Três vidas inteiras escrita por Blue Butterfly


Capítulo 3
Três




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Três dias. Era esse a somatória de tempo desde que Maura lhe contara seu segredo. Seu segredo, Jane passara a chamar o assunto assim porque a loira tinha pedido para que não contasse à ninguém. É claro, Jane jamais contaria sem sua autorização. Durante esses três dias a médica tinha evitado o assunto, exceto pela manhã seguinte à revelação. Ela tinha aparecido cedo, nas primeiras horas da manhã, para encontrar Jane lendo o jornal à beira da mesa. Hesitante, a loira tinha chegado perto, apoiado as mãos na bancada da cozinha e sussurrado um bom dia. Jane tinha tentado seu melhor sorriso, mas nada mudava o clima entre elas.

'Você poderia manter isso entre nós?' Foram as palavras seguintes de Maura e Jane se viu balançando a cabeça sem nem mesmo perceber.

A loira então andou até aonde a chaleira estava, se serviu um copo de chá e bebericou. O leve gosto adocicado invadiu sua boca e ela afastou a caneca para estudar o conteúdo, sem muito interesse. Ela ouviu o barulho de jornal sendo dobrado e, já prevendo o momento seguinte, ela ergueu os olhos para Jane.

'Eu vou te levar no obstetra.' A morena anunciou cruzando as mãos em cima da mesa. 'Marque um horário e eu acompanho você.'

Maura já estava balançando a cabeça. 'Você não precisa fazer isso. Eu não quero envolver-'

'Mesmo que você escolha...' Ela respirou fundo. 'Mesmo que você escolha abortar, Maura, você precisa começar por algum lugar. E eu disse que estaria com você.' As palavras deixaram um gosto amargo na boca. Ela abaixou a cabeça e encarou o papel, porque ela não podia olhar para a médica agora.

'Você não aprova.' Ela murmurou.

'Não. Eu não aprovo.' Jane ergueu o olhar para ela, e Maura esperou ver julgamento ali, mas ela só viu... aflição.

'É por causa da sua religião.' Maura queria pontuar, mas em sua incerteza a frase saiu meio como pergunta.

'Não. Não é.' Jane se levantou e, apoiando as mãos sobre a mesa, inclinou o corpo para frente. 'Mas deve ser difícil para você entender os meus motivos, assim como deve ser para mim entender os seus.'

Aí estava. A conversa da noite anterior ressoando no dia seguinte. Maura se sentiu magoada, mas ela merecia. A teimosia em não conversar, o modo como ela dificultava uma situação que já não era fácil tinha tido suas consequências. Jane estava jogando seu jogo, um que ela mesma escolhera. Com um leve tremor nas mãos, ela depositou a caneca quente na mesa. Ela nunca quis deixar Jane de fora, mas ultimamente elas estavam assim: mantendo uma distância segura uma da outra, não do tipo física... Do tipo... emocional, talvez. E isso gerava uma leve tensão, que era escondida sob a rotina e sorrisos, mas que existia e por vezes se fazia tão evidente, como agora.

'Você diz que me apoia, em contraponto-'

'Eu só quero entender.' Jane a cortou.

'Não há nada para ser entendido, Jane. Eu só acho que agora não é o momento conveniente para uma gravidez. Eu não posso fazer isso, eu não... Não é só um bebê, Jane. É tudo o que ele traz. E Jack! Eu não quero... São tantas decisões. Você já pensou no que isso mudaria na minha vida?' Ela jogou as mãos para cima, de repente se sentindo irritada.

Jane fechou a cara e cruzou os braços em frente do peito. 'Ah, é. Me esqueci de que eu nunca passei por isso.' Ela disse em sarcasmo.

Os olhos de Maura se encheram de lágrimas e ela olhou para baixo. 'Eu nunca insinuei isso. É só que eu queria que tudo voltasse ao seu lugar.' O suspiro saiu tremido de seus lábios.

Jane se odiou. 'Maura, desculpa, eu...' Ela se aproximou e acariciou os braços da loira.

'Não é você.' Ela murmurou. 'Depois de tudo o que aconteceu nesse último ano... Nós ainda somos nós?' Ela ergueu os olhos verdes e lacrimejados para Jane, e a morena prendeu a respiração.

Jane se perguntava isso às vezes. Ela repensava na sua relação com Casey, na relação de Maura com Jack. Na perda de Frost... Em como elas tinham ficado abaladas com a morte do amigo... A perda de seu bebê por um período pareceu tê-las unido como nunca, mas logo que Jane saiu da casa da loira para voltar para sua, ela sentiu um vazio enorme no peito. O que tinha sobrado delas depois de tudo? O que havia de restante da relação que elas juravam ser a mais importante amizade da vida delas? Algo parecia estar embaçado, faltando.

'Maura, hey... Nós ainda estamos aqui.' Ela segurou a mão da loira, mas o comentário não respondia necessariamente a pergunta da mulher.

'Odeio essas... turbulências. E depois de tudo o que aconteceu eu esperava um pouco de paz. E esperava que nós... Jane, nós merecemos um descanso.' Ela olhou para morena e segurou seu olhar por um tempo, e depois a cabeça pesou demais e ela voltou a olhar para baixo. 'E se eu tiver esse bebê... Eu não consigo ver mais nada senão corações partidos e...' um suspiro cortou sua frase e Jane a colocou num abraço. Ela se segurou na morena sabendo que de algum modo aquele conforto supriria a necessidade de alívio.

'Eu acho que entendo, Maur.' A morena disse deslizando a mão em suas costas. Ainda que fosse lógico tudo o que dissera, ela ainda achava que a loira só estava assustada. 'Eu entendo. Agora olha para mim.' Ela esperou que Maura se afastasse e falou com convicção. 'Você não ter esse bebê, não facilita as coisas, e nem... nem devolve tudo no lugar. Sempre fica aquela pergunta: E se? Eu não quero que você pense que eu... Deus, é como eu disse antes. Eu só quero que você pense bem para não se arrepender depois. Ok?' Ela apertou carinhosamente os ombros da loira.

'Ok.' Ela murmurou.

'E o que você decidir... Eu estou aqui. Só me avise.' E ela se inclinou e deu um beijo na bochecha da médica.

E depois disso o assunto foi colocado de lado. Jane não iria pressionar. Ela simplesmente deixou o espaço para Maura, o tempo que ela precisasse para fazer uma escolha que de um jeito ou de outro mudaria sua vida. Durante aqueles dias a loira parecia cada vez mais distraída, incomodada, distante. Por vezes as conversas não duravam mais de cinco minutos, e os fatos curiosos que saíam de sua boca diminuíram consideravelmente. Se por um lado Jane queria respeitar seu espaço, por outro ela queria colocar Maura para falar, mas ela sabia que a loira não iria.

No jantar de domingo, Jane teve que chutar a canela da loira por debaixo da mesa. Tudo tinha começado com o desinteresse da médica pela receita de Conchiglione de Angela. Normalmente ela estaria disposta a aprender todos os detalhes, e pediria para a mais velha para que ela mesma pudesse fazer pelo menos metade do prato. Entretanto, naquela noite Maura mal prestava atenção às instruções de Angela. Desconfiada, a mais velha lançava olhares a todo momento para Jane, que eventualmente curvava os lábios e dava de ombros, como se não soubesse o que havia de errado. Mas o mais agravante tinha sido na hora do jantar, onde todos saboreavam a comida e Maura mexia na massa com o garfo distraidamente.

'Há algo de errado, querida?' Angela havia se inclinado do outro lado da mesa para ela.

Ela não tinha ouvido. E então Jane se viu na obrigação de tirá-la do transe. Ela se sobressaltou com o contato e olhou assustada para todos, procurando o interlocutor. 'Perdão?'

'Eu perguntei se há algo de errado. Você anda distraída.' Angela disse suavemente.

'Oh, não, eu...' Ela olhou para Jane, pedindo ajuda.

'É aquela dor de estômago ainda, Maura? Qual é, eu disse que você deveria tomar um remédio.' Jane disse com indiferença, e Angela estreitou os olhos.

'Eu deveria.' A loira confirmou. 'Eu sinto muito, Angela. Você sabe o quanto amo tua comida.' Ela pousou o garfo ao lado do prato e depois de se desculpar, abaixou os olhos para o colo.

'Não há motivo para se desculpar, querida.' A mulher mais velha fitou Jane, e a morena soube que a mentira não tinha colado. 'Espero que você fique bem logo.' Ela disse para Maura, mas olhando para Jane.

'Obrigada.' A loira murmurou, os olhos ainda para baixo e as bochechas levemente rosadas.

Depois que todos terminaram de comer, Angela se ofereceu para lavar a louça no lugar de Maura, dizendo que ela e Jane seriam as responsáveis pela limpeza dessa vez. A morena revirou os olhos, não porque teria que secar a louça, mas porque sabia que a mãe provavelmente faria um interrogatório sobre Maura. Contra as expectativas, Angela se mostrou quieta durante todo o serviço, e Jane obviamente não iria oferecer nada. Quando o último prato foi passado para ser seco nas mãos de Jane, Angela secou as próprias mãos e fitou a filha.

'Ela é minha filha também.' A mulher falou baixo, mas cheia de convicção. 'Eu espero que você esteja cuidando disso. Seja lá o que for.'

Jane decidiu não responder. Qualquer brecha e sua mãe a puxaria até o sofá, transformando sua noite num inferno. Em vez disso, ela balançou uma única vez a cabeça e lançou um olhar carregado, determinado para a mãe. Angela não tinha idéia do que estava acontecendo, e Jane quase desejou poder contar à ela para se sentir mais aliviada, como se outra pessoa pudesse carregar o peso com ela, mas um segredo na boca de Angela Rizzoli não é segredo nenhum.

'Deixa comigo.' A morena respondeu e lançou o guardanapo em cima da pia. 'Boa noite, mãe.' Ela arrastou os pés, ouvindo a resposta da mais velha alcançar seus ouvidos.

Jane não ficou nem um pouco surpresa ao descobrir que Maura já estava na cama, quando ela atendeu a tentação de checá-la em seu quarto. Ela abriu a porta lentamente, em partes para não acordar a loira caso estivesse dormindo, em partes porque não queria que sua presença fosse notada. Mas tão logo a luz fraca vinda do corredor iluminou um feixe de luz no chão, a médica virou a cabeça para encontrar a figura de Jane imóvel entre o vão da porta.

'Hey.' A loira murmurou, mas foi tão baixo que a palavra só se formou em seus lábios, sem som algum.

Jane abriu metade de um sorriso e andou levemente até a borda da cama. 'Você quer companhia?' A morena acariciou de leve o ombro da outra.

Maura chacoalhou a cabeça em positivo. Ela se virou para o outro lado da cama, acompanhando Jane na caminhada e puxando o edredom para que ela entrasse em baixo.

'Desculpa por minha mãe, você sabe como ela pode passar dos limites às vezes. Quer dizer, todo dia.' Ela suspirou e apoiou a cabeça na mão.

'É a Angela que conhecemos.' Maura sorriu e trouxe os joelhos ao peito.

'Bem, agora você sabe porque eu reclamo das especulações dela.' A morena fechou os olhos, mas quando Maura demorou a replicar ela abriu de novo para checar a loira. Os olhos estavam fechados e o cenho franzido levemente, como se evitando uma ameaça de dor de cabeça. Jane correu os dedos pelo rosto da mulher, e mesmo se sobressaltando levemente com o toque ela permaneceu de olhos fechados. 'Você vai ficar bem, Maura.' Ela correu os dedos até o pescoço da mulher e deixou que seus dedos se enroscassem delicadamente entre os fios de cabelo da nuca. 'Vai ficar tudo bem.'

E a ponta dos dedos de Jane acariciando-lhe a nuca foi a última recordação que Maura teve antes de se perder num sono profundo e sem sonhos.

...

Jane se revirou e esfregou a mão nos olhos. Alguma coisa estava incomodando seu sono. Ela se virou para o lado, teimando em continuar dormindo. Lá estava de novo. Era uma vibração. Um vibração? Ela abriu os olhos no meio da escuridão, e ainda desorientada, alcançou o aparelho celular que estava em baixo do travesseiro. Como tinha ido parar ali, era um mistério. Ela apenas se lembrava de ter programado o aparelho para despertar as sete da manhã e depois era tudo escuridão. Quando o aparelho vibrou de novo, ela jogou os pés para fora da cama. Maura havia soltado um leve gemido, e ela desconfiava que a comoção tinha incomodado seu sono. Nas pontas dos pés ela saiu do quarto e atendeu.

'Rizzoli.' A voz soou grave depois de horas de desuso. Ela ouviu o outro lado falar. As palavras ainda demoravam a se registrar, e tudo o que ela compreendeu é que ela teria que sair da cama. Merda. 'Me mande o endereço, ok?' Ela esperou a resposta e desligou a ligação. Quando olhou no relógio para conferir o horário, ela soltou outro palavrão. Por que as pessoas tinham que morrer no meio da madrugada? No meio de uma madrugada congelante! Quatro e quarenta e três não era, definitivamente, um bom horário para um passeio noturno. Ela apertou os olhos e entrou no quarto mais uma vez, em completo silêncio, esperando não acordar a loira. Em vão. O celular da médica, que estava na mesa de cabeceira, começou a vibrar. Jane apertou o passo para silencia-lo. Dane-se, ela pensou, que enviem Pike. Maura estava abatida, e era cedo demais para alguém levantar, alguém que mal estava dormindo nos últimos dias. Infelizmente, Jane não conseguiu alcançar o aparelho antes de Maura.

A médica suspirou e nem se deu o trabalho de abrir os olhos. 'Dra. Isles.' Ela murmurou. Jane observou quando a expressão do rosto da loira passou de sonolenta para alerta. Quando ela finalmente encarou Jane, a detetive lhe lançou um olhar, um pedido de desculpas.

'Parece que nossa semana começou mais cedo.' Maura disse esticando os braços.

'Eu gostaria que não tivesse.' Jane resmungou e procurou pelas botas. 'Cinco minutos?' Ela lançou um olhar provocativo para Maura.

'Você precisa se trocar também.' A loira apertou os olhos em reprovação.

'O que? Eu já estou pronta!' Ela mencionou as roupas e Maura revirou os olhos.

'Você nem mesmo colocou suas botas, Jane.' Ela se levantou da cama e mais uma vez se espreguiçou. 'Trinta minutos.'

...

A cena do crime era uma rua não movimentada na periferia de Boston. Um homem parecia ter sido incendiado. O mais curioso era que o fogo parecia ter consumido partes do peito e do rosto, e em sua agonia ele parecia ter rolado na neve para apagar as chamas. Aquela não era a causa da morte, mas certamente os danos eram desastrosos. O frio impiedoso tinha congelado seu corpo, e a mistura de queimadura pelo fogo, seguida da queimadura de frio desconfiguravam seu rosto. E era Maura que estava agora analisando o cadáver exposto na rua.

'Queimaduras de terceiro grau na face e região peitoral.' Ela disse em voz baixa.

'O que poderia ter sido o combustível?' Jane perguntou, já prevendo a resposta meticulosa de Maura.

'Não posso adivinhar, você sabe.' Ela disse naturalmente.

'Você tá sentindo um cheiro de alcool por aí, Korsak?' Ela disse quase sorrindo.

Maura girou a cabeça para encará-la e ela jogou as mãos para trás das costas no mesmo momento em que Korsak erguera uma garrafa de tequila vazia, pega de dentro do carro da vítima.

'Oh.' Maura murmurou. 'Isso poderia ser o catalisador.' Ela disse clinicamente.

'Poderia?' Jane ergueu uma sobrancelha para ela. 'Aposto cinquenta pratas.'

Maura revirou os olhos e voltou a atenção para o corpo. 'Você sabe que não faço apostas.' Ela disse e se levantou depressa.

Muito depressa. Ela precisou de um minuto para que a visão clareasse novamente. Quando se orientou, Jane estava mais próxima, pronta para pegá-la se caísse, mas afastada o suficiente para não chamar atenção. 'Tudo bem?' Ela perguntou com a voz baixa.

'Foi só uma tontura, hipotensão postural. A pressão arterial caiu porque fiquei abaixada, o sangue se localizou nas extremidades do corpo e quando me levantei - '

Jane fez a familiar careta de 'não estou interessada' e Maura parou de falar instantaneamente.

'Eu vou pedir para que levem o corpo ao necrotério.' Ela disse em vez de terminar a outra frase.

'Ótimo. E depois você vem de carro comigo.' Porque elas vieram no carro de Maura, e a loira viera dirigindo sobre os protestos de Jane. O acordo seria que a morena dirigisse de volta para a estação, ou Maura iria escutá-la reclamando o resto do dia.

'Ela parece cansada.' Korsak disse, embalando a garrafa num saco de evidência.

Jane retirou as luvas azuis antes de responder. 'Você sabe, até mesmo o cérebro dela se cansa com tanta informação inútil.'

Korsak riu. 'Inútil para você.'

E Jane virou a cabeça para ele, indignada.

...

'Quem é que sai para beber nesse frio, numa hora dessas?' Ela tamborilou a caneta na mesa enquanto esperava o nome do sujeito aparecer na tela com a foto. Lá estava. Andrew McConney. Trinta e sete anos. O único registro que tinha era de uma multa por alta velocidade, há dois anos atras. Ficha limpa, praticamente.

Jane inclinou-se na cadeira e checou o relógio. Era sete horas e cinco minutos. O dia parecia tão preguiçoso e lento como ela, ele até mesmo se recusava a se iluminar logo. Ela se levantou da cadeira e se serviu de um café que Korsak tinha trazido há dez minutos atrás. Não estava de todo quente, mas era bebível. Era cedo demais para bater nas casas das pessoas e Jane não podia fazer mais anda ali, a não ser esperar. Ou descer ao necrotério. Sim, parecia uma boa ideia. Ela cumprimentou com a cabeça um detetive que acabara de chegar, e se dirigiu ao elevador. Depois de pressionar o botão, esperou pacientemente até que ele alcançasse o piso.

Quando ela chegou no andar, caminhou até a porta do necrotério. Através dela, a detetive viu Susie e Maura trabalhando juntas, cortando cuidadosamente a roupa do cadáver. Ela pensou em entrar, mas hesitou. Ela não estava afim de sentir o cheiro de carne queimada logo na parte da manhã. Não, ainda mais com um café nas mãos. Ela franziu o rosto enojada. Como Maura conseguia fazer esse trabalho tão tranquilamente? Ela observou enquanto a loira manuseava uma tesoura com as mãos, cortando a blusa azul marinho do homem. Parte da vestimenta tinha sido queimada também, o que dificultava o trabalho da médica. Com maestria, Maura dividia os segmentos da roupa, facilitando sua remoção. Jane se pegou sorrindo em quão delicada e concentrada ela parecia. Susie obstruiu sua visão, mas em seguida o campo de visão das duas ficou livre quando a médica morena juntou as roupas picadas e as levou para outra mesa em um refratário. Entretanto, Maura não erguera sua cabeça. Ela continuava com sua sonda sobre o corpo do homem. A parte de cima das vestimentas tiradas, Maura teria ainda que lidar com a parte de baixo. Ela desabotoou o cinto e Susie mais uma vez veio ajudá-la com o peso do corpo. Em menos de cinco minutos o homem estava deitado na maca metálica, nu, o corpo coberto até a cintura por um lençol descartável.

Jane observou por mais quinze minutos. Quando ela se deu conta de que o comportamento era no mínimo estranho, ela deixou o lugar. De alguma forma ela se sentiu bem em ver Maura focada em seu trabalho, menos perturbada por... pela sua situação. A morena correu as mãos no cabelo e jogou o copo de café já vazio numa lixeira mais próxima, antes de entrar no elevador. Quando chegou o relógio novamente, eram quase oito horas. Como o tempo tinha passado tão rápido assim, fora de seu conhecimento?

Ela passou a língua nos lábios e quando as portas do elevador se abriram de novo, Korsak estava em pé. Algo deu a sensação de que ele estava esperando por ela.

'Pronta para uma visita domiciliar?'

'Você tá levando rosquinhas?' Ela rebateu em sarcasmo.

'Há. Como se Maura deixasse você comer isso.' Ele replicou na mais pura maldade.

'Como se ela mandasse na minha alimentação.' Ela devolveu com ironia.

'Faz uns par de meses que seu café da manhã não tem sido um bolinho de chocolate comprado na padaria da esquina.'

'Ah, cala a boca.' E Jane teve que se segurar para não dar-lhe um soco no ombro.

...

Ela já tinham coletado todo o material que era forasteiro na pele queimada do homem. Fios que poderiam pertencer a roupa, glóbulos que foram mandados para serem testados, fragmentos de sabe-se-lá o quê. O que quer que tivessem encontrado ali, fora separado, catalogado e mandado para análise. Maura tinha certeza de que tinha, junto com Susie, recolhido todo o material. Depois disso, começara a incisão em Y. Os órgãos pareciam saudáveis, com exceção do fígado. Aquele homem tinha sido um viciado em bebidas alcoólicas, sem dúvidas. A fibrose e formação de nódulos evidente que Maura pôde estudar só confirmava sua hipótese. Cansada, ela suspirou e começou a fechar o corpo. A causa da morte, apesar do estado do fígado, não tinha sido encontrada. Os exames de sangue certamente trariam algo novo. Ela deu o primeiro ponto, concentrada no fio de sutura. Ela piscou os olhos rapidamente quando a imagem saiu fora de foco. Determinada a terminar o processo, o último da autópsia, ela respirou fundo e focou toda a sua atenção nas mãos. Do primeiro ao último ponto, Maura ignorou a presença de Susie na sala. O som de sua respiração era o que a mantinha focada. Ela perdeu o foco de novo, e fechou os olhos para voltar a enxergar normalmente. Era a posição em que se encontrava que causava a desorientação, e faltavam apenas dois pontos. Ela podia fazer isso. Penúltimo ponto. E último. Ela se ergueu vitoriosa, segurando as duas pinças próximas ao ombro para observar o trabalho que tinha concluído. Com um soar metálico, os dois instrumentos caíram aos seus pés. Ela precisou usar as mãos para se apoiar na mesa.

'Dra. Isles?' Susie se apressou em sua direção, mas ela balançou a cabeça em negativo.

'Não é nada. Apenas uma tontura.' Ela disse enquanto pressionava com força no metal gelado da maca. Ela apertou os olhos e abriu de novo, mas dessa vez a visão continuou embaçada. 'Droga.' Ela murmurou, se sentindo ainda tonta.

Susie passou um braço pela sua cintura e segurou firme seu corpo. 'Me deixe conduzi-la até a maca, antes que você caia no chão.' Ela disse alarmada, a voz preocupada de um jeito que Maura nunca ouvira antes. A loira permitiu que a mais nova a conduzisse, se sentindo extremamente fraca para argumentar ou manter a postura. Elas passaram pela maca ao lado da que abrigava o cadáver, que estava cheia de peças de bacias de inox em cima. Na terceira maca, na que estava livre perto da porta, Susie ajudou a médica a se sentar e depois a colocar as pernas sobre ela. Ela correu até o escritório da loira e trouxe de volta uma almofada.

'Deite-se.' E era uma ordem. Como a médica que era, ela colocou a almofada em baixo da cabeça de Maura e em seguida tomou-lhe o pulso.

'Susie, eu estou bem. É só que não tenho dormido muito e...' Ela parou de falar quando a morena a fitou.

'Sua pressão está um tanto quanto baixa.' Ela disse clinicamente.

'Então é apenas uma queda de pressão. Nada com o que se preocupar.' Ela insistiu e tentou se sentar, mas a mão firme de Susie a manteve no lugar.

'Você tem comido corretamente?'

Maura revirou os olhos. Boa coisa que Susie trabalhava com os mortos, ou seus pacientes iriam detestá-la. 'Eu...' Maura não sabia mentir. Ela não conseguia mentir. E se ela hiperventilasse agora pioraria tudo. 'Eu admito que não tenho sido tão cuidadosa com minha alimentação, ultimamente.' Ela desviou o olhar como se estivesse envergonhada e Susie quase achou graça.

'Bom, com a somatória desses fatores, temos a causa de seu quase desmaio.'

'Eu não desmaiei.' Ela disse em teimosia.

'Eu disse quase.' Susie observou. 'Você quer que eu ligue para alguém? Jane?' Ela perguntou com a voz mais contida agora.

'Não, Susie. Não.' Ela disse decidida.

'Eu sugiro que você descanse um pouco. E coma algo em seguida.' A médica mais nova lhe disse. Maura respirou fundo, ela tinha trabalho a fazer.

Susie se afastou no instante seguinte, com a intenção de organizar o necrotério. Aproveitando a oportunidade, Maura se sentou novamente, e mais uma vez a tontura desorientou seus sentidos. Quando abriu os olhos, Susie estava de braços cruzados em sua frente.

'A minha sugestão foi na verdade uma ordem médica, dita educadamente.' Ela resmungou, e embora parecesse decidida, Maura desconfiou de que se ela erguesse a voz, Susie sairia correndo de cabeça baixa. Ela admirou a coragem da mulher. Com um suspiro, cedendo à ordem, sabendo que era melhor repousar de qualquer jeito, a loira se deitou novamente e fechou os olhos.

...

Jane estava sentada naquele banco fazia quase meia hora. O necrotério era um lugar frio, mas ela não iria sair dali. Não antes de falar com Maura. Seu coração disparara quando vira a médica deitada na maca, e o olhar de Susie foi tão culpado que a médica mais nova lhe entregara toda a verdade com apenas uma frase. Aos ouvidos de Jane, ela nem tinha parecido tão ameaçadora assim. Entretanto Susie parecia assustada demais, e logo ela contou o que sabia. Maura havia passado mal, quase desmaiado. Quando Jane se aproximou e segurou-lhe a mão, ela descobriu que estava gelada. Um sentimento horrível agarrou seu coração. Maura era estranha, aquilo não era lugar para se tirar um cochilo. Ela tinha um sofá em seu escritório e poderia fazer melhor uso dele. Ainda assim, lá estava ela: deitada em uma maca que fora designada para corpos, fria e dura, fúnebre. Um arrepiou caminho espinha abaixo e ela sentiu necessidade de acordar a mulher. Mas ela debateu se seria uma escolha sábia. Ela precisava daquele sono, recuperar o descanso de noites mal dormidas.

Atormentada, ela disse à Susie que voltaria logo. Depois de dez minutos reapareceu com um saco marrom na mão, cheio de comida. E então ela havia se sentado ali, cruzado as pernas de um jeito nada feminino à espera de Maura. Outros quinze minutos tinham se passado, somando agora quarenta e cinco. O interrogatório não tinha sido lá muito bem sucedido, e Korsak estava trabalhando no pouco que tinham conseguido. Susie limpava ps últimos instrumentos usados durante a autópsia quando Maura finalmente se mexeu.

Primeiro ela levou a mão aos olhos e esfregou. Depois, desorientada, ela olhou de um lado para o outro, conferindo o lugar em que estava. Ela estava pálida, e Jane se perguntou se era o frio do lugar, a baixa pressão ou o simples fato de os olhos de Maura estarem assustados, fixos no dela.

'Jane?' Ela se levantou lentamente. 'Eu... dormi aqui?' Ela franziu o cenho, confusa.

'Por umas boas horas.' A morena disse séria, sem se mexer.

'Oh meu Deus.' Maura murmurou. Ela jogou as pernas para fora e Susie a advertiu do outro lado da sala.

'Eu não acho que seja uma boa ideia.' Ela ergueu as mãos, pedindo calma para sua chefe.

Maura arregalou os olhos, como se estivesse se lembrando somente agora do motivo de ter acordado ali. 'Ah, não...' Ela olhou para Jane e sabia que estava encrencada.

'Susie aqui', Jane apontou o dedo para a médica morena, e ela se encolheu, 'me disse que você desmaiou porque você não tem comido.' E embora Jane soubesse que Maura estava rejeitando comida, ela não sabia que a mulher de fato tinha deixado de comer. O que ela estava pensando?

'Eu não usei essas palavras.' Susie se defendeu. Ela tinha certeza que tinha dito que devido a falta de alimentação e sono apropriada, a doutora tinha quase desmaiado, mas não necessariamente.

'Tudo bem, Susie.' Maura disse para ela. A médica sabia como Jane podia ser difícil as vezes.

'Então...' Ela finalmente se levantou e colocou o saco marrom ao lado de Maura. 'Eu vou ficar aqui, até que você coma o que eu trouxe para você.'

'Você não pode me obrigar.' Maura resmungou e abriu o saco para estudar o conteúdo. Ela tirou um sanduíche natural e uma caixa de suco. Melhor do que cachorro-quente, era verdade.

'Maura.' Jane apoiou as mãos em seus joelhos. 'Você precisa comer. É sério, você precisa.' Ela virou a cabeça quando ouviu a porta fechar. Susie tinha deixado o lugar, dando privacidade às duas. 'Meu Deus, você quase despencou no chão! Eu sei que você não está com fome, mas Maura...'

'Eu sei.' Ela murmurou, abaixando a cabeça. 'Eu não tinha reparado que... já fazia algumas horas que eu não havia ingerido nada.' Os dedos roçaram o plástico que protegia o sanduíche e ela delicadamente o tirou.

Jane suspirou aliviada. Pelo menos ela iria comer. Como que para ter certeza, ela se sentou na maca fria ao lado da loira, e esperou até que ela desse a primeira mordida. Com um pequeno sorriso de vitória, Jane pegou o saco marrom e retirou um segundo sanduíche dali. Maura olhou escandalizada para ela.

'O que? Você acha que eu só comprei para você?'

A loira riu e cutucou o recheio do sanduíche com a ponta do dedo. 'Não é tão ruim, considerando os teus gostos.'

'Como é?' Jane se virou indignada para lhe encarar.

'Bom, eu escolheria algo mais...' Ela olhou para Jane, o olhar desafiante. 'Deixa para lá.' ela mordeu de novo e sanduíche e mastigou o conteúdo.

As duas terminaram o almoço em silêncio. Depois de juntarem o lixo dentro do saco de papel, Jane desceu da maca e ajudou Maura a descer, temendo que a mulher pudesse vacilar e cair. Entretanto, Maura parecia mais firme agora, até mais corada. Ela colocou as mãos no bolso do jaleco e fitou Jane, sem dizer nada.

'Você tá melhor?' Ela perguntou preocupada, mas a loira dispensou a preocupação com um menear de cabeça.

'Jane, eu estou bem.'

'Você disse isso para Susie e...' Ela deu de ombros, o resto a própria mulher sabia.

'Susie não é você.' Ela ofereceu.

Jane sorriu. É claro que ela confiava muito mais nela do que em Susie, mas Maura também era teimosa e testava seus limites, e era isso que preocupava a detetive. 'Eu preciso subir e ajudar Korsak. Você quer que eu te leve para casa?'

'Jane.' Ela imediatamente disse o nome da mulher em advertência.

'É só que - '

'Eu estou bem.' Ela insistiu.

A morena deu um passo à frente e colocou a mão no pescoço da médica. 'Você promete que qualquer coisa me avisa? Maura, qualquer coisa. E pega leva, ok?'

A loira prendeu a respiração enquanto os dedos da detetive roçavam carinhosamente na sua nuca. 'Okay.' Ela murmurou, os olhos verdes agora mais intensos.

'Ótimo. Eu te encontro mais tarde.' Ela caminhou até a porta e de repente se virou. 'E, Chang, minha nova informante vai me manter atualizada.' Ela sorriu sarcasticamente e fechou a porta, fitando Maura através do vidro.

A loira revirou os olhos e jogou as mãos para cima. Jane era incorrigível. E Chang não tinha ideia de onde tinha se metido.


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