Christina

Era quase nove horas quando cheguei nos trilhos acompanhada de Will, Uriah e Marlene. Ou outros chegaram alguns minutos depois. O vento gelado castigava nosso rosto. Eu tremia levemente, mesmo usando doas casacos.

— Onde será que a Tris se meteu? — Eu falo, sem endereçar a pergunta pra ninguém em especial — Eu estou congelando aqui. Acho bom ela chegar rápido, senão vai me pagar caro.

— Daqui a pouco ela está aqui, Chris — Will fala, fazendo menção de me abraçar, mas desistindo no meio do caminho. Eu reprimo um suspiro — Não são nove horas ainda.

Fico pensando em como Tris estava esquisita nos últimos dias. Na verdade, ela estava meio esquisita desde o dia em que supostamente tinha torcido o pé e chegado no refeitório praticamente carregada por Quatro.

Incrivelmente, eu não havia falado nada pra ela que eu tinha notado como ela está esquisita. Ela não comia direito, mal tinha tempo conversar com a gente, e quando não estava com os Iniciados, vivia de conversinha pelos cantos com Quatro. Eu notava as conversas em que eles pareciam absortos um no outro. Eu tinha certeza absoluta que ele sabia o que ela estava aprontando.

Ainda tinha a história que ele estava fingindo ser namorado dela. Eu não tinha acreditado muito naquilo, mas também não havia visto nada que me provasse o contrário.

— Me desculpem a demora — Ouvi a voz de Tris vindo de algum lugar atrás de mim. Ela falava um pouco mais alto que o vento que tomava meus ouvidos.

— Finalmente — Eu disse — Eu já estava indo embora — Acrescentei, rindo. Era bom pra dar uma quebrada no gelo que estava o clima.

— Nem vem — Ela responde, esboçando um sorriso fraco — Dessa vez você nem tem desculpa. Nem perdemos o trem.

— Nós vamos pegar o trem? — Eu digo, com uma falsa inocência — Achei que o barulho cortante do vento serviria para abafar as vozes, sem que precisássemos ficar nos chacoalhando dentro do trem — Eu não perdia uma oportunidade de implicar e tentar descontrair.

— Pelo menos não vamos ficar tomando vento dentro do trem — Tris deu de ombros e se aproximou ao ver as luzes do trem que se aproximava.

Ela saltou para dentro do trem com facilidade, e o resto de nós a seguiu. Tris parecia extremamente tensa e preocupada, mas alguma coisa em seus olhos aparentavam uma certa felicidade.

— O que Quatro queria com você mais cedo? — Eu pergunto, tentando disfarçar minha curiosidade.

— Eu vou chegar lá — Ela responde, me dando uma leve impressão que era mentira. Mas se tratando de Tris, eu nunca tinha muita certeza. Uma das maiores habilidades dela era inventar ou editar histórias, sem contar que ela mentia muito bem, até pra mim, que sabia reconhecer um mentiroso de longe.

— Somos todos ouvidos — Eu disse e ela respirou fundo.

— Eu preciso da ajuda de vocês — Ela finalmente disse — Não só eu, mas a Audácia toda — Ela faz uma pausa respirando fundo novamente.

— Tris — Will chama — Nós queremos ajudar, tá legal? Mas precisamos saber como.

— Eu vou direto ao ponto — Ela fala — A Erudição quer tomar o governo. E para isso, eles precisam de um exército. Nós somos o exército. Eles vão colocar os membros da Audácia em uma simulação e nos fazer lutar a guerra por eles, sem nem ao menos saber a nossa opinião — Os olhos dela brilham de fúria — E os nossos líderes estão de acordo com isso, desde que eles consigam parte do poder — Ela faz uma pequena pausa — Tenho certeza que vocês já ouviram falar dos Divergentes, certo?

Nós concordamos com a cabeça. Os Divergentes eram aqueles que tinham uma aptidão para duas ou mais facções.

— Os nossos líderes estão caçando os Divergentes — Tris volta a falar, decidida — Eles querem encontrá-los e mandá-los para a Erudição, para serem cobaias. A Erudição está tentando desenvolver uma simulação para controlá-los, já que eles são os únicos que não ficam inconscientes durante uma simulação e podem estragar os planos de tomar o poder.

Vi Uriah empalidecer. Tris respirava com dificuldade. Will coçou a cabeça e ameaçou falar alguma coisa, mas Tris foi mais rápida.

— Nós queremos tomar o poder antes que isso aconteça. Tirar Max e ou outros de lá antes que a Audácia seja arrastada para um buraco sangrento. Antes que nossa vontade seja desrespeitada. Antes que desonrem nosso manifesto.

— Como você sabe de tudo isso? — Marlene pergunta.

— Vocês se lembram do dia que eu cheguei mancando no refeitório? — Ela pergunta e nós concordamos com a cabeça — Então, não foi torção. Tentaram me matar na noite anterior. Eu tomei uma facada na perna e outra na região dos rins. Me machuquei bastante, mas consegui sair viva de lá. O cara que me atacou fez isso porque, de alguma forma, ele sabia que… que eu sou Divergente — Ela desviou os olhos de nós — Foi aí que eu comecei a investigar.

Eu parei de respirar. Tris era Divergente. Como ela conseguiu esconder isso de nós? E por tanto tempo?

— Max vai aplicar os testes da segunda fase — Ela continuou — É quando ele pretende descobrir quem são os Iniciados Divergentes. E vai mandá-los para a Erudição — A voz dela saiu dura, sem emoção.

Me lembrei da segunda fase.

— Ele pode descobrir isso só vendo as simulações e o jeito que reagimos a elas? — Lynn pergunta.

— Sim — Tris diz categoricamente — Quatro descobriu que eu sou Divergente quando aplicou os testes. Ele manipulou os resultado para que os líderes não descobrissem — Ela fez uma pausa, provavelmente pensando o que falaria em seguida — Os Divergentes têm consciência do que acontece nas manipulações, assim como vocês tiveram na terceira fase. Somos assim em todas as manipulações. Ontem, na caça a bandeira, Eric surtou e tentou matar o Quatro. Nós achamos que ele estava em uma manipulação.

— Quatro tá bem né? — Uriah pergunta. Quatro era o melhor amigo de Zeke, irmão de Uriah — Digo, ele parecia bem no refeitório.

— Ele está bem — Tris responde — Eu meio que acertei um canivete nas costas de Eric pra ajudar o Quatro.

— Você esfaqueou o Eric? — Eu pergunto, presumindo que foi por isso que ele não apareceu hoje — Te amo garota, na boa.

— Não acertei em nenhum lugar fatal — Tris deu de ombros — Foi só pra imobilizá-lo.

— Que pena — Eu resmungo.

— Quatro está envolvido nessa história toda? — Marlene pergunta — Digo, nessa pesquisa sobre os líderes e a Erudição?

— Na verdade, os créditos pelas descobertas são todos dele — Ela diz, dando um sorriso fraco — Nós temos provas e pretendemos juntar o máximo de pessoas que conseguirmos, para desmascarar os líderes perante toda Audácia e julgá-los corretamente. E é claro eleger democraticamente pessoas justas para a liderança.

— Quem mais está nisso, Tris? — Uriah pergunta.

— Tori, Zeke e Shauna — Ela responde — Os únicos pra quem contamos até agora.

— Eu estou dentro — Uriah diz — Conte comigo pro que precisar. Nós não vamos nos render — Ele sorri.

— Eu também estou dentro — Eu digo — Não estou afim de ser manipulada.

— Estou com vocês — Will diz serenamente.

— Contem comigo — Marlene diz, sorrindo — Não vou virar soldado da Erudição de jeito nenhum.

— Eu também vou ajudar — Lynn fala, apoiando a causa.

Só faltava Al. Ele estava muito esquisito hoje, desde o jantar. Era como se ele estivesse sem alma e sem luz dentro dele. Ele pareceu reparar que nós esparavamos uma resposta, já que todos o encaravam.

— Eu… Tá bem, vou ajudar — Ele diz, sem emoção.

— Eu não sei como agradecer a vocês — Tris diz — Amanhã, durante o horário de visita aos Iniciados vamos nos reunir na sala de treinamento, para conversarmos melhor.

— Então nós estamos em guerra? — Marlene pergunta.

— Justiça acima da paz, não é verdade? — Tris responde calmamente.

Minutos depois nós deixamos o trem. Decidimos entrar aos poucos, para não chamar muita atenção caso encontrássemos alguém. Fico pra trás com Tris.

— Você é louca menina — Eu digo, rindo.

— Como se você não fosse, né? — Ela responde.

— Tris, só tem uma coisa que você não explicou hoje — Eu digo, mal me aguentando de curiosidade.

— O que é? — Ela pergunta.

— Qual sua verdadeira relação com Quatro? — Eu pergunto.

— Nós estamos juntos — Ela responde simplesmente.

— Tipo juntos, juntos? — Eu questiono, achando incrível — Deuses, eu sabia que vocês acabariam namorando.

— Só mantenha em segredo — Ela diz.

— Por quê? — Eu pergunto, achando um saco isso de privacidade — Ele não é seu instrutor mais.

— Al se declarou pra mim hoje — Ela diz, arqueando as sobrancelhas — Eu meio que dei um fora nele e ele ficou chateado. Não quero que ele saiba que eu estou com Quatro. Não ainda. Vou dar um tempo pra ele assimilar que eu não quero nada mais do que a amizade dele.

— Isso explica a mudança de humor dele hoje — Eu resmungo. Nós entramos no complexo.

— Chris, que horas são? — Tris pergunta.

— Quase dez e meia — Eu respondo, consultando o relógio — Que tal uma festa de pijamas? Eu, você, Lynn e Mar?

— Não vai dar — Ela diz — Tenho que resolver umas coisas ainda.

— Descontrair e descansar é necessário — Eu argumento.

— Sei… Mas eu tenho que ir — Ela diz, olhando em volta — Vou procurar o Quatro. Já estou atrasada. Mas obrigada por tudo, Chris.

— Ah, então você vai descontrair, mas só que com o Quatro! — Eu exclamo, rindo. Ela me dá um tapa de leve.

— Não é nada do que você está pensando — Ela argumenta.

Nós nos despedimos e eu a vejo se afastar, rumo ao lado leste da Audácia. Até eu queria um Quatro pra descontrair.

Sigo para o meu quarto, lembrando da bagunça que ele estava.