Sixteenth Moon escrita por Nath Schnee


Capítulo 11
Capítulo 10 – 15 de Setembro


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Como prometido, o novo capítulo chegou. Dessa vez no dia certo, milagre, não? Kkkkkkkk Boa leitura!



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Eu (não) sou uma bruxa

No caminho para casa de Ethan, o que predominou foi o silêncio e a tensão. Mas eu estava mais do que agradecida por ele estar calado. Era melhor do que responder todas as prováveis centenas de questões que havia em sua mente.

Ethan era quem estava dirigindo, e isso parecia distraí-lo melhor do que simplesmente o silêncio. Eu lembrava que ele havia dito que morava na rua Cotton Bend, então deveria virar a esquerda, mas ele passou direto. Franzi o cenho.

— Você passou direto. — Rompi o silêncio, a primeira vez desde que saímos de Ravenwood.

— Eu sei disso. — Ele parecia com raiva, mas indiferente quanto a ter feito aquilo.

Eu não podia deixar o silêncio prevalecer de novo. Eu sabia exatamente o que ele pensava e me permiti dizer.

— Agora você pensa que meu tio é louco, como todo mundo pensa. Apenas diga que sim. Vai chamá-lo de "Velho Ravenwood" não é?. — Minha voz soou amarga. — Eu preciso voltar para casa. — Completei, mas o Wate me ignorou.

Já estávamos passando pelo General's Green, apenas um conjunto rondo de grama desbotada, o único ponto turístico que eu havia visto da cidade até aquele momento. Era uma estátua de um general, provavelmente da Guerra Civil. Ethan o encarou como se ele também tivesse culpa.

Ele desceu a Dove Street e estacionou o rabecão no meio fio, logo abaixo da placa que eu havia visto quando viera para a cidade. Dizia: "Bem vindos à Gatlin, lar das fazendas históricas mais peculiares do sul e da melhor torta de creme do mundo".

Eu não sabia sobre a torta, mas as fazendas realmente eram peculiares, principalmente a que eu morava. Mas eu não estava pensando naquilo àquela altura. Eu só queria saber o porquê de Ethan estar parando o carro, a noite, no meio do nada, comigo dentro.

— O que exatamente você está fazendo? — Tentei não soar medrosa. Ele desligou o carro.

— Nós precisamos conversar.

— Não fico em um carro estacionado com rapazes. — Era para ser uma piada, mas eu soei apavorada. Quem garantia que ele simplesmente não fizesse... algo ali mesmo?

— Comece a contar.

— Contar o quê?

— Está brincando, né? — Ele obviamente estava tentando se controlar para não gritar.

Mexi no meu colar, nervosa, enquanto olhava pela janela.

— Não sei o que você quer que eu diga, nem sobre o que. Não estou brincando. — Era verdade. O que eu diria? "Meu tio é um demônio e eu sou uma bruxa"? Ele queria saber sobre nós, sobre a casa, sobre o medalhão...?

— E sobre o que aconteceu na casa? Que tal me explicar isso?

Continuei encarando a escuridão de fora do carro.

— Tio Macon estava irritado desde que ligaram, ele se zangou um pouco mais. Ele às vezes perde a cabeça. — Outra verdade. Nem mesmo tio Macon se controlava às vezes...

— Perde a cabeça? Acho que estamos falando em línguas diferentes. Quando ele perde a cabeça costuma jogar coisas pela sala sem sequer tocar nelas ou acende velas sem fósforos?

Eu estava todo o tempo torcendo para que ele não tivesse visto, e com aquilo que disse... Eu apenas abaixei a cabeça.

— Eu sinto muito, Ethan, me perdoe. — Minha voz soou baixa, mas a do garoto estava alta. Ele se irritava mais a cada evasão que eu fazia de suas perguntas.

— Não quero que peça desculpas, Lena. Quero que me explique o que está acontecendo. Quero que me conte tudo. Toda a verdade.

— Sobre o quê? — Havia muitas opções.

— Sobre seu tio. Sobre a casa esquisita dele. Sobre como ele de alguma forma conseguiu redecorar em dois dias sem sequer deixar vestígios, como ele conseguiu construir novos cômodos sem deixar qualquer resquício de que fez isso. A comida que aparece e desaparece sem ninguém pegar. As vozes de pessoas que nem parecem estar ali. Todo o papo sobre barreiras e proteger você. O quadro que muda de repente. Escolha um.

Balancei a cabeça.

— Não posso falar sobre isso. E você nunca entenderia, eu contando ou não. — Eu estava indecisa nas possíveis reações dele. Sair correndo? Chamar-me de louca?

— Como sabe se não me dá uma chance de tentar entender?

— Minha família é diferente, mais diferente do que você sequer pode imaginar. Acredite em mim, você não vai conseguir lidar com isso. Não há como eu te contar sem que você continue me achando uma louca. Você simplesmente não vai aceitar. — Assim como todo mundo, ele nunca entenderia.

— O que isso quer dizer? Como você poderia saber?

— Encare, Ethan. Você diz que não é como eles, mas é, e sabe que é, só não quer admitir para si mesmo. Você quer que eu seja diferente, mas só um pouco. Não quer que eu seja diferente de verdade. Não quer que eu seja diferente no nível que eu sou. — Tipo uma Conjuradora, pensei.

— Sabe de uma coisa? Eles podem ter mesmo razão. Você é tão louca quanto seu tio.

— Você foi à minha casa sem ser convidado, entrou quando eu disse que não era para fazê-lo, falou o que eu disse para não falar e agora está irritado porque não gostou do resultado. Claro que vai me chamar de louca.

Ele não respondeu enquanto encarava a escuridão pela janela como eu havia feito. Eu não parei. Precisava falar.

— E está irritado porque está com medo. Todos estão. No fundo, você são todos iguais. Têm medo do que é diferente, não querem aceitar o que não é idêntico a vocês. — murmurei soando tão cansada quanto me sentia. Todo o tempo, toda vez que pensei que Gatlin fosse diferente, toda vez que pensei que o Mortal ali ao lado fosse diferente... Eu estava errada, enganada por sonhos e ilusões de minha própria mente. Era hora de desistir.

— Não. — Ele olhou para mim, que fiquei confusa. — Você é quem está com medo aqui.

Gargalhei com amargura.

— É, tá certo. Você não pode nem imaginar do que é que eu tenho medo. — Olhei para longe de novo. Como eu mesma, pensei completando.

— Você tem medo de confiar em mim.

Não respondi. Era, em parte, verdade.

— Você tem medo de se aproximar de alguém o bastante a ponto de perceber se ele foi ou não à escola. Tem medo de conhecer as pessoas e elas serem importantes para você.

Passei o dedo pelo vidro embaçado do carro, fazendo uma linha trêmula, um ziguezague.

— Você tem medo do que pode acontecer se ficar.

Terminei meu mini desenho. Um raio. Algo tão forte e tão comum em minha presença. Algo que representava minha fúria e o perigo que eu era.

— Você tem razão. Não é daqui, e não é só um pouco diferente de todos nós.

Ela ainda olhava pela janela, para o nada, porque ainda não dava para ver lá fora. Eu podia ver tudo. Podia ver tudo o que ele diria se eu contasse a verdade.

— Você é mais que isso. Você é incrivelmente, absolutamente, extremamente, supremamente, inacreditavelmente diferente. — Eu fechei meus olhos e senti ele tocando meu braço de leve. Arrepiei-me, mas não me movi. Mesmo que insistisse, eu não podia contar. Não conseguia. — Eu sei disso porque mesmo que não pareça, mesmo que eu esteja em meio a tantos iguais, lá no fundo acho que eu também sou um pouco diferente. Pelo menos um pouquinho. Então me diga. Por favor. Você é diferente, mas diferente como?

Balancei a cabeça. Meus olhos se encheram de lágrimas, eu me segurava para não descer do carro e sair correndo, mas o que eu poderia fazer? Era o rabecão, eu não tinha como voltar para casa. Minha única alternativa era ficar ali e encará-lo. Eu havia me livrado por um dia das líderes de torcida, mas não havia me livrado de um dos atletas pelo qual elas torciam.

— Não quero contar, Ethan.

Eu estava quase chorando. Meu coração apertado pedia, IMPLORAVA, para que ele permanecesse ao meu lado, e também implorava para que eu fosse Invocada para a Luz e pudéssemos ficar juntos no final. Mas isso não aconteceria se eu contasse, ele provavelmente me trataria como todos me tratam, ou até pior, e eu não queria isso. Não pude evitar que uma lágrima descesse e, quando aconteceu, não me dei ao trabalho de secá-la.

— Por que não?

Ainda que ele tivesse visto que eu estava chorando, ainda insistia no assunto. Se ele sequer podia entender que eu precisava manter segredo, como poderia entender todo o resto?

— Porque faltam cinco meses, e essa pode ser minha última chance de ser uma garota normal. Não me importo de ser Gatlin ou não, eu só quero tentar mais uma vez e viver em paz como nunca tivesse sofrido com tanto ódio por tanta parte. Porque você é meu único amigo, aqui e ainda provavelmente vai ser o único se eu me mudar. E se eu contar, você não vai acreditar em mim, vai me chamar de louca. Ou pior ainda, vai acreditar, e isso vai me tornar ainda menos normal do que já tento ser. — Abri meus olhos e olhei dentro dos dele. — Seja como for, você vai se afastar, você nunca mais falará comigo e eu estarei desperdiçando minha última chance cometendo um grave erro. E esse erro é te contar.

Um barulho de batida contra o vidro nos fez pular. Uma lanterna brilhou pela janela embaçada. Ethan murmurou xingamentos e desceu a janela. Era aquele policial/inspetor da escola gordo. Fatty.

— As crianças se perderam indo pra casa? Está tarde para estarem aqui no meio do nada. — Ele estava sorrindo como se tivesse encontrado seus doces preferidos.

Fiquei em silêncio, observando.

— Não, senhor. Estamos a caminho de casa agora. Eu já estava indo ligar o carro.

— Se bem me lembro, esse carro não é seu, Sr. Wate. 

— Não, senhor.

Fatty direcionou a luz da lanterna na minha direção e ficou assim um tempo. Provavelmente pensava em tudo o que "sabia" sobre mim e o quanto mais ouviria falar quando aquilo se espalhasse. Eu era a dona do carro, tinha todos os documentos, ele não poderia reclamar daquilo. Voltou-se para Ethan.

— Então vão logo para casa. Você não quer deixar Amma esperando.

Amma. Perguntei-me qual seria a reação dela se soubesse que o Wate esteve comigo no rabecão do meu tio no meio da noite.

— Sim, senhor.

Ele e eu olhamos pelo retrovisor. Havia uma mulher no banco da frente da viatura da polícia. Estava rindo. Quase pude sentir a raiva me dominar como na escola, mas, dessa vez, apenas pude ouvir o pneu do carro deles estourando. Ethan não pareceu ouvir, tenso atrás do volante. Resisti a vontade de sorrir ao ver o que eu tinha feito.


O Mortal bateu a porta do carro. Estávamos em frente a casa dele, eu podia vê-lo através da janela. Eu já estava atrás do volante.

— Até amanhã. — disse ele.

— Até. — respondi.

Mas eu sentia que, mesmo querendo, ele não me veria amanhã. Sabíamos que se eu dirigisse até o fim da rua, chegaria realmente ao fim, como a bifurcação de Ravenwood ou Gatlin. Era um caminho sem volta. Ele olhou para o carro quando engatei a marcha e observou eu fazer minha escolha.

Eu escolhi ir embora.

 


Ou pensei ter escolhido. Quando me dei conta, eu estava em Ravenwood. Tinha conseguido escapar de tio Macon e já estava com meu pijama roxo num estilo chinês quando simplesmente peguei o carro, saí da propriedade e voltei todo o caminho para a casa de Ethan. Minha mente estava frenética, mas eu não conseguia pensar em nada específico, pois quando me dei conta, já estava de volta na Cotton Bend.

Assim como aparentemente a maioria das casas da cidade, ela era simples. Pintada de um branco já desbotado, consistia de dois andares, com um jardim nos fundos e duas varandas nas duas extremidades da casa. Eu segui andando. Pensei em apenas bater na porta, mas o que pensariam? Eu estava pijama!

Segui até o jardim e olhei para cada janela. Uma estava com a luz acesa e outras duas idênticas apagadas. Deixei-me guiar pelo instinto e fiquei centrada apenas em uma. Eu sentia que era a dele. Concentrei-me no Kelt.

Ethan?

Tentei falar suavemente. Não queria assustar ele. Mas algo me dizia que ele sabia que eu esperava ali fora. Esperei um tempo. Não houve resposta. Se ele ouviu, podia ao menos me responder, não...?

Ethan. Por favor.

Olhei para a janela de novo. Estava trancada. Olhei para a tranca e senti um pequeno aperto no estômago. Não sei ao certo o que aconteceu, o que fiz, se envolvia algo como mover objetos com a mente ou controlar o vento, mas eu a janela de madeira se abriu. Não que tivesse sido proposital, eu só queria aquilo e aconteceu. Podia só ter sido o vento, sozinho, mas não havia sequer uma brisa onde eu estava.

Vi Ethan aparecer na janela, olhando para mim. Parecia com medo.

— Desce ou eu subo. — Desafiei.

Ele só se assustou mais. Parecia prestes a desmaiar, mas assentiu e sumiu de vista. A luz foi apagada e eu esperei. Eu não sabia o que mais me incomodava. A demora ou meus pensamentos de simplesmente ir embora e nunca mais aparecer na escola. Fiquei um longo tempo esperando até que ouvi a porta ser destrancada e ele apareceu.

Nós nos encaramos por um breve momento, até eu desviar o olhar para a rua. Eu não precisava dizer o porquê de ter voltado, mas também não havia dito nada por um longo tempo. Não conseguia. Ele sentou no degrau da escada e eu fiz o mesmo em seguida. Fiquei um longo momento encarando a tinta branca descascada do corrimão, encostada no outro lado.

— Eu quase voltei quando cheguei ao final da sua, mas estava com medo. — falei e ele olhou para mim. — Quando cheguei em casa, meu medo continuou, mas era medo demais de não voltar aqui. — Mexi no esmalte da minha unha do pé. Qualquer coisa era melhor do que ter que dizer a ele. Mesmo que o Mortal quisesse saber, eu ainda tinha receio de sua reação. E embora eu me recusasse tanto, tinha medo demais para deixá-lo se afastar porque eu não havia confiado nele. — Eu não sei fazer isso, não sei como contar. Nunca fiz antes, então não sei como vai ser. Não quero que soe tão horrível quanto pode parecer. — Era verdade. Nem eu mesma sabia como explicar tudo.

Ele passou a mão pelo cabelo, que só ficou mais bagunçado.

— Pode contar para mim, não importa o que seja. Sei como é ter uma família estranha.

Será que ele sabia o que era ter uma família estranha e perigosa?

— Você acha que tem, acha que sabe como é. Mas não tem nem ideia do que estou prestes a dizer.

Olhei em direção ao céu. Iluminados apenas pela luz da lua, sequer parecíamos um par de adolescentes tentando se esconder da população, com sua timidez e seu temor clichê de serem descobertos. Eu desejei que fosse assim. Que a única coisa que nos impedia de nos aproximar fosse algum tipo de vergonha. Mas não era. Na verdade, eu sentia medo. Medo do que poderia acontecer a Ethan se ele permanecesse comigo até depois de meu aniversário. Eu tinha medo de falar o que estava tanto evitando naquele momento e ele não acreditar em mim. E se Ethan pensasse que eu era uma louca e resolvesse espalhar pela cidade tudo aquilo? Poderia acontecer pior também. Ele poderia acreditar e nunca mais falar comigo. Eu não sabia como conseguiria encarar aquilo. O único amigo que eu fiz em tanto tempo se afastando por medo ou raiva de quem eu sou de verdade.

Respirei fundo. Havia uma angústia me corroendo por dentro como uma dor que se espalha por todo o corpo. Estava cada vez mais difícil respirar, e meu coração poderia a qualquer minuto cruzar a esquina correndo na velocidade que estavam seus batimentos. Era ainda mais difícil do que eu imaginava. Eu sequer conseguia encontrar as palavras certas.

— Eu e todas as pessoas na minha família... Nós... — Tentei começar por algo mais leve. Nem era por ele. Era por mim. Para que eu pudesse falar frases completas. — Nós fazemos coisas diferentes.

— Diferentes como?

— Sabe como algumas famílias têm mais dinheiro, têm mais habilidade com a música, ou são mais bonitas? Os Ravenwood e os Duchannes... Nós temos poderes.

 

O raciocínio do Mortal ainda estava tentando acompanhar minhas palavras.

— Poderes?

— Sim. — Inspirei profundamente e soltei as palavras como quem tem pressa, quase as atropelando. Podemos fazer coisas que pessoas normais não podem. — As palavras pareciam passar por várias barreiras através de mim antes de finalmente atingirem o exterior. — Somos capazes de fazer coisas que vocês não podem nem imaginar. Você pode achar que é loucura ou que é impossível, mas sabe do que estou falando. Sabe que não haveria outra maneira de tudo isso acontecer sem explicação lógica. Não haveria outra maneira de tio Macon conseguir fazer o que fez.

Ethan se calou, até mesmo sua respiração poderia ter parado levando em conta o silêncio que invadiu nosso espaço. Embora eu evitasse olhar para ele, eu sabia que ele estava tentando compreender o que eu estava dizendo. Wate primeiro entenderia minhas palavras, e só depois poderia compreender o verdadeiro significado delas. Aquelas entrelinhas que eu não conseguia dizer em voz alta. Aquela pequena palavra que descreveria tudo se ele pensasse nela.

Magia.

Wate olhou porta adentro e engoliu em seco. Inquieta, me arrumei no degrau da escada tentando não sair correndo. Antes que eu pudesse me convencer de sair dali, ele voltou a conversar comigo.

— O que vocês são? Tem nome para isso? — Parecia que ele tinha tanta dificuldade quanto eu no assunto, como se tivesse medo de perguntar.

Agora que ele estava perguntando, eu não tinha como correr.

— Somos Conjuradores — murmurei, ainda sem olhar para Ethan.

— "Conjuradores"?

Assenti. Não queria ver sua expressão, não conseguia.

— Conjuradores... Tipo, conjuradores que conjuram feitiços?

Assenti de novo, meu coração estava ficando cada vez mais apertado. Ele estava me encarando como todos os outros faziam. 

— Feitiços... — Os músculos de Ethan aparentavam estar tensos. — Lena, você é uma bruxa?

Tudo o que envolvia Magia tinha que ter aquele nome? Era uma ofensa. Nós não tínhamos qualquer relação com a visão deturpada de magia que os Mortais tinham. Todos aqueles filmes, séries e tudo o que envolvia bruxaria era, para eles, relacionado ao Diabo. Nós simplesmente tínhamos capacidades que nos faziam controlar coisas fora da realidade Mortal. Nos chamar de bruxos ou bruxas, seja no sentido "demoníaco" ou no sentido "Harry Potter", era ilógico. Nós não usávamos varinhas ou voávamos em vassouras, tampouco criávamos poções.

— Não. — respondi automaticamente, tentando não soar irritada. — Não seja ridículo.

Ele soltou o ar e me perguntei por quanto tempo estava sem respirar. Mas... tecnicamente eu era, certo...? Não deixava de fazer feitiços e usar Magia. Mas como falar aquilo sem que ele entendesse da forma errada?

Aliás, como falar qualquer coisa sem que ele entendesse da forma errada?

— Essa é uma palavra estúpida, sério. É como chamar de "nerd" uma criança esperta ou um atleta de "fortão". Você também vai esperar que esses nerds usem óculos e você quer que te achem burro por jogar basquete? É só um estereótipo imbecil.

Ethan demorou a entender o que eu queria dizer, isso se é que tinha entendido. Sua expressão parecia de alguém enjoado, prestes a vomitar. Ele olhou de novo para dentro de casa e se inquietou no degrau da escada. 

Mesmo sem olhar para ele eu podia ver suas expressões. Ele parecia enjoado. Olhou novamente para a casa, como se calculasse o caminho para correr. Seu silêncio era constrangedor para mim. Agora eu que queria sair correndo, talvez sair da cidade. Quem sabe ele me esquecesse?

Mas havia uma outra parte de mim, uma parte maior, que me fez ficar. Que me fez enfrentar a reação dele, fosse qual fosse. Olhei para o Mortal, que se mantinha olhando para longe, a expressão pensativa.

— Existe algum nome melhor? — questionou.

— Não há nenhuma palavra que descreva todas as pessoas de minha família. — respondi, ainda procurando uma palavra melhor, mas realmente não havia. — Há alguma que descreva todas as pessoas da sua?

Apesar de tenso, ele tentou quebrar o clima estranho.

— Há. Lunáticos. Essa palavra é perfeita. — "Lunáticos"? Eu riria em momentos menos desconfortáveis.

— Nós somos Conjuradores. Essa é a definição ampla. Todos nós temos poderes, fazemos essas coisas diferentes. É como um dom, algo da genética. Assim como algumas famílias são inteligentes e outras são ricas, bonitas ou atléticas.

Eu quase conseguia saber a pergunta seguinte. "O que você pode fazer?", "Qual seu dom?"... O problema era que nem eu mesma sabia. Só sabia que era uma Natural, que podia causar tempestades, que podia conversar através de simples pensamentos, que podia quebrar uma janela quando irritada... Mas o que mais eu podia fazer? Só sabia que ser Natural era algo além de muitos outros Conjuradores.

Esperei que ele perguntasse, esperei que fizesse uma de suas piadas sem graça... Mas não. Ele permaneceu em silêncio e eu pude sentir meu coração apertar de novo. Segurei no corrimão, sem saber se estava me impedindo de ir embora ou pegando impulso para correr. Eu poderia fingir que nunca aconteceu. Poderia pegar o rabecão, ir para casa, convencer tio Macon de que queria morar com tia Del e passar aqueles meses fingindo que Gatlin não existia, parando de tentar ser normal e agindo como tio Macon: me afastando de todas as formas possíveis dos Mortais.

Não importava o que eu faria depois, eu sabia o que estava acontecendo agora.

— Eu sabia que não devia ter dito nada. Não sei porque tentei. Falei para você me deixar em paz, falei para manter distância. Agora provavelmente pensa que sou uma aberração e vai me tratar como todo mundo trata. Vai em frente. Diga que sou louca.

Fechei minhas mãos e tentei não pensar no fato de quase estar com os olhos cheios de lágrimas.

— Você não é uma aberração. Eu acho que você é talentosa.

Nem adiantava ele tentar me fazer rir. Eu sabia que ele estava mentindo.

— Você já admitiu isso, já disse que acha minha casa é esquisita.

— Não me importo se vocês redecoram. E muito. — Olhei para ele. O silêncio não significava algo ruim? Ele ainda parecia desconfortável, mas não parecia a ponto de me xingar ou sair correndo. Apontou para uma luz acesa entre arbustos de azaleia e escondida por grossas janelas de madeira. — Olha. Sabe aquela janela ali? É o escritório do meu pai. Era o da minha mãe também antes de tudo acontecer. Eles viviam escrevendo quando estavam lá dentro. Ele trabalha a noite toda e dorme o dia todo desde que minha mãe morreu, não sai mais de casa. Nem me deixa ver o que ele está escrevendo.

Abaixei a cabeça, relaxando.

— Isso é romântico — murmurei — Ele continuar o trabalho dela com tanta dedicação.

— Não é dedicação, é loucura. Mas ninguém fala sobre isso, ninguém quer admitir na minha frente, e não há ninguém para falar. Somos só nós dois e eu não posso fazer nada. Além da gente, existe Amma, mas é claro que não vou falar sobre isso com ela. Ela esconde amuletos no meu quarto e grita comigo por trazer joias velhas para casa.

Eu estava quase sorrindo. Ele falava de um jeito que eu sentia vontade de rir.

— Talvez você seja uma aberração. — brinquei.

— Eu sou uma aberração, você é uma aberração, todos somos aberrações. Sua casa é esquisita, minha casa é esquisita. Sua casa faz recintos desaparecerem, a minha faz pessoas desaparecerem. Seu tio gosta de redecorar e meu pai gosta de alucinar. Seu tio recluso é doido e meu pai recluso é lunático. O que é que nos torna tão diferentes assim afinal?

O alívio me percorreu e não evitei um sorriso. Ele não parecia estar levando tão mal assim.

— Estou tentando achar um jeito de ver isso como um elogio ao invés de um xingamento.

— É um elogio.

Nós nos entreolhamos ao mesmo tempo. Fiquei olhando naqueles olhos castanhos através do cabelo que lhe caíam. Pensei em todo o medo que eu tivera de quando ele descobrisse e, agora... Agora ele sabia. Sabia e não parecia se importar. Pela primeira vez, a escola, meus poderes... Não pareciam fazer diferença. 

Eu estava sorrindo. Não podia parar de sorrir. Agora ele me conhecia de verdade. Ele sabia quem eu era, não apenas quem eu tentava ser. Nossos olhares se cruzavam como nunca havia acontecido antes. Mas ele cortou essa ligação e subiu um degrau, aumentando a distância de mim. Meu coração falhou. Eu não conseguia ver sua expressão com ele me evitando.

— Você está bem?

— 'Tá tudo bem, só me sinto cansado.

Mas não parecia estar. Eu resolvi ignorar e me arrumei no degrau, distraída pela luz da lua cheia.

— Esses poderes... — Voltou, hesitante, ao assunto. — Foram por causa deles aquele lance da janela?

Assenti e novamente evitei sei olhar.

— Nem sempre eu posso controlá-los... Eu não queria quebrar aquelas janelas. As vezes eles acabam sendo mais fortes do que eu, e coisas assim acontecem. Os sonhos provavelmente são reais desse jeito por minha causa também.

Ficamos um longo momento em silêncio de novo.

— E quanto ao medalhão? — perguntou.

— Eu não sei. Não foi eu. Digo, foi alguma outra coisa, não meus poderes. Algo acontece quando nós os seguramos. E eu não sei o porquê de tio Macon agir dessa forma sobre ele. Há alguma coisa que ele está escondendo.

Como sempre, pensei alto.

— Lena... Se você diz que não é uma bruxa, então vocês não têm nada a ver com Satã, né?

Eu levantei, irritada. Tentei não encarar ele com raiva.

— Isso é uma típica fala de Mortais. Achei que você não seria mais ridículo do que naquela hora. Me enganei.

Cruzei os braços e me afastei, sem olhar para ele. Ouvi o movimento dele levantar da escada, com o ranger dos degraus.

— O mal existe, Lena. 

— Claro que existe! Há Conjuradores do mal, há diversos tipos de maldades no mundo. Vai dizer que não existem Mortais do mal? Como você explica o comportamento daquele soldados da visão? A diferença é que vocês fazem os outros assumirem a culpa.

Ouvi Ethan caminhando sobre a grama de novo e ele tocou meu braço. Um arrepio percorreu minha pele. Ele estava hesitando. Parecia querer pedir desculpas.

— Me perdoe, eu só estou tentando entender tudo isso. — Ethan fez sinal para a escada e resolvi seguir com ele até lá. Sentamos exatamente nos lugares de antes. — Sabe, acho que só estou sendo tão lerdo quanto Link na aula de biologia.

Eu quase ri. Eu tinha aula de biologia e realmente havia um Wesley Lincoln péssimo na matéria. Começamos a conversar sobre Link. Ethan disse que ele era o amigo dele que não me julgava. Contou como se conheceram no jardim de infância, quando Link lhe deu um Twinkie no ônibus. Eles eram melhores amigos e por mais que ele fosse filho de Martha Lincoln, a mulher que me ameaçou no estacionamento da escola, era o único que não ligava se Ethan estava ou não passando tempo comigo. 

Wate também mencionou como Link amava cantar rock e ainda acreditava que um dia faria sucesso. Mas a maneira que Ethan explicou sobre ele me fez rir. Eu podia ver que eles provavelmente gostavam de pegar no pé um do outro. Como por exemplo quando se relacionava a Amma.

— Link morre de medo da Amma, mas não me deixa em paz, dizendo que vou acabar usando um saco de alho no pescoço de novo.

Eu ri.

— E você usou isso? Por quê?

— Era para o enterro da minha mãe. Amma é assim. Há três grandes coisas que ela é capaz de ficar doida com a obsessão: Superstições, Culinária e Palavras-Cruzadas. 

— Palavras-Cruzadas?

— Sim. Amma usa palavras-cruzadas pra tudo. Quanto maior, melhor. Ela gosta de soletrar, e você jura que ela está batendo em você a cada letra que fala. Ela é... — Vi Ethan contando algo nos dedos. — I-N-T-R-A-N-S-I-G-E-N-T-E. Treze horizontal. Que significa "Eu sou exigente com meus costumes, Ethan Wate, você já deveria ter acostumado!".

Voltei a rir. Ethan ainda estava falando.

— Ah! Ela também vive me ameaçando com as coisas mais aleatórias do mundo. Quando ela está irritada, levanta o que eu chamo de Ameaça-De-Um-Olho. Uma colher de pau da cozinha que ela parece levar para todo lugar. Isso e o lápis especial dela, número dois. Ela sempre aponta ele para ameaçar, você pode jurar que ela vai fazer alguém sangrar com aquilo. Eu nunca apanhei dela nem nada do tipo, mas digamos que tento evitar chegar atrasado para não descobrir o quão apontado aquele lápis fica.

Ethan e eu rimos juntos e voltamos a encarar a lua cheia. Eu contei sobre como Amma lembrava minha avó e contei sobre como ela e meu tio Macon eram quase como meus pais para mim. Nós seguimos conversando trivialidades pelo resto da noite.

Embora a conversa nem fosse tão engraçada assim, eu não podia deixar de sorrir. Eu não sorria por querer rir, eu sorria por estar feliz em estar com ele. Sorria porque sabia que por mais que ele ainda estivesse assustado com tudo, Ethan não me considerava uma aberração.

Eu sorria por finalmente ter feito um amigo.



Nós passamos horas ali sentados, conversando. Chegou ao ponto de estarmos deitados nos degraus, ele no de cima e eu no de baixo, encarando a lua acima e, pelo menos de minha parte, apreciando o momento. Minha vontade era sorrir a todo momento. Quem diria que ele não reagiria tão mal?! Em momento algum ele pareceu realmente estar cansado, mas eu não ligava.

Ficamos ali por tanto tempo que por fim acabamos por escutar os pássaros acordando, prontos para um novo dia. Acho que, mesmo sem ter dormido, eu também estaria.

Depois de ir para casa com o rabecão, olhei pelo retrovisor. Ethan não estava mais na calçada, mas eu podia ver Boo Radley seguindo o carro com seus passinhos lerdos. Acho que anoiteceria de novo e ele ainda não teria chegado.

Quando cheguei no meu quarto, peguei-me encarando meu reflexo no espelho. Parte de mim estava achando ridículo... Mas a outra parte estava feliz. Muito.

E foi por isso que passei o resto do tempo sorrindo sozinha.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Espero que sim! Comentei a opinião de vocês! Até a próxima!



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