Apenas uma garota... escrita por Luana Nascimento


Capítulo 36
Capítulo 35 - Dia louco das decisões


Notas iniciais do capítulo

Olá, coleguinhas, como vocês estão?
Saudades? Bem, aqui está mais um capítulo ;)



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Jaden

Olhei pela porta transparente da loja do Mr. Wang: chuva de novo. Chovia desde as três da manhã e já eram quase onze. É, outra noite sem dormir. Meu ciclo de sono estava uma bela merda.  Pedi para o meu chefe me deixar trabalhar pela manhã, pois tia Riley convocara um advogado para “esclarecer” minha permanência em Vancouver pela tarde, favor que ele concedeu e só Deus sabe como.

O mercado estava movimentado àquela hora, os clientes investiam em batatas, frutas, lentilhas, bebidas. Nada mais justificado, o ano novo seria dali a dois dias. Eu organizava as prateleiras, mas minha mente não estava ali e nada parecia muito real.

Mr. Wang estava estranhamente compreensivo comigo, talvez pelo fato dos meus pais terem morrido. Não sabia se era normal sentir a dor aumentar e ao mesmo tempo ficar mais controlada a cada vez que eu pensava nesse conjunto de palavras juntas e tão reais que pareciam ser pura ilusão.

Cacete, a situação não estava boa.

— Jaden, você entendeu? — Mr. Wang indagou.

— O quê? — Ele falou alguma coisa? Meu chefe suspirou e meneou a cabeça.

— É por isso que, no meu país, as pessoas que estão em luto não trabalham.

— Desculpe, Mr. Wang.

— Ah, não é sua culpa, meu jovem, não é de ninguém. — ele me pareceu chateado. — Só pedi para você ser caixa enquanto o estagiário vai ao banheiro.

O estagiário, sobrinho-neto do Mr. Wang, estava aproveitando a folga de natal e ano novo para ganhar uns trocados.

— Sim, senhor. — concordei, indo à frente da loja. — Peço desculpas mais uma vez.

Substituí o caixa e quase me enganei com o troco em uma compra. Quando o cara de quinze anos voltou, procurei embalar os produtos dos clientes para tentar agilizar a fila. Uma idosa simpática indagou:

— Por que um rapaz tão bonito está com uma carinha tão triste?

Sorri de leve:

— Apenas alguns problemas em casa, Mrs. Johnson.

Clientes fixos podem conhecer muito bem os trabalhadores de um local.

— Ah, todos temos. Mas valorize seus pais, certo? Sempre ouça os conselhos deles.

Uma fisgada cruel e violenta de dor atingiu meu coração e por um momento, minha visão ficou turva pelas lágrimas. Acho que uma facada doeria menos. Enchi meus pulmões de ar e a respiração pareceu trêmula.

— Claro. — murmurei. — Feliz ano novo e volte sempre.

Quando a fila por fim se dissolveu, o cara do caixa comentou:

— Mrs. Johnson é meio sem noção.

— Ela não fez por mal. — retruquei. — Ela não sabe.

— Vá lavar o rosto. Parece que você levou um chute no saco.

Ele tinha a mesma linguagem rude do tio-avô.

— Não sei dizer se foi pior ou no mesmo nível — admiti indo ao banheiro.

Lá, olhei-me no espelho: meus olhos estavam vermelhos e não soube dizer se ainda era das lágrimas ou das horas não dormidas. Senti-me tão mal que tudo o que quis fazer foi ir embora, mas me contive. Lavei meu rosto e tentei fechar a abertura que fez jorrar toda a dor para fora. Não é isso que as pessoas fazem? Remontam-se quando se quebram? Só não sabia se conseguiria fazer aquilo tão cedo.

Saí do banheiro e encontrei o Mr. Wang, parecendo me esperar.

— Sua vida está muito movimentada, não é, meu jovem?

— É — respondi simplesmente.

— Ainda lembro quando cheguei na américa. Movimentado era pouco. Meu pai morreu no processo. Minha mãe quase morreu do desgosto. Se o preconceito faz negros e veados morrerem hoje, imagine em 1940. — A linguagem dele não era nada sutil. — Qualquer ser de olhos puxados era japonês.

Esfreguei meu rosto. Em outros tempos, me interessaria pela história do ancião, mas eu estava sem saco algum para ouvi-lo, me sentia fodido, uma dor de cabeça igualmente fodida e mesmo no mercado, o frio me atingia, o que não fazia com que eu me sentisse melhor.

— Mr. Wang, não estou me sentindo bem, acho que vou ficar gripado. Posso sair mais cedo hoje?

— Bem, está perto do seu turno acabar. — Não, não estava, faltava uma hora e para ele, era muito tempo. — Vá embora. E tome um bom chá!

Agradeci e saí, pondo as mãos no bolso da calça jeans. Para onde eu iria? Meu apartamento nunca pareceu uma ideia tão claustrofóbica. Tinha parado de chover, então poderia ir para outro lugar, mas onde? Queria conversar com alguém, mas quem? Ben? Não, não saberia se ele entenderia. Dave? Só Deus sabe onde ele estaria. Mel? Talvez estudando programação. Shelly? Não, não depois do dia anterior. Tentei falar com ela, mas ela não atendeu. Não soube dizer se foi intencional ou se ela não viu, mas mesmo assim: por que ela não ligou de volta? Esbarrei com alguém na rua.

— Desculpe — murmurei.

— Tudo bem, Jaden — a voz soou familiar. Ergui a cabeça e vi alguém que eu me lembrei graças a sua aparência pouco comum de tranças prateadas, rosto moreno, terno e sapatos.

— O senhor é o avô de Mel, certo?

— Sim. — Seu sorriso afável transformou-se em uma expressão preocupada. — Está tudo bem? Parece-me abatido, meu jovem.

— Eu... — pensei em mentir, mas seu olhar penetrante dizia que aquilo não funcionaria. — Não estou muito bem mesmo.

— Posso imaginar o porquê. Tem dias mais difíceis que outros, não é? — Concordei com a cabeça, passando os dedos no meu nariz. — Quer conversar sobre?

— Não, não quero incomodar o senhor com esses assuntos nesses dias em que todo mundo está festejando e...

— Não se incomode com isso. — Sua interrupção foi sutil. — Podemos nunca ter conversado direito, mas vai ser bom.

Seu olhar refletia uma sinceridade tão firme que não pude recusar.

— Tudo bem. — assenti.

— Aqui não é o melhor local. — Visto que estávamos parados no meio de uma rua movimentada de Downtown, concordei. — Tem alguma sugestão?

— Está frio, mas queria ir a Kitsilano.

— Bem, o melhor lugar é aquele em que nos sentimos bem. Acompanhe-me.

Quando vi Mr. Callahan destravar um BMW, assobiei.

— Essa é uma bela máquina.

— Cortesia dos Lancaster. — ele sorriu.

— Porra, o senhor bem que poderia falar com eles para me dar uma cortesia dessas.

Mr. Callahan riu. Entramos no carro e ele puxou conversa enquanto dirigia:

— O que fazia na rua, Jaden?

— Eu não consegui continuar no mercado. — Contei o episódio da Mrs. Johnson e como meu chefe me liberou. — Estava pensando no que fazer quando esbarrei com o senhor. Meu apartamento não pareceu o local mais adequado para ficar só. Pensei em ligar para algum dos Snakes, mas não sei se eles entenderiam. É uma situação complicada.

— Sim, é mesmo. — ele concordou enquanto dirigia, os olhos fixos na estrada, mas que me olhavam de vez em quando. — Mas eles são seus amigos. Vão estar com você sempre que precisar deles, não importa se eles não entenderem por completo a situação que você se encontra. — Houve uma breve pausa e ele mudou o assunto: — Podemos estacionar aqui e caminhar um pouco.

— Não posso demorar muito, tenho um compromisso às 03:00 p.m.

— Você não vai almoçar? — ele estranhou.

— Ah, tem esse detalhe também.

— Vamos procurar um bom restaurante. — Mr. Callahan determinou.

Não demorou muito para acharmos um. Era uma espécie de cantina italiana bem organizada e um tanto luxuosa. Trattoria.

— Estou sem dinheiro. — avisei.

— Não se preocupe com isso, é um papel que as pessoas dão um valor excessivo.

— Espero que o senhor responda isso ao garçom quando ele pedir a conta. — ensaiei um sorriso irônico que fez o homem rir novamente.

O jovem senhor pediu uma mesa reservada e foi prontamente atendido. Cacete, eu demoraria anos para voltar ali se fosse depender do resto do que eu recebia com o Mr. Wang. Fizemos nossos pedidos e, enquanto esperávamos, Mr. Callahan comentou:

— Gostei muito do seu recital. Você toca com a alma dos artistas.

— Obrigado. Foi um bom dia, aquele.

— Sem dúvida.

— O senhor dançando hip-hop foi algo inédito.

— Essa foi a intenção.

Sorri.

— Agora é a minha vez de perguntar: o que o senhor fazia na rua?

— Estava prestes a procurar um bom lugar para comprar alguns itens que faltou na mesa dos Lancaster. Minha intuição me disse para ir por aquela rua e você esbarrou em mim.

— Intuição?

— É. Todos temos. Por exemplo, já percebeu algo de diferente em Shelly?

Meu coração acelerou algumas batidas na menção daquele nome.

— Sim, ela me parece... reservada demais. Tem algo que parece incomodá-la. Acho que o senhor notou também, não?

— Sim. E só cabe a ela nos dizer o que é. Isso é só um exemplo bem simples de como nossa intuição é. Como você acha que será sua tarde?

— Cansativa. Terei uma espécie de audiência com a minha... tia? Com a irmã de Adele para eu poder ficar em Vancouver. Não queria ter que me mudar novamente. Não sei se posso tentar me emancipar, farei 18 anos só em fevereiro...

— São preocupações precoces para um jovem. — ele observou. — Você tem um advogado?

— Um público, mas não gostei muito dele. Queria muito ficar em Vancouver. Se aquele cara me garantir isso, já ficarei feliz.

Mr. Callahan levou a mão ao bolso e olhou o visor do celular:

— Mr. Lancaster. Se importa?

— Fique à vontade.

O homem distanciou-se um pouco e atendeu a ligação. Nossos pedidos chegaram e eu o esperei. Quando ele voltou, comentou que algumas ligações ele não poderia deixar de atender, o que entendi. Afinal, ele estava no turno de trabalho dele, eu acho.

Se eu não estivesse em um local tão rebuscado, teria devorado com mais ferocidade o filé à parmegiana e o espaguete. Quando acabamos, Mr. Callahan pagou a conta e saímos do restaurante. Antes de caminharmos, tivemos que voltar ao carro, já que o Trattoria ficava um pouco longe da praia. Seguimos pela rua Cypress e depois pela Cornwall (que nome estranho) até estacionarmos de novo.

Olhei para a praia: pouquíssimo movimentada, embora o sol tivesse surgido depois de muita chuva. Algumas pessoas passeavam com seus cachorros na calçada. Meus pais sempre adiaram a ida a Kitsilano. Eles teriam gostado. Respirei fundo, tentando espantar a tristeza que insistia em se instalar. Fomos à areia da praia. O homem tirou os sapatos e as meias, sentando-se em cima deles. Fiz o mesmo com os meus tênis. A areia estava gelada, mas não me incomodei.

— Como você está se sentindo hoje, Jaden? — ele indagou quando nos acomodamos na areia. Suspirei.

— É um daqueles dias que dói mais. — hesitei, mas fiz uma pergunta que me fazia com mais frequência do que gostaria: — A dor fica realmente menor depois de um tempo?

— Pode parecer que não, mas fica. Vai ficar mais suportável. Por ora, você precisa sentir a dor. Algumas pessoas dizem para fugir, mas quanto mais se foge da dor, mais ela fica dolorosa quando ela o reencontra. Não é sobre enfrentar, é sobre aceitar, deixar fluir.

— Eu ainda nem acredito que isso é real. — comentei ao olhar para o mar. — Fico me perguntando se as pessoas olham para si e só veem dor, assim como vejo.

Tentei enxugar a lágrima discreta que caiu do olho direito, mas Mr. Callahan impediu:

— Não é luta, Jaden, é aceitação.

Fechei os olhos e deixei que as lágrimas fluíssem. Não foi nada ruidoso: apenas a praia continuava com suas ondas e o vento assobiava de vez em quando. Não solucei nem gritei como imaginei que faria quando não conseguisse mais evitar o choro, apenas deixei as lágrimas caírem. Senti o braço do Mr. Callahan nos meus ombros, afagando minhas costas com gentileza e amizade em igual silêncio. Não soube dizer quanto tempo fiquei assim até que abri os olhos e tentei reestabelecer meu equilíbrio.

— Foi muito súbito. — minha voz soou baixa e estranha. — Eu ainda posso vê-los organizando a casa, dançando juntos ou falando comigo. É tão estranho, eles eram tão animados e eram tão vivos, eu simplesmente acho injusto.

— Entendo sua dor. Ninguém nunca está pronto para a morte quando ela chega, mas há situações em que ela é esperada, como a velhice ou doença. Com seus pais, não se podia esperar a morte. Quem poderia imaginar que aquela véspera de Natal fosse acabar daquela forma? Quem imaginaria alguém falecendo por causa de uma bala perdida ou de um atropelamento? Jaden, sua dor é justificada. Terá dias mais difíceis que outros, onde a dor vai parecer lhe sufocar. Nesses momentos, encontre alguma forma de aceitá-la, de deixá-la fluir. Não hesite em chamar algum amigo, eles vão lhe ouvir.

Respirei fundo e enxuguei meu rosto com minha mão direita.

— São bons conselhos — reconheci.

— Você não é obrigado a segui-los. Também terão dias que você vai fugir da dor, mas ela será uma amiga depois de um tempo. — ele olhou o relógio de pulso: — Acho que você precisa ir.

— Que horas são? — indaguei, me recompondo.

— 02:15 p.m.

— Será que consigo chegar ao Centro de Diálogo Morris J Wosk em quarenta e cinco minutos?

— Não é tão longe. Você me recomenda o mercado que você trabalha para comprar algumas coisas?

Pensei um pouco. Do jeito que aquela família parecia rica, faltaria champanhe e alguns outros artigos de rico.

— Depende. Lá não tem caviar, mas tem cogumelos e camarões de alta qualidade.

— É o suficiente.

— Obrigado, Mr. Callahan. Foi bom. — agradeci quando nos acomodamos no carro e começamos a nos mover.

— Falei que seria — ele deu uma piscadela.

— Como os Lancaster são? — indaguei.

— São boas pessoas. Se você visse Mr. David, o acharia intimidador, mas são ossos do ofício, é um bom homem. Lady Angel também tem uma postura um tanto sisuda em público, ninguém desconfia o amor que ela dá aos filhos. Ou que tenta dar. Você conheceu Carter, certo?

— Ah, o pirralho punk do skate?

Mr. Callahan riu.

— Sim, ele. Dá tanto trabalho quanto David quando tinha a mesma idade, mas é um bom rapaz. E tem a doce Eleanor, uma menininha linda de seis anos. Eles tinham outro filho, mas... — Vi a expressão do homem tornar-se sombria pela primeira vez.

— Entendo.

— Foi muito difícil para os Lancaster superar essa perda.

— Sinto muito. — Xinguei-me mentalmente depois de dizer isso: — Não são boas palavras, mas... entendo.

— Eu sei. — Seu sorriso bondoso era fraternal. — Acho que chegamos.

— Ah, chegamos sim.

Ouvi batidas no vidro da minha janela. Abri e um cara com um terno cor de areia sorriu:

— Olá, Tommy! Esse é meu cliente? — Olhei confuso para os dois. — Caramba, eu só vi essa ruga confusa em...

— Eu sei, Don. — Mr. Callahan cortou com uma suavidade surpreendente. — Você já está a par de tudo?

O cara ergueu a maleta:

— Está tudo aqui.

— Jaden, esse é Donald Lancaster, um bom advogado. — Mr. Callahan me apresentou o homem com tranquilidade, como se eu mudasse de advogado todos os dias. — Ele vai cuidar do seu caso.

Não soube bem o que dizer:

— Mr. Callahan, mas... como? Por quê? Eu...

Sim, patético, mas porra, foi muito rápido!

— Você é um bom rapaz, acho que merece. Vocês precisam conversar antes da audiência. — Mr. Callahan abriu a minha porta: — Foi um prazer, Jaden.

— Tommy, você sabe que conversaremos depois, não sabe? — Donald olhou sério para o motorista, que sorriu:

— Claro que sei. Nossas conversas são muito proveitosas.

— Mr. Callahan, não sei como agradecer. — admiti quando saí do carro.

— Fique em Vancouver, seja feliz. Até logo, jovem lince. Don.

Um breve aceno e ele fechou a porta, dirigindo não sei para onde. Ser chamado de lince era o de menos em comparação ao quanto aquele dia tinha ficado louco. O advogado e eu ficamos a sós. Ele era um homem peculiar. Os cabelos marrons eram curtos e ondulados, os olhos castanho-claros meio esverdeados, cercados por algumas rugas, inspiravam firmeza e confiança, assim como sua postura e porte. O rosto oval e o queixo proeminente indicavam alguma altivez. Observei tudo isso depois, porque ainda estava confuso.

— Primeiramente, boa tarde. — Donald sorriu. — Meu primo pediu que eu procurasse seu nome e assumisse seu caso. Jaden Pendlebury, certo?

— Sim. — apertei a mão que ele estendeu. Ele riu agradavelmente.

— Meu Deus, você ainda parece completamente confuso. Vamos entrar e ver se conseguimos um local reservado. Temos meia hora.

Admirei rapidamente o Morris J Wosk. "Pode ser útil algum dia!" Você não imaginaria o quanto, Shelly. Entramos no prédio e conseguimos uma sala separada.

— Peguei sua ficha com o advogado antigo, acho que ele não gostou muito da mudança. — Ele tirou os papéis assim que me sentei. Ele continuou em pé, o rosto sério e reflexivo. — Vamos aos fatos: pelo que entendi, seus pais adotivos vieram a falecer e a irmã de Mrs. Pendlebury quer lhe levar para Sacramento, certo?

— Sim.

— Mas você não quer.

— Mudei-me com meus pais em julho, perto de agosto. Faz pouco tempo que consegui alguma estabilidade, não queria que minha vida ficasse mais instável do que já está.

— É um bom argumento. — ele anotou algo. — Mas ela pode dizer que ela é sua família e que sua estabilidade está com ela.

— Verdade. Cacete, vai ser complicado.

Então, ele esclareceu algo que me deixou feliz por ele estar do meu lado e não do lado contrário:

— Claro que vai, mas a advocacia não envolve argumentos perfeitos, porque estes não existem; envolve quão bem você pode defendê-los e deixá-los possíveis.

Depois de pensar em algumas coisas, Donald lembrou:

— Ainda temos a questão do dinheiro dos seus pais. — Esfreguei meu rosto com as duas mãos. Ele provavelmente notou o gesto, pois comentou: — Imagino o quanto isso seja desgastante para você.

— É, mas quanto mais cedo se resolve, melhor, certo? — olhei-o, resignado e decidido. Donald me olhou com estranho interesse, como se já tivesse me visto em algum canto:

— Sim, verdade. Quanto você quer?

— Nada. — não titubeei.

O advogado ergueu as sobrancelhas:

— Não é sobre o que você quer, mas o que você precisa. Já tem moradia?

— Um apartamento em Chinatown. Trabalho meio período como caixa de um mercado.

— O que você ganha supre totalmente suas necessidades?

— Não exatamente. — Lembrei da conta que eu tinha em Mr. Wang, que não era nada pequena.

— Pelo que os papéis dizem, seus pais deixaram $10,000.

— Esse seria o dinheiro da minha faculdade.

— Sim, tem isso no testamento.

Olhei-o, surpreso.

— Eles deixaram um testamento?!

— Sim. Relativamente recente, por sinal. 24 de novembro de 2003.

— O primeiro dia útil depois que descobri que era adotado. — refleti. — O que diz?

— Você pode se emancipar, considerando que você trabalha e mora só. Também diz para você ficar com 60% do dinheiro.

Seis mil dólares. O que eu faria com tudo aquilo?

— Alguma sugestão? — perguntei àquele homem que conhecia não tinha sequer meia hora.

— Deixar no banco e aplicar juros compostos. Estamos em um bom momento para isso.

— Ainda terei que lhe pagar, certo?

Donald sorriu, aqueles sorrisos que imaginei ele dando estando sentado em uma espreguiçadeira numa ilha caribenha.

— Cortesia dos Lancaster.

— Foi mais útil que um BMW. — considerei e ele sorriu ainda mais:

— Verdade.

Planejamos tudo e quando vimos, já eram 03:00 p.m.

— Vamos, meu jovem cliente. — Donald organizou cuidadosamente os papéis. — Não é de bom-tom chegar atrasado em uma audiência.

Saímos da sala no exato momento que Riley chegou no corredor em que estávamos. A audiência seria duas salas depois da que Donald e eu estávamos.

— Boa tarde, Jaden. — ela cumprimentou.

— Boa tarde. — retribuí. — Espero que tudo se resolva.

— É o que todos desejamos.

Entramos na sala e sentamo-nos nas devidas cadeiras. Riley ficou de frente para mim e os advogados ficaram de frente para o outro também. O juiz sentou-se na cabeceira da mesa. Nunca vi um blackpower como sinônimo de intimidação. Orgulho das origens africanas? Um penteado muito foda? Sim, sem dúvida, mas não como algo intimidador.

A audiência foi desgastante de início, mas quando Donald mostrou o testamento dos meus pais, as coisas tomaram um rumo que me foi mais favorável.

— Onde achou isso? — o advogado de Riley pareceu ultrajado.

— Cartório de Vancouver. Esse é só uma cópia, o original o juiz está lendo. Tenho mais cópias para vocês. Podem ver o original, assim que o juiz terminar com ele.

Todos leram atenciosamente o testamento, incluindo eu. Resumindo, além do que eu já sabia, descobri que eles também quiseram que eu ficasse com o carro, mas aquele veículo que tantas vezes fiz ligação direta estava destruído naquele momento.

— É um menino de 17 anos só em uma cidade. — Riley argumentou com uma preocupação que não era sua.

— Ele não está só, senhora. — Donald rebateu com voz calma e segura. — Tem amigos, trabalho, casa, estabilidade. Os pais dele permitiram isso e não acho que eles o fariam se não confiassem no meu cliente. Relativo à perda recente, claro que ele está abalado, quem não estaria? Somos humanos, sentimos dor, contudo sempre superamos nossas perdas. Todavia, para isso ocorrer, faz-se necessário tudo o que ele já tem aqui. A senhora estaria disposta a quebrar os desejos da sua irmã e do seu cunhado e a estabilidade recém alcançada do seu sobrinho para leva-lo a Sacramento, onde os amigos já não seriam os mesmos que ele deixou há uns meses, com sua independência bruscamente retirada?

Cacete, ele era bom. Riley desviou o olhar para a mesa, parecendo pensar. Meu advogado prosseguiu:

— Meu cliente e eu pensamos em uma solução que agradará ambas as partes e à vontade dos Pendlebury: ele mantém seu padrão de vida do jeito que está, se submete a acompanhamento psicológico — isso foi ideia dele — e pode lhe visitar e lhe ligar sempre que possível. A senhora recebe os 40% que lhe cabe e meu cliente deixa a parte dele aplicada em juros compostos no banco. Esse dinheiro já ficará guardado para a faculdade, podendo tirar de 15 a 20% do dinheiro em casos de alguma necessidade extrema. Assim como ele pode lhe visitar, a senhora pode visita-lo sempre que possível.

— Sua proposta é interessante, Mr. Lancaster. — o juiz considerou. — Alguma dúvida de sua parte, Mrs. Riley?

— Temos também a questão da indenização da empresa do caminhão e da casa que os Pendlebury deixaram. — ela lembrou.

— Isso pode ser facilmente resolvido. — Donald considerou. — Jaden, gostaria de se pronunciar?

— Quero algumas fotos, meu guarda-roupa, minha antiga cama, algumas louças e lençóis. — minha voz saiu meio rouca, mas acho que consegui passar firmeza. — Quanto ao dinheiro da venda, penso em dividirmos igualmente em conjunto com a indenização, a não ser que deseje ficar com a casa.

— Minha cliente não sabe bem o que fazer com a casa, mas concordamos que a divisão igualitária é a melhor saída — o advogado de Riley se pronunciou.

— Podemos deixar a casa fechada enquanto não decidimos. — Riley sugeriu.

— As duas partes concordam? — o juiz questionou.

Concordamos e depois de rever todos os aspectos do acordo, a audiência foi encerrada com Riley assinando minha emancipação.

— Espero que não se arrependa, Jaden. — ela advertiu.

— Não vou. — afirmei.

Despedimo-nos, restando apenas Donald e eu. Eram 06:15 p.m. Mal acreditei que tinha passado tanto tempo ali dentro.

— Para onde vai agora? — ele perguntou.

— Para casa. Estou cansado, foi um longo dia. — Levei minha mão à nuca, alongando meu pescoço. Notei que Donald me encarava com uma espécie de desconfiança e alegria: — Algum problema?

— Nenhum, você só parece muito alguém que conheço. — ele sacudiu a cabeça. — Posso lhe dar carona, se quiser.

— Vou aceitar.

Entramos no Mercedes dele (porra, tinha alguém da família dele que não era extremamente rico?) e ele comentou:

— Devo dizer que a forma como resolvi seu caso foi complicada. Tive que resolver muita coisa em pouco tempo. O passo inicial foi entrar em contato com o antigo advogado para pegar os documentos dos envolvidos. Ele não tinha procurado nenhum testamento. Por que ninguém pensa nisso? Enfim, depois pedi aos meus assistentes para ligar a todos os cartórios da cidade para descobrir se os Pendlebury não haviam feito nenhum testamento. Achado o testamento, tive que preparar toda uma documentação em aproximadas duas horas.

— Caramba... não sei porque Mr. Callahan fez tudo isso.

— De minha parte, não se preocupe. É nesses casos de última hora que vemos quem é eficiente. Sobre Tommy... acho que ele gosta de você. O velho tem uma intuição afiada em encontrar boas pessoas. Estou indo no caminho certo?

— Sim.

Depois de direcioná-lo, paramos na minha rua.

— Obrigado por tudo, Mr. Lancaster. O senhor é um bom advogado.

— Obrigado também, Jaden. O escritório estava maçante hoje. — Ele tirou algo do bolso: um cartão. — Precisando de mim, é só ligar.

Saí do carro dele e ele deu partida, saindo rapidamente da rua. Subi a escadaria e entrei no meu apartamento. Tomei banho, jantei cup noodles e assisti Family Guy, tentando não pensar no quão louco foi aquele dia. Não deu tempo pensar, porque eu estava tão cansado que acabei dormindo antes que pudesse desligar a televisão ou pensar em qualquer coisa.


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Notas finais do capítulo

Nada como as férias: já estou com os capítulos 36 e 37 quase prontos.
Internet em casa que é bom nada, mas temos amigos no IF para isso.
Pronto, Jaden vai ficar em Vancouver. Amém, igreja?
Críticas, comentários, sugestões e mensagens aleatórias abaixo vvvvvvvvvvvv
Até o próximo, queridos o/



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