki-san.

— Eu sou a esposa dele. — Ela revelou em tom desconfiado. — O que aconteceu?

— Nakamura-san, um conhecido do seu marido, se machucou enquanto trabalhava. — Eu tentei explicar com o tom mais confiante que consegui reproduzir. — Ninguém sabe o que aconteceu, mas o ferimento é grave, e como Mochizuki-san não compareceu ao trabalho hoje, eu pensei que...

— Espere, ele não foi trabalhar? — A mulher pareceu genuinamente surpresa. — Ele saiu daqui cedo, como de costume, e disse que ia para a horta.

— Ele ainda não voltou? — Indaguei confusa. — Ele não apareceu, não disse para onde ia?

— Não. — A mulher respirou fundo. — Como Nakamura-san está?

Notei em seus olhos uma preocupação insólita, que parecia ligeiramente mais intensa que a aflição relativa ao seu marido desaparecido, sugerindo que ela também conhecia o enfermo. Talvez fossem amigos próximos. Ela me fez algumas perguntas, principalmente a respeito do doente e de seu estado de saúde, e eu as respondi com calma e retidão. Quando inquiriu-me se poderia vê-lo, eu expliquei que isso só seria possível quando ele estivesse consciente. A notícia pareceu afetar negativamente a morena, mas ela concordou.

— Se o seu marido aparecer, por favor, diga-lhe que eu estou procurando por ele. — Recomendei enquanto me preparava para partir. — E informe-o do ocorrido.

Depois de prometer que cuidaria de Nakamura-san, despedi-me da mulher e pus-me a caminhar de volta para casa. Refiz o caminho anterior, passando pela horta, com os olhos fixos no chão enquanto os pensamentos que outrora povoavam a minha mente gradualmente se organizavam.

Fui abordada por algumas pessoas no caminho, que questionaram-me sobre o estado do meu paciente, e eu as respondi com poucas palavras. O chefe do vilarejo me alcançou e me perguntou se eu precisava de alguma coisa, desde panos limpos a qualquer tipo de auxílio, e eu respondi que tudo o que ele pudesse trazer já seria de grande ajuda. Yamada-san, cuja casa fazia parte do meu trajeto, acenou para mim quando eu passei e eu pude ver seus diminutos olhos se apertando conforme seus lábios se abriam em um sorriso afável.

Por um momento, minha mente desligou-se completamente do fato de que havia alguém gravemente enfermo em minha casa e eu me senti envolta novamente por aquela sensação delicada, e ao mesmo tempo profunda, de paz. Todos os dias desde quando cheguei à Yamakura tinham sido assim. Eu podia sentir o vento sacudindo os meus cabelos e o sol brilhando sobre mim, emanando raios quentes, e tudo o que meus ouvidos eram capazes de captar eram os sons emitidos pela natureza que me cercava.

O medo de não conseguir me adaptar a um ambiente tão diferente do que eu estava habituada — sem os prédios enormes e o barulho incessante — desaparecera com o passar do tempo. Eu me sentia mais em casa naquele lugar do que em qualquer outro. O silêncio e a tranquilidade costumeiras pareciam-me tão familiares e naturais que, as vezes, eu tinha a ligeira impressão de ouvir o meu nome ser sussurrado pelas correntes de ar que perpassavam através do vilarejo.

Atingi minha residência depois da longa caminhada e, depois de deixar meus sapatos no Genkan e entrar, decidi me ater aos fatos. Atravessei a casa e dirigi-me ao cômodo onde tinha deixado meu paciente, mas, quando deslizei a porta de correr que separava a sala de estar dos outros cômodos, deparei-me com uma pessoa desconhecida, ajoelhada sobre uma das Zabuton, a quem Aomaru encarava com uma expressão mal-encarada.

— O que está acontecendo aqui? — Foi a única coisa que eu consegui pronunciar.

Foi só depois que eu me sentei, sem tirar os olhos do visitante — que ostentava um Chonmage na cabeça e vestia trajes simples muito semelhantes aos do paciente que descansava no cômodo ao lado —, que reparei que ele parecia preocupado. Percebi também que suas mãos tremiam ininterruptamente. O que chamou a minha atenção, entretanto, foi o fato de os tremores serem muito mais intensos do que o esperado de alguém que está apenas nervoso.

— Você é a médica? — Ele engoliu em seco enquanto apertava as mãos na tentativa de controlá-las. — Quero dizer, a que chegou ao vilarejo há alguns dias

— Sim, sou eu. — Balancei a cabeça em sinal positivo. — E quem é o senhor?

Notei que o rosto dele também tremia vez ou outra e que ele tinha alguma dificuldade em se conter.

— Mochizuki. — Ele respondeu prontamente.

Mal pude disfarçar a surpresa quando me dei conta de quem estava parado em minha sala. Ele, por outro lado, não fazia ideia da razão do meu espanto. Aomaru permanecia em silêncio ao meu lado enquanto o encarava com desconfiança.

— Eu estive procurando por você. — Afirmei. — E imagino que já deva ter sabido do que aconteceu.

— Sim. — Vi-o repousar o olhar sobre o outro. — Como ele está?

— Está estável. — Respondi com um suspiro. — Perdeu muito sangue, todavia, o que o enfraqueceu bastante, e eu não tenho certeza se possuo medicamentos o suficiente para repôr tudo o que ele necessita.

Enquanto conversávamos, Aomaru demonstrava estar inquieto. Ele fitava o homem, desconfiado, depois rondava a sala até voltar a encará-lo. Em dado momento, parou ao meu lado, apoiando o corpo no chão, e então sussurrou para mim com um tom de voz que apenas eu podia ouvir:

— Tem alguma coisa estranha com esse homem.

Como eu não podia falar com ele na frente do visitante sem parecer maluca, apenas ergui as sobrancelhas em sinal para que ele continuasse o que tinha a dizer.

— Posso sentir uma Reiki ao redor dele. — Aomaru disse. — Pequena, sim, mas com certeza é a energia de um Yōkai.

— Então o caso dele é grave. — O homem interrompeu nosso monólogo paradoxal.

— Sim, é. —Suspirei. — Vocês eram amigos há muito tempo?

— Desde a infância. — Ergueu os olhos pela primeira vez. — Nós crescemos juntos, aqui mesmo nessa vila, e éramos inseparáveis. Eu comecei a trabalhar na horta por causa dele, para continuarmos próximos, e isso aconteceu na mesma época em que eu e a Chieko nos casamos.

Não importava o quanto ele falasse ou a situação se estendesse, suas mãos não paravam de tremer. Com o tempo, e conforme o relato prosseguia, todo o seu corpo passou a emitir pequenos tremores, todavia o homem nada disse a repeito. Eu não me atrevia a perguntar e então um silêncio incômodo se instalou entre os presentes na sala. Percebi o Bakeneko circundando o visitante, mas não fiz nada para impedi-lo.

— O senhor está bem? — Ousei.

— Sim, eu estou bem. — Ele pareceu aborrecido. — Eu só estou preocupado com meu amigo. Ele está ferido, não está vendo?

Notei gotas de suor brotando do topo da testa dele, bem como a respiração acelerada que ele passou a ter depois, e eu não conseguia não pensar o quão atípica era aquela situação. Eu tinha vontade de sair dali. Sentia o clima pesado ao meu redor, graças a pressão de ambos os lados em minha direção, mas permaneci calma e não me permiti transpassar nada do que habitava meu coração.

A proporção com que ele vibrava estava começando a me assustar. O próprio aldeão parecia constrangido com a situação, com sua incapacidade de manter o controle dos membros, e se remexia sobre os joelhos de maneira inquieta.

— Ele sempre foi uma pessoa cautelosa, mas a verdade é que as vezes era um pouco bobo. — Mochizuki-san inflou o peito para falar. — Ele era um imbecil, na verdade. Sim, um imbecil, ele estava sempre sorrindo despreocupadamente enquanto eu dizia que ele deveria casar-se e constituir uma família. A família é o nosso legado. E é sagrada. Não há nada mais importante que a família.

Àquela altura, ele tremia tanto que até a sua habilidade de falar estava sendo afetada. Meu mirar saltou do homem para o gato que se esgueirava atrás dele quando me dei conta de que Aomaru parecia observar, com especial atenção, alguma coisa nas costas do outro.

— Ele não entendia. — Seus lábios murmuravam com rigidez enquanto suas frustrações desordenadas escorriam para fora. — Ele não entendia que a família é o bem mais importante que os deuses poderiam nos conceder. Ele não respeitava a família, não respeitava a minha família...

De súbito, depois de sibilar agressivamente em sua direção, o gato-monstro avançou sobre o corpo de Mochizuki-san e o derrubou sobre o Tatame. Eu me assustei e recuei, a princípio, de olhos arregalados, mas em seguida aproximei-me, com o cenho franzido e confusa, buscando entender as ações do Yōkai felino.

— Aomaru! — Exclamei. — O que está fazendo?

— Esse homem tem um Yōkai nas costas! — Berrou de volta.

Mochizuki-san, que se debatia sob as patas fortes do gato, tentava em vão se libertar. Eu não tentei ajudá-lo por causa da afirmação anterior de meu companheiro, porém também não entendia o que eu tinha que fazer. Vi Aomaru puxar com uma das patas o Kosode de seu prisioneiro, revelando marcas avermelhadas nos ombros — na forma de mãos — e, logo depois, ele tornou a erguer o rosto para mim.

— É um Buruburu. — Com um tom de voz sério, ele me encarava como quem esperava uma dedução da minha parte.

— E?

— Significa que ele fez alguma coisa muito grave. — respondeu o gato aborrecido. — E, ou mentiu sobre isso, ou simplesmente fingiu que não aconteceu.

Como se uma lâmpada tivesse sido acesa em minha mente, clareando todo o meu raciocínio, outrora obscuro e divergente, magicamente entendi tudo o que tinha acontecido: girei o corpo na direção do homem deitado no cômodo ao lado, encoberto pelo Futon, e em seguida para o que estava imobilizado pelo peso de Aomaru.

— Eu espero que o senhor não tenha nada a ver com o que aconteceu à Nakamura-san. — eu disse em um tom austero.

Ele, que esteve lutando até para se soltar, parou de repente e seus olhos passaram a fitar o chão. As nuances de sua expressão mudavam de pesar para raiva, e em seguida para pesar novamente. Demonstrava estar perplexo e aflito ao mesmo tempo, sem deixar de violentamente sacudir-se por um único instante.

— Mochizuki-san?

Notei em seu olhar que ele estava em conflito. Seus olhos deslizavam de um lado para o outro, procurando um ponto de apoio, mas só o que havia na sala era a minha presença, impelindo-o a proferir uma resposta.

— Não foi proposital. — Ele disse, finalmente. — Eu descobri uma coisa que ele fez e, eu não sei, fiquei insano.

Minha atenção voltou-se inteiramente para o presente relato.

— Eu estava saindo de casa, como de costume, para ir trabalhar na horta assim que o sol apareceu no céu. No meio do caminho, porém, eu lembrei que tinha esquecido o Bentō que Chieko havia preparado para mim, e então decidi voltar para pegá-lo. Foi quando eu ouvi murmúrios estranhos.

“Sorrateiramente, entrei em casa guiando-me por ruídos atípicos. Parecia uma voz grave, em contraste com a de Chieko, que eu reconheci com facilidade, e, quando estava prestes a deslizar a Fusuma que separava a cozinha do resto da casa, ouvi a voz de um homem. Era o Nakamura. Eu não pude acreditar. Fiquei parado, como uma estátua, sem conseguir reagir, enquanto os ouvia cochichar juras de amor um para o outro. Ela disse que o amava, e ele disse o mesmo, e tenho certeza de ter ouvido o meu nome algumas vezes, mas, àquela altura, eu já não mais prestava atenção porque a única coisa que eu conseguia pensar é que eles, sem remorso algum, haviam aguardado pela minha ausência para me traírem dentro da minha própria casa.”

Mesmo depois que ele terminou de falar, eu permaneci em silêncio. Aomaru, com calma, desceu de cima dele quando percebeu que ele já não era mais uma ameaça. Nós dois o observamos se sentar sobre os próprios joelhos enquanto tentava controlar a própria tremedeira e, posteriormente, as lágrimas que brotavam em seus olhos.

— Eu fugi do local por quase uma hora, mas, quando voltei para a horta e o avistei, confrontei-o e exigi explicações. — Ele parecia ter dificuldade em desenvolver a questão. — Nós discutimos, ele tentou se desculpar, mas eu, em um acesso de raiva, empurrei-o com muita força. Ele caiu por cima da foice e a lâmina perfurou sua perna. Eu não sabia o que fazer, ele estava gritando e sangrando, então eu fugi.

Ele sequer olhava para mim, talvez envergonhado de seu próprio ato, e minha atenção logo se desprendeu de sua figura quando me dei conta que as marcas em seus ombros estavam lentamente desaparecendo. Apertei os olhos para ver melhor no mesmo instante em que uma criatura azulada, semelhante a um homem vestindo uma túnica branca, apareceu acima da cabeça de Mochizuki-san. Só tive tempo de olhá-lo por um ou dois segundos antes de ele desaparecer no ar. As mãos, bem como o corpo do homem, pararam de tremer e isso pareceu espantoso tanto para mim quanto para ele.

Fiquei imóvel por alguns segundos, perguntando-me em silêncio se eu realmente tinha visto o que pensava que tinha, mas voltei a mim quando o visitante de repente se ajoelhou na minha frente e apoiou os braços no chão.

— Sei que não tenho direito de pedir isso, mas, por favor... — ele começou a falar. — Salve-o.

Relutei em acreditar na redenção repentina do homem, mas cheguei à conclusão que continuar a torturá-lo não ia trazer nada de bom nem para mim nem para o meu paciente, que não fazia ideia do que havia acontecido ali, tão próximo dele, enquanto estava adormecido. O que quer que tenha sido o que eu vi, flutuando sobre nossas cabeças, já não estava mais lá e desapareceu junto com o estranho tremelicar do corpo de Mochizuki-san.

Depois que ele foi embora, dediquei-me exclusivamente a cuidar do aldeão ferido. Recebi a visita do chefe da vila, que me trouxe panos limpos e algumas raízes medicinais que conseguiu no vilarejo vizinho, e eu passei as horas seguintes analisando o estado do paciente. A hemorragia havia sido definitivamente contida, e a sutura improvisada que eu tinha feito ainda aparentava estar firme, de modo que já não havia mais nada que pudesse ser feito além de aguardar sua recuperação natural.

No dia seguinte, Nakamura-san foi removido, com ajuda de alguns dos seus amigos que trabalhavam na horta, para casa. Fizemos muletas improvisadas e eu me prontifiquei a atendê-lo futuramente se ele precisasse de ajuda. Eu não disse a ninguém o que Mochizuki-san me confessou naquela tarde, muito menos os motivos que os levaram a cometer tal ato, pois eu acreditava que era um assunto que não tinha nada a ver comigo.

Após um dia inteiro de coleta de amostras de plantas, sentei-me na beirada da varanda da minha casa, afim de aproveitar os últimos raios de sol, para descansar. Aomaru sentou-se ao meu lado. Nós conversamos sobre a rotina, eu o ouvi destilar duas ou três piadas sarcásticas, e eu lhe perguntei — depois de perceber que eu ainda não sabia quase nada sobre ele — que tipo de coisa gostava de comer no jantar.

Foi quando eu vi.

Precisei estreitar os olhos para enxergar um homem parado à sombra da grande árvore. Reconheci Nakamura-san por causa das muletas. Ele parecia observar alguma coisa que estava fora do meu campo de visão, atrás da casa que completava a paisagem, mas eu não precisei esperar muito para enxergar um casal caminhando ao lado dele.

A mulher — que eu reconheci ser Chieko — passou a andar mais devagar naquele momento, e eu pude notar seus olhos deslizando discretamente para Nakamura-san, que retribuiu com a mesma retidão, enquanto o homem limitou-se a olhá-lo de soslaio rapidamente antes de partirem os dois.

Eu não sei como a situação se desenrolou entre aquele trágico triângulo, e nem procurei descobrir, mas eu sabia que a vida deles, bem como a relação construída com anos de convivência, nunca mais seria a mesma.

— Vocês também passam por isso? — Perguntei de repente sem encarar Aomaru diretamente.

— Como assim?

— Vocês Yōkais também têm laços uns com os outros? — Permiti que meus olhos fitassem Nakamura-san que ainda permanecia parado, taciturno e sozinho, sob a sombra da árvore logo à frente. — Vocês também mentem, traem e se magoam?

— O que você acha?

Eu não respondi nada.


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Notas finais do capítulo

Estou à espera de sugestões e críticas, pls, por favor, não me poupem de nada! ♥