Quatro anos depois

Nova Iorque mais uma vez era chuva. Dessa vez, o campus da faculdade se encontrava repleto de estudantes desesperados por algum lugar onde pudessem se esconder dos grossos pingos d’água. As férias de Natal estavam quase batendo à porta e a expectativa de alguns para voltar para casa era imensa. No meu caso, permaneceria no campus até as aulas voltarem. Não porque não tinha para onde ir, mas sim porque não queria ir, coisas completamente opostas.

Minha bota batia contra algumas poças de água e meu cabelo grudava no rosto enquanto corria por entre alunos em situações talvez piores do que a minha por não terem nenhum casaco para pelo menos amenizar o vento que acompanhava a chuva. Fomos pegos de surpresa e agora todos corriam para as últimas aulas da semana ou para seus blocos. Por sorte, eu já me encontrava liberada e tudo que deveria fazer agora era chegar no meu bloco, tomar um banho quente e ir para a cama, ler o final de semana inteiro e começar tudo de novo na segunda feira. Pelo menos esse era o meu plano até Kate, minha colega de quarto, entrar cantando.

— Bom dia, raio de sol! — Kate era morena, com uma pele bronzeada de sol mesmo que nenhum sol tenha aparecido nos últimos meses. Tinha um cabelo sedoso, que amanhecia sedoso todos os dias. Era sorridente todos os dias, e, convenhamos, era dona de um corpo lindo. Líder da torcida, super inteligente, risonha e completamente sexy, a menina me colocava no chinelo em poucos segundos. E por incrível que pareça, eu, a menina pálida e de cabelos castanhos sem graça, era melhor amiga daquele projeto de miss.

— Boa tarde, Kate. — abaixei o livro para dar a ela um largo sorriso e pousei a capa do romance no cobertor roxo. — Finalmente livre?

— Finalmente livre! — ela riu divertida, se jogando na cama e deixando o guarda chuva ao lado do armário. Ela estende os braços, sorrindo abertamente e virou o rosto para me encarar. — Pra onde vai esse final de semana? — Fiz uma leve careta com a sua pergunta e neguei com a cabeça bem devagar.

— Nenhum lugar. Meu plano pra esse final de semana é terminar de ler Orgulho e Preconceito antes da meia noite. — dei um sorriso a ela e voltei a me acomodar nos travesseiros confortáveis. Abro o livro onde o marcador me indicava e antes de conseguir ler pelo menos a primeira palavra, Kate se jogou em cima de mim. Resmunguei baixinho, respirando fundo para só depois fechar o livro mais uma vez e abaixar o olhar para ela, que me olhava com um sorriso nada normal nos lábios.

— Tem uma festa hoje a noite. Lá perto de casa… — ela fala lentamente, alargando seu sorriso a cada palavra. Abri a boca para negar o convite implícito e rapidamente ela balança as mãos em minha direção, soltando um “Shhhhh!” exagerado. — Olha, minha mãe te adora, faz séculos que você não vai lá em casa, passar o final de semana aqui é um programa deprimente e a festa vai ser super divertida! Por favor! — ela piscou os olhos de forma exagerada para mim e revirei os olhos exasperada.

— Não tenho roupa. — falei em uma última tentativa e dei de ombros como se fosse uma notícia trágica — Desculpa, mas a vida é assim. Não dá pra eu ir. — fiz uma cara de tristeza e afaguei o topo da cabeça dela de forma teatral. — Se conforme, Kate. — ela apenas revirou os olhos, estalando a língua no céu da boca e em seguida abriu um sorriso malicioso. Por alguns segundos consegui ficar surpresa com a forma que ela mudava de humor com naturalidade.

— Tenho roupas pra te emprestar lá em casa. Não se importe com isso. Leva só calcinha, okay? Porque isso ai já é intimidade demais. — ela deu uma risada e mais uma vez eu ia abrir a boca para negar. Ela afundou a mão em meu rosto, cobrindo minha boca e mais uma vez soltou seu “Shhhhhh!”. Suspirei pelo nariz, olhando para ela com os olhos caídos. — Sem mas. Você vai e ponto. — passei a ponta da língua na palma da sua mão e a morena se afastou rindo e limpando a mão em meu cobertor. Sorri para ela, sabendo que não poderia fazer mais nada e joguei o cobertor para o lado assim que ela se ergueu da cama.

— Tudo bem, quando vamos? — perguntei caminhando até o armário e pegando na parte de cima uma mochila verde musgo. Aquela mochila um dia já me trouxe lembranças nada agradáveis, que faziam meus olhos lacrimejarem. Mas agora era apenas uma mochila.

Kate fez o mesmo com a bolsa colorida dela e a deixou em cima da cama enquanto com uma habilidade extrema começava a guardar suas coisas.

— Quando terminarmos as malas. Vamos pra minha casa e de lá meu namorado leva a gente pra festa. — parei tudo deixei meu queixo cair de forma dramática. A agarrei pelos ombros no meio de um movimento seu e Kate riu com um brilho nos olhos.

— Namorado? — perguntei quase aos gritos e ela concordou com a cabeça de forma energética.

— Sim! Vai conhecer ele hoje. — semicerrei os olhos para ela, tentando esconder minha felicidade pela mesma e tentei parecer ao menos brava.

— Como assim você não me fala nada? É aquele do time de futebol? Preciso de nomes! — a balancei levemente e Kate deu uma risada travessa enquanto dava pulinhos no mesmo lugar. Nessas horas, eu realmente ficava impressionada com o quanto ainda parecíamos colegiais.

— Não falo, não falo, não falo! Vai conhecer ele hoje, ter as suas impressões e depois eu conto as minhas. Quero coisas sinceras. — ela sorriu para mim mais uma vez e me virou novamente na direção do armário — Agora vai terminar suas coisas. Quanto mais cedo chegarmos, mais cedo começa a diversão.

(...)

Quando finalmente entramos dentro da casa de Kate, não pude deixar de me surpreender - mais uma vez - com o quanto aquela casa era gigante. Dois andares, paredes de vidro, lustres gloriosos e decoração em branco e cinza. Realmente elegante. Sra. Buggs, como sempre, me recebeu com um sorriso largo e um abraço caloroso. Era uma mulher gordinha, tagarela e que adorava falar enquanto mexia as mãos animadamente, parecia nunca perder o assunto. Kate não deu a ela muita atenção porque parecia animada demais em ir se arrumar logo.

— Mamãe, nós vamos subindo. Tenho que fazer um trabalho muito árduo nessa menina aqui. — Sra. Buggs deu um risada, concordando com a cabeça e com um abanar das mãos se direcionou para a sala de tevê. Kate praticamente me arrastou escada a cima e não pude deixar de rir. Realmente, aquela animação toda estava começando a brotar em mim também.

Assim que fechou a porta do quarto, Kate ligou o som, onde tocava Britney Spears em um volume alto. Nunca gostei muito da artista em si, mas as músicas eram animadas o suficiente para me fazer dançar enquanto escolhíamos os vestidos. Tocava Radar quanto Kate me enxotou para o banheiro dizendo que “Você precisa estar gloriosa!” com uma entonação teatral. Tomei meu banho devagar, sorrindo comigo mesma por estar tão animada com algo que eu nem queria ir. Lavei meu cabelo, o hidratei e ao sair do banho passei um esfoliante que deixou minha pele com cheiro de pêssego. Sai do banheiro enrolada na toalha e Kate tomou meu lugar, me dando comandos para secar o cabelo do jeito adequado.

— Se você secar de outro jeito vai ficar cheio, e seu cabelo é de um ondulado lindo. Usa o babyliss pra destacar. — ela me deu uma piscadela camarada ao deixar tudo comigo e entrou no banheiro cantarolando. “Ops… I did it again” já estava na metade quando terminei o último cacho e dei uma bagunçada para parecer mais natural. Kate saiu do banheiro, assobiando e sorrindo enquanto eu encarava o armário a procura de um vestido adequado. Todos pareciam demais pra mim. Por fim, escolhi um vestido preto, com renda no colo e uma saia um tanto rodada. Achei simples e ainda assim bem bonito. Pedi ajuda a Kate que rebolava na frente do espelho e antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela já me empurrava um sapato de salto vermelho. Tentei argumentar mas ela apenas balançou a cabeça e me mandou sentar na cama.

— Como consegue se arrumar tão rápido? — resmunguei depois de ela já ter colado um vestido tomara que caia rosa chá de duas saias com faixas pretas nas pontas, um sapato preto de salto e feito uma maquiagem que destacava seus olhos escuros.

— Prática, querida. Prática. — ela riu baixinho — Agora para de se mexer porque eu não são mágica pra fazer certinho quando minha modelo fica em movimento. — Respirei fundo, me calando e passei a apenas sentir os movimentos leves que fazia em minha pálpebra, minhas bochechas e nariz. Vinte minutos mais tarde, Kate bateu palmas satisfeita e me mandou abrir os olhos mais uma vez. A fitei apreensiva e ergui as sobrancelhas. — Ai, eu sou uma artista. Devia investir nisso. — ela sorriu guardando o rímel na bolsinha e estendeu a mão para mim — Espera só mais um pouco. — Kate se virou e enquanto isso eu a segui com o olhar. Depois de vasculhar o armário, me trouxe uma bolsinha meio redonda e de tom avermelhado, assim como meu sapato. — Vai, agora olha. — Respirei fundo, me equilibrando nos saltos e caminhei até a frente do espelho. A menina que me encarou de volta nem parecia ser eu. Os lábios de um vermelho sexy, ondas castanhas descendo até pouco abaixo dos ombros, pernas longas e bochechas coradas não era nem um pouco eu. Isso sem falar nos olhos. Meus olhos levemente marcados eram grandes, alertas e sinceramente sedutores. Encarei o espelho por incontáveis segundos, só sentindo meu queixo cair e devagar me virei para Kate que me encarava com um sorriso orgulhoso nos lábios rosados.

— Eu estou linda! — ri animada, correndo, vulgo, andando o mais rápido que eu conseguia em cima daqueles saltos, até ela e lhe dei um abraço apertado. — Obrigada. — sussurrei apertando os braços a volta dela, que retribuiu um uma risadinha.

— De nada, Lia. — Por alguns segundos parecia que nossa amizade de pouco tempo se fortalecia ainda mais. Isso foi até Sra. Buggs abrir a porta do quarto de uma vez só.

— Kate! Cecília! Liam está lá embaixo esperando por vocês. — Kate se desgarrou de mim com um gritinho e respirou profundamente várias vezes. Pisquei algumas vezes, sentindo aquele revirar no estômago que ainda acontecia a cada vez que tocavam naquele nome perto de mim. A quatro anos esperava pelo momento em que essa sensação parasse de acontecer e com certeza ainda não tinha acontecido. Minha cabeça girou rapidamente, pensando as coisas mais absurdas que poderia acontecer e Kate começou a me puxar pelo braço. Balancei a cabeça, dando um sorriso trêmulo e meu estômago revirou mais uma vez.

— Pode ir descendo, eu tenho que colocar umas coisas na bolsa. — Kate estava tão animada que mal concordou com a cabeça e já saiu voando do quarto, gritando um “Te esperamos lá fora!”. Me sentei na cama, calculando mentalmente quais seriam as possibilidades do impossível. Calculei também quantas vezes eu já tinha passado pela mesma situação quando citavam esse nome e no final eu percebia que não se passava de uma coincidência. Por que agora seria diferente? Não havia nenhum motivo para me preocupar. Ri de mim mesma enquanto me levantava, colocando o celular, um batom e dinheiro na bolsa vermelha. Dei uma última olhada no espelho e, ainda com os dedos gelados, desci as escadas. Dei um abraço de despedida em Sra. Buggs, que me desejou uma noite divertida e logo voltou à sua tão amada sala de tevê. Esfreguei levemente um lábio no outro para espalhar o batom e abri a porta, estremecendo levemente com o ar gelado. Logo na frente da casa um carro preto estava estacionado e a frente da porta do passageiro Kate se agarrava em alguém que tinha os braços a sua volta. Dei mais um passo e forcei um pigarro divertido.

— Vou interromper. — disse risonha, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha esquerda. Agora meus dedos já estavam gelados de frio, e não de nervosismo. Liam nunca teve um carro preto.

Ouvi Kate dar uma risadinha e se virou para mim lentamente, deixando visível o homem que cobria com seu corpo a pouco tempo. Meu olhar focou primeiro em seu rosto e todo o meu corpo congelou. O cabelo cacheado caia bagunçado na testa e o sorriso largo que ele tinha nos lábios a poucos segundos desapareceu assim que ele pôs os olhos em mim. Continuei minha análise e seu braço esquerdo envolvia a cintura de Kate com firmeza, a mantendo junto a ele. Seu casaco preto se camuflava no carro mas era fácil ver sua mão a apertando contra ele. Voltei meu olhar para seu rosto, sentindo toda gota de sangue do meu se esvair e a respiração me faltou duas vezes e falharia uma terceira se Kate não interrompesse animada.

— Cecília, Liam. Liam, Cecília. — ela apresentou fazendo sinais em nossas direções e sorriu abertamente para nós. Devagar virei meu rosto sem qualquer sinal de sorriso para ela e mecanicamente forcei um. Por dentro, meu estômago gelou como se pontas afiadas de gelo cutucassem sua parede e meus dedos agora eram gelados de uma forma dolorosa.

— Prazer. — ele disse alto o suficiente para que eu escutasse e soltou Kate, andando em direção ao lado do motorista.

Foi assim. Pra ele, ele não me conhecia.