Mundo medonho escrita por Helen


Capítulo 10
Parcialmente louco.




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O bilhete de Meireles dizia o seguinte: "Vocês apenas escaparão dessa cidade quando saírem dela com a mente sã e o corpo salvo. Não baixem sua guarda até lá. Os Medos nunca mudaram."

Talvez a desgraça gostasse de agir da mesma maneira que um dominó. Não bastava apenas derrubar um. O restante deveria cair também.

No instante em que Detetive e Diana entraram na clareira, um som rápido atravessou a mesma. Um Medo, mais especificamente o Medo de Gato, pulou de uma árvore, pousando no centro da clareira. Ao vê-lo, instintivamente, os quatro o atacaram. O Medo desviava de cada golpe com facilidade e leveza — era igual a um gato —, enquanto deixava todos os que o atacavam cada vez mais cansados, chegando a até mesmo se baterem por engano.

Os quatro estenderam a batalha até o máximo de suas forças, porém, o Medo estava impaciente. Expôs as garras de gato e pulou em Diana, que tentou o segurar pelo pescoço. Conseguiu, sendo arranhada no processo. Quando percebeu que o tinha nas mãos, o jogou. As garras do Medo seguraram no braço dela, penetrando na pele enquanto ela tentava jogar ele longe. Ronald mirou e lançou uma pedra na cabeça dele, o atordoando por tempo suficiente para que Diana soltasse as garras do braço e pudesse se esconder. O Medo voltou-se para Ronald, mas logo percebeu Agatha como alvo bom, e saltou em direção à ela, com as garras expostas, prontas para transformar ela em um Medroso. Ronald rapidamente entrou no caminho, segurando a criatura pelo pescoço. Detetive tentou paralisá-la segurando as pernas, mas foi arranhado bruscamente. E apesar das mãos vermelhas e sujas de sangue, ele continuou a tentar segurar aquela criatura. Acabou a puxando para trás, arrancando-a das mãos de Ronald. O Medo aproveitou e deu um impulso para frente, livrando-se com facilidade da mão de Detetive, assim pulando por cima de Ronald, movendo-se para a cabeça de Agatha. Ela fechou os olhos, por instinto. Apenas ouviu o impacto de algo aterrissando e um som como uma lâmina sendo cravada em um crânio. Quando abriu os olhos, viu Ronald com o rosto virado para baixo. Na sua cabeça, o Medo havia cravado suas garras, e estava se preparando para abri-la e retornar ao seu "lugar de origem".

A cabeça de Ronald se abriu um pouco, e o Medo rapidamente entrou em seu cérebro como uma cobra, fechando a fenda logo em seguida. Era tão rápido que os olhos humanos não conseguiam acompanhar. O rapaz caiu no chão e começou a tremer. Suas pupilas dilataram muito, e ele ficou encarando o nada por algum tempo. Demorou até que a ficha de todos caísse. Nem Diana, nem Detetive e muito menos Agatha queria acreditar no que tinham acabado de ver. Ronald havia se tornado um Medroso. E provavelmente, eles seriam os próximos. Não havia outra opção além de concordar. O que o destino havia preparado para Ronald havia sido aquilo, então ele teria que se virar com tal azar, para não atingir outros.

Cada um começou a se retirar lentamente, deixando Ronald para trás, enquanto o Medo não o havia possuído por completo. Pequenas lágrimas saíam do rosto de Agatha, mas ela as espalhou pelo rosto, o lavando. Diana, por sua vez, se sentia mal. O sentimento de culpa corroía seu estômago. Detetive se sentia culpado por não se sentir culpado. Era o único que não havia conhecido Ronald de verdade. Afastou aquela maldita culpa, pois sabia que de nada serviria. E nessa forma poética e dramática, saíram todos eles. Ronald continuava caído, sendo gradativamente possuído de corpo e alma pelo Medo. Se apenas sentisse o mesmo medo que seu Medo representava, a possessão seria mais simples de engolir. Porém, apenas o fator de que "herdaria" todos os medos existentes lhe dava arrepios.

O Medo sorria dentro da cabeça do rapaz. Esticava seus braços e dominava lenta e dolorosamente a mente dele, tomando parte de sua sanidade. Precisava aproveitar enquanto ele não sabia como repreender a possessão medonha para fazer o que bem quisesse com aquela mente. Disse, com a voz rouca e um sorriso:

Que azar o seu, não é? — os olhos brancos dele brilhavam. Dominado o cérebro, era fácil fazer-se visível na camada de imaginação que pode encobrir os olhos. — Além de se tornar um Medroso ainda é abandonado por quem salvou. A desgraça não teve piedade de você.

Ronald não conseguia dizer algo. O assombro era algo que não conseguia largar naquele momento.

Haha, você é um desgraçado! Desventurado! Mal-afortunado! — e o Medo continuava a rir dele, brincando com sua alma e mente. — Olha só! Eu posso controlar você se eu quiser! — a criatura movia os braços do rapaz, para lhe mostrar o poder que a possessão dava a ela. — Veja! Veja! Eu te controlo, garoto! Nunca mais você terá paz na sua vida enquanto eu existir! Morra louco! Morra louco!

A voz era impossível de calar quando vinha da sua própria cabeça.

...

Enquanto o mais novo Medroso daquela cidade conhecia o terror que era a possessão medonha, outro Medroso andava por aqueles mesmos bosques, com um certo mago.

Devit e Adler estavam seguindo o rastro do Medo há um bom tempo. Seu propósito inicial era apenas utilizá-lo para descobrir os responsáveis pela explosão, porém, o propósito mudou drasticamente quando viram a figura de Ronald caída no chão, tremendo, todo arranhado e com as pupilas dilatadas (a ponto de quase dominar todo o restante do olho).

— Chegamos tarde. — Devit se abaixou para analisar o estado do rapaz. — Já foi possuído. Está em processo de adaptação.

— Desse jeito ele vai morrer! Olhe só pra esse menino. — Adler se aproximou. Seu Medo flutuava ao seu lado. Culpa de Otsugua. — Se o estado físico dele já está precário, imagine o estado da mente! Não tem como fazer algo?

— Otsugua. Impedit absolute possessionem.

Otsugua deixou o Medo flutuando e entrou na mente de Ronald, para impedir que a possessão do Medo findasse em um Surto. Enquanto Otsugua batalhava com o Medo, Devit e Adler podiam fazer nada além de esperar.

— Acha que ele consegue? — perguntou Adler.

— Talvez. Otsugua não é tão poderoso como um anjo nem um demônio, e por isso deve ter a mesma capacidade de um Medo. Ele é só alma. Os Medos são "almas" criadas a partir de uma máquina que absorvia o sentimento da parte do nosso cérebro. Porém, essa máquina não absorveu apenas o nosso medo. Ela tirou uma parte de nós, e deve ser por isso que os Medos parecem tanto uma criatura viva, e não apenas um sentimento materializado.

— Soube que você estava lá quando criaram os Medos.

— E estava. Aliás, eu fui o cara que desenhou a forma física dos Medos pra passar para a realidade. Também fui um dos responsáveis por catalogar os Medos.

— Você deve estar sendo amaldiçoado por muita gente agora.

—... Eu sei. — Devit soltou um suspiro. — Mas eu mereço.

Ronald "despertou" de súbito. Começou a tossir e vomitar o sangue do Medo. Otsugua saiu da mente dele, e voltou a segurar o Medo de Adler. O rapaz ficou algum tempo sem perceber a presença dos três ali. Ficou parado, como alguém que desperta de um pesadelo muito real. Sorriu ao descobrir que havia "acordado" do pesadelo. Ele se virou para Devit e Adler, ainda sorrindo.

— Foi só um pesadelo, né? Está tudo normal agora, não é? Me diz que está! Me diz! — a voz dele se converteu em um grito desesperado. — ME DIZ! ME DIZ QUE FOI SÓ UM PESADELO! ME DIZ QUE AQUILO TUDO NÃO FOI REAL! ME DIZ! ME DIZ!

— Ele ficou louco? — perguntou Adler para Devit, levemente assustado.

— Talvez. Apenas saberemos com o tempo. — o mago olhava com pena para o novo Medroso.

— Vamos deixar ele aqui?!

— Nem. Otsugua vai levá-lo, e você vai ter que parar de ser preguiçoso e levar o fardo do seu Medo.

Devit ordenou a Otsugua que "apagasse" e carregasse Ronald, e deixasse que Adler segurasse seu próprio Medo. A alma obedeceu e logo eles estavam andando normalmente.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Adler, enquanto murmurava ter que segurar sua maldição de bolso.

— Procurar Dr. Sylvannia.

— Loch?! Aquele inútil que faz nada e nunca está quando precisamos?!

— Quem é você para falar do homem que criou uma organização sozinho para combater um problema que o mundo não sabia resolver?

— Nada. Mas onde ele está agora? Não deveria pelo menos estar aqui?

— "Deveria", disse bem. Nesse momento ele está em um laboratório de uma cidade próxima. Os Medrosos vão despertar dos Surtos daqui a algum tempo, e tudo voltará ao "normal", podemos dizer. Pegaremos um trem até a cidade vizinha e lá encontraremos Loch e vamos descobrir o que fazer com Ronald.

Adler e Devit continuaram a caminhar, esperando pacientemente até que o caos terminasse.

...

Quando ele terminou — duas horas depois — eles foram até a estação de trem.

O trem se movia numa velocidade impressionante. Mesmo velho e enferrujado em algumas partes, não perdia sua velocidade original por nada. Nas entradas para a estação estavam detectores de Medos, os quais haviam sido recentemente inventados pelos Intrépidos. Quando um Medo era detectado, o dispositivo lançava uma minúscula agulha cheia de tranquilizante, que fazia tanto o Medo quanto o Medroso desmaiarem, dando tempo a polícia para prendê-los sem lutas.

Adler observava o dispositivo de longe, enquanto Devit comprava amendoins em um camelô que ficava na rua do outro lado da estação. Otsugua segurava Ronald para que ele parecesse estar em pé, quase dormindo, para não levantar suspeitas. Quando Devit terminou de comprar os amendoins, ficou parado em frente à rua, observando o mesmo que Adler.

— Dali eu não passo. — disse Adler em tom baixo, para que não ouvissem. — E agora?

— Temos duas opções.

— Quais?

— Otsugua quebra o sistema por algum tempo, a gente causa uma confusão e entra no trem de fininho ou eu atiro no dispositivo, ele explode, eu fujo, você entra na confusão junto com Ronald e nos encontramos depois.

— A segunda.

— Certo. — Devit tirou um revólver do bolso. — O trem vai passar daqui a pouco tempo. Vou atirar quando ele estiver descarregando passageiros. Quando ouvir o primeiro grito vindo do trem, corra, porque o maquinista vai acelerar o trem o mais rápido que puder. Não responda a nenhuma pergunta quando entrar lá. Apenas diga que está carregando alguém doente para um médico da cidade vizinha.

— Você fala como se já tivesse feito algo parecido.

— Diz isso como se não me conhecesse.

— Por um momento esqueci que você é o mr. Devit.

— Que bom que foi apenas por um momento.

O Medo de Adler entrou novamente na cabeça de seu "dono", escondendo-se do restante das pessoas. Devit chegou até a entrada da estação, deu um grito e atirou pro dispositivo, o explodindo. Imediatamente algumas pessoas começaram a gritar (assim revelando Medrosos escondidos na multidão) e a polícia foi acionada. Começou uma batalha entre os Medrosos e as pessoas comuns, e nessa bagunça, Adler atravessou o campo de batalha carregando Ronald e entrando no trem segundos antes da porta se fechar e ele ir embora em alta velocidade.

Por sorte, Adler havia entrado em um vagão quase vazio. As poucas pessoas que estavam lá mal ligavam pro tumulto, e ignoraram a presença de Adler e a expressão assustada do mesmo. Ele se sentou em um dos bancos e deixou Ronald sentado em outro, encostado na janela. Como não havia mais nada para ser feito, Adler ficou admirando a paisagem. O silêncio apenas quebrado pelo som da movimentação do trem fazia o rapaz se lembrar de seu passado.

— Ei, Adler. — disse o Medo, dentro de sua mente.

— O que é, desgraçado? — sussurrou Adler, com medo de que lhe ouvissem.

— Sabe esse garoto que você está levando? Ele me lembra você.

— Lembra?

— "Aham". Houve o mesmo processo. Eu não era o "Medo de ser Abandonado" no início. Me metamorfoseei nele, porque era o seu maior medo antes. Agora, a mesma coisa acontece com esse garoto.

— Hum. Você se transformou nesse Medo que é hoje?

— Quase isso. Considere a mente humana uma mesa. Ela está cheia de recipientes, que são enchidos com as emoções. A humanidade de agora tem parte desses recipientes completamente vazios. Quando um humano se torna um Medroso, esses recipientes são preenchidos com o próprio Medo que se apossou do humano. Quanto maior é o recipiente, mais o Medo se "dedica" a ele para preenchê-lo. Nisso, o Medo acaba jogando sua essência para encher o tal e se torna o conteúdo que antes estava nele.

— Todos os Medos se comportam assim?

— Só os que estão preparados fisicamente.

— Por que está me dizendo isso?

— Talvez isso seja uma informação útil pra vocês, humanos imbecis. — ele soltou uma risadinha debochada.

— Cala a boca.

Depois de o Medo rir, tudo se fez silêncio. O restante da viagem foi silenciosa. Adler passou ela relembrando sua época na Unidade de Pesquisa Sobrenatural. Sentiu uma breve saudade de suas épocas intrépidas, em que sua vida resumia-se a trabalhar, sair com seus colegas e visitar seu “pai”, que era o mesmo de Devit. Mas seu trabalho foi interrompido, seus colegas achavam que ele estava morto e o homem que foi o responsável por ensinar a Adler e Devit tudo o que eles sabiam havia desaparecido desde alguns anos antes do Grito.

— Que vida, hein. — comentou o Medo, que acompanhara toda a viagem de memórias do homem.


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