Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 3
Capítulo 2 — “Eu estou com fome!”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, tudo bem? Dessa vez eu não demorei tanto (não tanto quanto costumo demorar, hahah) pra atualizar a história. Eu gostaria de agradecer de antemão por todos os comentários lindos e toda a ajuda e apoio que tenho recebido de vocês, leitores divos, e dizer que tudo isso tem me ajudado muito a continuar. Também gostaria de lembrar que não, eu não estou ignorando ninguém, omgg, eu só sou lenta pra responder os comentários (inclusive, eu ainda não respondi o do capítulo passado, mas estarei fazendo isso logo após essa atualização que vocês estão lendo agora hahah~ prometo!), então por favor não me odeiem. ToT~ AUHsuahsa! Também gostaria de dizer obrigada à linda da Roana que recomendou a história e quase me fez chorar de emoção (sua linda, te amo~)! E agora, sem mais delongas, vamos ao glossário desse capítulo...

Washi :: Tipo de papel translúcido feito no Japão, comumente utilizado para preencher os espaços vazios de um determinado tipo de porta de correr;
Kimono :: Vestimenta tradicional japonesa utilizada por mulheres, homens e crianças;
Cha-wan :: Tigela utilizada no Chanoyu (Cerimônia do Chá japonesa) para servir e beber o chá verde;
Bakeneko :: Yōkai cuja forma assemelha-se a um gato (retratado no capítulo anterior);
Yōkai :: Termo genérico que denomina as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Zabuton :: Almofadas onde as pessoas sentam ao redor da mesa baixa;
Kanji :: Caracteres da língua japonesa usados para escrever em japonês;
Reiki :: Palavra formada da junção dos kanjis “rei” (espírito) e “ki” (energia);
Umeboshi :: Especialidade da culinária japonesa que consiste em ume (que parece uma ameixa) em conserva;
Futon :: Tipo de colchão usado na tradicional cama japonesa;

Eu sei que é complicado ficar voltando o tempo todo pra ler o glossário, mas... não tem outra maneira, o Nyah! não permite nada mais prático. AUsauhsua! Sorry! x.x~

Boa leitura! ♥



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17 de junho, quarta-feira;

Ao acordar, pela manhã, minha cabeça latejava intensamente. O sol penetrava o fino Washi da porta da sala, que ligava o interior da casa ao exterior, e a luz parecia ainda mais incômoda quanto a senti diretamente em meus olhos. Custei a sair da cama, presa no dilema entre seguir meu cronograma diário cuidadosamente construído ou descansar um pouco mais, mas decidi levantar de uma vez e torcer para que eu conseguisse tornar aquele dia produtivo.

Respirar o ar puro me fez bem instantaneamente, assim como a breve caminhada pelos arredores do vilarejo, pois encontrei algumas raízes de Ginseng Japonês. Tratava-se de uma variação da planta original, vinda da China e pertencente ao gênero Panax, cuja raiz é usada no tratamento de quaisquer tipos de fraquezas corporais. Ela também é um ótimo remédio natural para dores de cabeça, cansaço e anemia, de modo que colhi algumas amostras para complementar o meu estoque.

Descobri também que havia um pequeno templo montanha acima, mas, como não vi ninguém nas proximidades, achei que não ir adiante era o correto a ser feito.

Na volta, avistei, à distância, um grupo de ciprestes que fizeram-me recordar brandamente das lições sobre o xintoísmo que a minha mãe costumava me ensinar quando eu era criança, cujos preceitos, especialmente sobre as árvores sagradas e da ligação delas com os deuses primordiais, sempre me foram fascinantes. Quando eu pensava nela, não conseguia desvincular sua imagem das crenças religiosas que pareciam reger a vida das pessoas no Japão, e essa talvez seja a razão que explique o fato de minhas memórias a respeito dela beirarem o misticismo.

Ao alcançar novamente a área de Yamakura, e uma vez distraída observando as plantas em minhas mãos, não reparei que havia alguém caminhando em minha direção. O impacto da nossa batida foi tamanho que eu cambaleei para trás e por pouco não caí. A mulher que esbarrou em mim, por outro lado, perdeu o equilíbrio e, além de ter ido direto ao chão, derrubou o pacote de comida — contendo alguns legumes e frutas — que carregava nas mãos.

— Perdoe-me, foi culpa minha. — Eu disse enquanto prontamente me abaixava. — Deixe-me ajudá-la.

Recebi silêncio como resposta e a senhora — que vestia um Kimono escuro, tinha os cabelos soltos e ligeiramente desgrenhados e um cachecol azul em torno do pescoço — sequer olhou para mim. Sua atenção estava presa na comida espalhada no chão de terra que ela alcançava com mãos trêmulas.

Estiquei a mão para apanhar um pêssego, à minha direita, mas, como um raio, a mulher segurou-me e pela primeira vez vi o seu rosto: enrugado e pálido, com olheiras profundas, e um mirar tão nefasto que me paralisou de medo por alguns instantes e fez-me largar a fruta abruptamente.

— Não toque nele. — Ordenou-me com uma voz grossa e cortante. — Ele é meu. Não toque nele.

Ela apanhou com rapidez o que restava, enfiou de qualquer jeito em um pedaço de pano, e partiu sem dizer mais nada, deixando-me de cenho franzido a observá-la distanciar-se e desaparecer de vista.

Permaneci parada no mesmo local por alguns minutos, processando o que tinha acabado de acontecer e refletindo sobre o poderia causar aquele comportamento hostil para com alguém até então desconhecido para a mulher, mas não consegui pensar em nada de fato desrespeitoso que eu poderia ter feito. Depois de chegar a essa conclusão, dei as costas à paisagem local e segui meu caminho.

Pensei sobre o ocorrido durante o último pedaço do trajeto que me separava de minha residência. Ainda que as vidas pessoais dos moradores do vilarejo, bem como seus hábitos, não fossem da minha conta, como médica, era extremamente difícil para mim ignorar a condição de saúde, constituída de palidez e aparência anêmica, nitidamente prejudicada.

Entrei em casa, deixando meus achados sobre a bancada rígida da cozinha, e voltei-me para a urna de madeira quadrada — onde costumava carregar algumas amostras de remédios prontos e ervas medicinais— no canto do aposento. Alcancei o pequeno frasco de vidro que continha um pouco de chá verde em pó. Depositei-o dentro de um Cha-wan que encontrei nas dependências da casa, dentro de um dos armários e, depois de esquentar água, misturei-os e deixei que o calor agisse.

O cheiro suave e atípico da mistura se espalhou gradativamente no ar e tornou a atmosfera ao meu redor muito mais agradável. Senti os músculos relaxarem, os sentidos se inebriarem e, em uma fração de segundo, meu corpo fora envolvido por uma poderosa sensação de tranquilidade.

Um som esganiçado abruptamente irrompeu o ar e quebrou o clima revigorante no qual eu estava imersa. Estiquei-me para olhar do lado de fora e meus olhos captaram uma figura felina com as patas encravadas na porta de madeira.

— Você ainda está aqui. — Afirmei, notando que, naquele momento, o gato-monstro mais parecia um animal doméstico comum. — Pensei que seus negócios com essa casa estavam terminados.

— Eu não tenho muito mais o que fazer por aí. — Retrucou o Bakeneko. — Os outros Yōkais que vivem nas montanhas dominam todo o território.

— E está tudo bem para você? — Recostei-me na bancada e beberiquei o chá verde, ao passo que sentia que não era capaz de esconder meu estranhamento devido à natureza daquela conversa.

— Eu não ligo para nada disso. — A criatura se espreguiçou, bocejou e então veio caminhando em minha direção. — A única coisa que me interessava era resolver a minha questão com a Miho.

— E agora que a resolveu, pretende ir embora?

— Acho que vou ficar mais um pouco. Há sempre um pouco de diversão em observar os humanos. — Ele ergueu o rosto anguloso e me encarou. — Não acha?

Eu não sabia se tinha compreendido com exatidão as palavras pronunciadas pelo animal, mas pude notar com uma nitidez quase palpável a existência de uma informação subliminar em quaisquer que fossem suas intenções.

— Você tem uma aparência bem diferente da de ontem ontem à noite. — Apontei. — Onde estão os seus brinquedos?

— As esferas? — Indagou ele em notório tom ofensivo. — Elas só ficam visíveis à noite ou quando eu desejo. Durante o dia, posso facilmente parecer um gato comum que é apenas sutilmente maior que os outros.

— Não tem nada de sutil em você.

— Tanto faz. — Retrucou. — Enquanto eu estiver aqui, vou tratar de me ocupar e não tenho intenção de me envolver em seus assuntos.

— Não lembro de ter dito que você podia ficar.

— E nem eu de ter considerado em algum momento a sua opinião. — Devolveu-me, audacioso, mexendo os bigodes enquanto bocejava novamente. — Seria divertido vê-la tentar me colocar para fora.

A ousadia daquele ser estava começando a me aborrecer, pois ele agia como se tivesse algo que eu precisava e isso lhe concedesse vantagem numa suposta barganha, mas, principalmente, porque ele estava certo. Eu não conseguiria colocá-lo para fora mesmo se eu quisesse muito. Permitir que ele permanecesse na minha casa e ignorar sua presença — até que se cansasse de me atormentar, por ver que não surtia nenhum efeito, e decidisse ir embora — parecia um plano mais eficiente.

— Então existem outros como você? — Retomei o assunto enquanto sorvia a última parte do chá. — Quero dizer, Yōkais.

— Alguns quase tão bonitos quanto eu, outros nem tanto... — disse, caminhando até uma Zabuton na sala e deitando-se sobre ela. — Mas sim, definitivamente existem muitos outros Yōkais por aí, se é o que está perguntando.

— Eles são agressivos como contam as histórias? — Aproximei-me dele e sentei na almofada a sua frente.

— Alguns sim, outros nem tanto... — Repetiu o animal, parecendo não me dar muita atenção.

Cheguei à conclusão que não arrancaria dele nada mais de útil e tentei me concentrar em outras tarefas, mas o encontro com a estranha mulher que tive naquela manhã não saía da minha cabeça. Meus pensamentos se moviam em círculos em torno da mesma questão, sem que eu conseguisse me desfazer dela, até que, após muitas xícaras de chá e tentativas frustradas de estudar meus livros, dei-me por vencida.

Decidi, então, que faria a ela uma visita profissional. Apanhei a urna que continha uma boa parte dos materiais medicinais que eu utilizava, uma vez que eu não sabia com que estava lidando, e saí de casa novamente deixando para trás um felino sonolento que cochilava em minha sala.

Depois de ultrapassar a árvore no centro do vilarejo — que acabou se tornando um ponto de referência —, voltei para o lugar onde encontrei a tal mulher em busca de pistas que me levassem à sua residência, mas não havia ninguém por perto, pois o sol, como no ápice do verão, castigava sem piedade os que se arriscavam a sair de casa durante o dia.

Descrevi-a à alguns aldeões que vi na rua, mas, além de demonstrarem nervosismo, não consegui obter nenhuma informação relevante sobre sua identidade. Quando estava prestes a desistir, no entanto, senti o peso de uma mão sobre meu ombro direito:

— Você deve ser a Makoto-san. — Quando me virei, havia um homem, vestido em trajes tradicionais e esverdeados, olhando para mim com uma expressão séria. — Peço perdão por não a ter recebido quando chegou há alguns dias, mas certos afazeres me mantiveram demasiado ocupado.

— Você deve ser...

— Otani. Iwasaki Otani, o pai da Suzu. — Anunciou enquanto se curvava em uma mesura educada.

— O senhor é o chefe do vilarejo. — Retribuí a mesura na mesma medida. — É um prazer conhecê-lo. E não se preocupe com nada, pois eu consegui me instalar perfeitamente.

— Fico feliz em ouvir isso. — Ele sorriu amigavelmente. — Eu estou a disposição para qualquer coisa e eu espero que consiga achar tudo o que precisa aqui em Yamakura.

— Obrigada, Iwasaki-san, o senhor também pode contar com os meus serviços a qualquer momento. — Depois dos cumprimentos amigáveis, aproveitei a oportunidade para perguntar: — O senhor conhece todos aqui no vilarejo, não é?

— Sim, é claro.

— Eu vi uma mulher de Kimono preto, com um cachecol azul em torno do pescoço, apesar de estarmos no verão. O senhor a conhece?

Ele ficou em silêncio, parecendo um pouco assustado com a minha pergunta repentina, como se tivesse sido pego desprevenido.

— É a Imamura-san.

— Ela me parecia um tanto doente. — Insisti. — Se for preciso, eu ficaria feliz em oferecer os meus serviços.

— “Doente” é uma forma de chamar isso.

Isawaki-san me explicou que a mulher, que era viúva, costumava viver com a enteada naquele vilarejo, após a morte de seu marido, há muito tempo. Apesar dos boatos de que ela maltratava a filha do falecido, deixando-a passar fome, mantinha uma boa relação com os outros aldeões e nunca tinha causado problemas no passado.

— Depois da morte de Chinatsu-chan, sua enteada, que todos nós gostávamos muito, Imamura-san passou a demonstrar um comportamento muito estranho, quase obsessivo, com comida.

— Como assim?

— Como você deve imaginar, nós dividimos a produção da comida entre todos os moradores, baseado no número de pessoas por família, que é calculada para ser consumida durante um mês. A parte que cabe à Imamura-san, no entanto, parece se esgotar em apenas alguns dias. — Traços de preocupação eram evidentes no rosto do chefe do vilarejo. — Ela exige mais, as vezes rouba, toma a força, e já causou confusão com os agricultores que trabalham na horta. A situação está se agravando a cada dia, e muitos dos aldeões esperam que eu dê um jeito na situação, mas eu ainda não achei uma solução porque não sei o que está acontecendo. Tentei conversar com ela, mas ela se mostrou aborrecida, e até violenta, quando toquei no assunto.

Ouvi com atenção o relato de Iwasaki-san e senti-me na obrigação — não apenas por curiosidade — de fazer alguma coisa a respeito. Embora a causa da conduta bizarra daquela senhora ainda fosse um mistério, haviam possibilidades de que as raízes fossem clínicas e eu não conseguia fingir que não estava vendo.

— Talvez, se eu lhe fizesse uma visita médica, eu pudesse averiguar melhor o problema e descobrir a origem.

— Isso seria ótimo! — O homem exclamou quase imediatamente após eu encerrar minha fala. — Se não for muito incômodo, é claro, seria de grande ajuda para nós.

Eu neguei com a cabeça e, depois de ele me indicar onde ficava a casa da viúva, despedi-me com uma reverência simplória e parti com a promessa de que faria o possível para solucionar aquela complicação.

Alcancei a residência, que parecia comum por fora, dentro de poucos minutos. Havia uma placa de madeira na entrada com o sobrenome dela escrito em Kanji. Olhei ao redor e não vi ninguém, todavia, quando eu estava prestes a adentrar a propriedade, senti uma presença clara ao meu lado.

— Você tem certeza que quer entrar aí?

Soergui as sobrancelhas quando o Bakeneko surgiu do nada, e, ao virar o rosto em sua direção, percebi que o dele estava voltado para a entrada da construção.

— Qual é o problema? — Eu o interroguei, ainda surpresa com sua súbita aparição. — Eu soube que ela está doente.

— Ah, eu com certeza não chamaria “aquilo” de doença. — Ele remexeu os bigodes. — Está mais para transformação.

— Eu não estou entendendo. — Franzi o cenho. — O que você quer dizer com isso?

— Há um Yōkai aí dentro.

Embora a sintaxe da frase fosse muito simples, o significado dela não conseguiu penetrar minha mente tão rápido quanto eu esperava. Meus olhos foram do gato para a porta, da porta para o gato, e então do gato para a porta novamente.

— Você tem certeza?

— Sim. — Afirmou com veemência. — Não sei quem está lá dentro, ou o que, mas eu posso sentir seu Reiki claramente.

Reiki?

— A energia espiritual que todas as criaturas vivas possuem. — Ele virou o rosto para mim. — Você não sabe mesmo ou só está brincando comigo?

Achei melhor não dizer nada e apenas prosseguir.

Esgueiramo-nos para dentro da área externa da casa e, depois de chamar várias vezes pelo nome da proprietária sem obter nenhuma resposta, deslizei a porta de correr com as mãos e espiei discretamente.

— Imamura-san?

Ao invés de uma resposta humana convencional, ouvi um ruído grave, porém compassado, vindo de um local ainda mais interior. Parecia o som que pessoas de quem eu cuidei faziam ao regurgitar, e a hipótese de que alguma coisa preocupante pudesse estar acontecendo foi o que me motivou a entrar, acompanhada do Bakeneko.

Adentrando a sala, não vi ninguém, mas reparei que alguns objetos estavam caídos no chão. Arrepiei-me ligeiramente quando hipóteses negativas transpassaram a minha mente, mas balancei a cabeça afim de afastá-las. Gemidos abafados capturaram a minha atenção e eu deixei que eles me guiassem até uma Fusuma que parecia separar aquele cômodo dos outros.

— Imamura-san, eu estou entrando. Eu espero que não se...

Calei-me de imediato quando me deparei com uma das imagens mais sinistras que eu já tinha tido o desprazer de presenciar em toda minha vida: a mulher, sentada no chão da cozinha rodeada de comida, coberta de molho vermelho, usava os cabelos — que formavam espécie de tentáculos — para pegar tudo ao seu redor e levar-lhe à boca. Seu rosto sustentava um semblante animalesco, perturbado, indicando que, além de ela estar completamente fora de si, aquela era uma situação extremamente grave.

Fiz menção de me aproximar, mas ela rosnou com a boca cheia de farelos.

— Não adianta. — o Bakeneko disse em uma voz que pareceu-me muito tranquila para uma situação como aquela. — Veja.

Quando a senhora Imamura virou-se para atacar um punhado de legumes esmagados no chão, o meu companheiro apontou, com o focinho arrebitado, a cabeça dela. Não demorei para perceber, muito embora não sem sentir ainda mais pavor, que havia uma boca extra, recheada de dentes pontiagudos e lábios grossos, que mastigava incessantemente tudo que era posto dentro dela, na parte traseira de seu crânio.

Levei a mão aos lábios tamanho o horror que me acometeu. Ainda que a primeira impressão que eu tinha tido dela não tivesse sido uma das melhores, devido à sua aparência enferma, eu não esperava encontrá-la naquela situação degradante e monstruosa.

— Ela se tornou uma Futakuchi Onna. — Pronunciou o gato.

— Uma o quê?

— “Mulher de Duas Bocas”. — Enquanto ele falava, balançando a longa cauda, eu reparei que a mulher tinha acabado de abocanhar uma tigela de barro e a esmagado entre os dentes. — É um tipo de Yōkai que nasce de um humano ainda vivo e que faz com que ele adquira uma segunda boca cujo apetite é totalmente descontrolado. Em certo ponto, ele é incapaz de diferenciar o que é comida e o que é não é, e sente necessidade de devorar tudo ao seu redor.

— Mais... — sua voz trêmula e fantasmagórica chamou a minha atenção e eu virei o rosto para ela a tempo de observá-la arrastar-se em minha direção feito uma serpente, peçonhenta e faminta. — Eu estou com fome...

Nós recuamos, retornando para a sala, e fechamos a porta da cozinha no intuito de ter tempo de elaborarmos um plano de ação.

— O que eu devo fazer? — Indaguei, nervosa. — Como eu posso curá-la?

— Não existe cura. — O felino caminhou para além de mim. — Não tem como salvá-la agora que já passou pela metamorfose.

Eu ainda era capaz de ouvir os grunhidos selvagens da entidade meio-humana e meio-monstro vindos do aposento ao lado, e um aperto no coração fez-me temer por seu destino. Aceitar a ideia de assistir a vida humana de Imamura-san chegar ao fim, ainda que nossa relação não fosse estreita o suficiente para que eu a chamasse de amiga, era uma possibilidade inaceitável a meu ver tanto como pessoa quanto como médica. Ninguém no vilarejo compreenderia a natureza do problema e com certeza tomariam atitudes drásticas e de cunho violento.

Decidida a não entregar os pontos, ajoelhei-me no chão, após abrir a urna, e pus-me a procurar pelo punhado de Umeboshi que eu tinha certeza de ainda possuir. O Bakeneko, que pareceu não entender o que eu estava engendrando, moveu o corpo esguio, embora grande, em minha direção e examinou com olhos curiosos a voracidade com que eu vasculhava meus próprios pertences.

— O que você está fazendo? — Ele me perguntou.

— A única coisa que eu consigo pensar. — Retirei vários saquinhos e potes das pequenas prateleiras da urna e os coloquei no chão ao meu redor. — Dar um nó no estômago dela.

A porta que nos separava de Imamura-san tremelicou, denunciando que ela estava tentando derrubá-la, e eu mirei-a assustada. Meu escudeiro felino, depois de bufar, contrariado, saltitou até o local e pressionou seu corpo grande contra a superfície áspera da madeira.

— É melhor que a sua ideia funcione. — Vociferou. — Porque, se não der, e nós ainda estivermos aqui, seremos as próprias refeições!

Em movimentos rápidos, mas ainda trêmulos, soltei as folhas de bambu que embrulhavam o punhado de Umeboshi que eu tinha adquirido — inicialmente para comer — e joguei sobre ele todas as amostras de ervas, plantas medicinais e substâncias de sabor forte que me vieram à mente. Após ter misturado tudo às ameixas, obtive como resultado uma pasta escurecida, viscosa, espalhada assimetricamente pelas folhas.

Ergui-me e caminhei até a porta que o Bakeneko estava segurando bem a tempo de sentir o forte impacto — que eu presumi que fosse o do corpo da senhora Imamura — que fez-me rememorar as imagens horrendas da mulher em minha mente.

— Pronta? — Ele me perguntou.

Balancei a cabeça em sinal positivo.

— Imamura-san? — Chamei em alto tom de voz. — Meu nome é Kikui Makoto, eu sou médica, e acabei de chegar no vilarejo. Eu quero ajudá-la.

— Ajudar... — Finalmente ouvi sua voz humana novamente.

— Sim, ajudar. — Repeti. — Eu tenho algo aqui comigo que talvez possa resolver o seu problema.

— Você tem comida? Eu estou com muita fome!

Olhei para o Bakeneko, que me olhou de volta, e nós concordamos mentalmente.

— Sim, eu tenho comida aqui comigo, uma comida muito gostosa! — Anunciei. — Eu vou abrir a porta, tudo bem? Por favor, fique calma.

E conforme eu a alertei, usei meus dedos para, vagarosamente, permitir que um vão minúsculo fosse aberto na entrada da cozinha. Aproximei o rosto da fenda, afim de procurar a viúva transformada, mas, de repente, um tentáculo em formato de cabelo surgiu e fez-me recuar ao tentar me atingir.

— Eu estou com fome! — Ela berrou.

Sem demora, pus o punhado de Umeboshi modificado ao alcance dela, que rapidamente o puxou para si, deixando no ar apenas o som mole do alimento sendo devorado sem cerimônia nenhuma. Ela então soltou a porta, e nós tivemos tempo de fechá-la e travá-la com o nosso peso.

— Quanto tempo devemos esperar para, você sabe, termos algum resultado? — Indagou o outro.

— Eu não sei... — Murmurou. — É a primeira vez que eu tento causar dor em um paciente ao invés de aliviá-lo.

Meu estado de espírito não era dos melhores; me sentia péssima e, pela primeira vez em todos os anos que estudei para executar aquela função, perguntei-me se eu tinha feito a coisa certa. Era um palpite, uma aposta criada em circunstâncias extremas, e eu com certeza tinha intenção de fazê-la melhorar, porém, naquele momento, eu me encontrava profundamente conturbada com as consequências do meu ato.

Durante o tempo que se seguiu, dentre gemidos de dor e objetos caindo aleatoriamente, eu e o Bakeneko permanecemos em silêncio, junto a porta, esperando um sinal positivo que veio, horas depois, na forma de uma súplica baixa e chorosa.

— Tem alguém aí? — Num tom genuinamente debilitado, ouvi tais dizeres cortarem o silêncio do cômodo adjacente. — Minha barriga dói...

Ergui-me em um salto e abri caminho à cozinha para encontrar minha “paciente” deitada no chão, de busto para cima, com um semblante de dor estampado no rosto. Aproximei-me dela, ajoelhando-me ao seu lado, e repousei delicadamente as mãos sobre seus ombros afim de ajudei-a levantar. Aproveitei a oportunidade para espiar, discretamente, o que tinha acontecido com a outra boca, mas os cabelos a cobriam completamente.

— Como se sente? — Indaguei sinceramente preocupada.

— Meu estômago dói e eu me sinto cheia. — Notei que ela visivelmente tinha dificuldades para respirar. — Eu acho que tem alguma coisa de errado comigo.

Minha ideia parecia ter dado certo, a acidez e o gosto forte da mistura que lhe dei produziu o efeito que eu imaginava — uma inflamação estomacal —, porém não sabia por quanto tempo funcionaria. Embora fosse evidente que ela já não mais fazia parte do reino humano completamente, eu tive receio de pronunciar as palavras que ela certamente não queria ouvir.

— Você se tornou um Yōkai, Imamura-san. — Tentei ser o mais sucinta possível. — Eu sinto muito.

O impacto da notícia pareceu ter sido forte e eu sinceramente nunca me imaginei dizendo aquilo para alguém.

— Ouvi dizer que tem a ver com algum tipo de maldição. — Continuei. — Tem a ver com...

— Avareza. — Ela me interrompeu e pronunciou-se com voz fraca.

Ela murmurou qualquer coisa sobre um castigo divino antes que eu a conduzisse até o seu Futon e pedisse que descansasse. Cobri-a, observando que ela logo adormeceu, e dirigi-me para o lado de fora da casa que — por ser quente e abafada demais — parecia ter roubado parte de minha vitalidade natural.

— Ela não é mais humana. — o Bakeneko surgiu pela mesma porta de onde eu vim e acomodou-se ao meu lado. — Você não pode mais trazê-la de volta.

— Eu sei. — Retruquei. — Mas escolher como viverá daqui para frente é uma tarefa que cabe a ela, não a mim.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, admirando o sol que, preparando-se para o espetáculo do crepúsculo, já se insinuava na altura do cume das árvores. Avistei alguns aldeões andando no centro da vila, na horta, e crianças correndo umas das outras. Era estranho imaginar que nenhuma delas fizesse ideia do que se passara naquela casa, ou que diversos Yōkai andavam ao seu redor.

— Você me ajudou. — Incitei um diálogo.

— É, ajudei. — Retrucou o gato. — Não devo nada a ninguém, especialmente aos da minha espécie, e eu decido que rumo dou a minha existência. Se é isso que a preocupa, esqueça.

— Por que eu posso vê-los? — Indaguei de repente para o gato.

Ele me encarou, fixando seus olhos sobre mim por alguns segundos, para então retornar à posição original e mirar o vilarejo assim como eu fazia.

— Eu não sei.

— Não sabe mesmo?

— Eu disse, mais cedo, que nem todos os humanos são capazes de nos ver mesmo que queira muito. Em contrapartida, algumas pessoas simplesmente não têm escolha. — Divagou. — Os Yōkai têm o direito de existir tanto quanto os humanos têm, mas, embora alguns de vocês matem por motivos simplórios, nós é que somos considerados monstros assustadores por causa da nossa aparência e dos nossos costumes. Não é curioso?

Eu o encarei de volta, assimilando suas palavras, e então fixei minha visão em uma rajada de folhas que resvalava tranquilamente sobre o vento em direção à montanha às minhas costas que me dizia mudamente que já era hora de voltar para casa.


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Notas finais do capítulo

Críticas e sugestões são sempre bem-vindas e prometo que responderei todos os comentários ainda hoje, seus lindos, amo vocês! ♥♥♥