Intransitividade escrita por AmanditaTC


Capítulo 2
Crise


Notas iniciais do capítulo

Acredito que todos os capítulos serão basicamente curtos.



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Mariah era assessora no Fórum Municipal há dois anos. Formada em Letras, abandonou as aulas em três escolas particulares quando passou no concurso para o cargo que exercia atualmente e há dois meses cursava a faculdade de Direito.

Sua vida girava, desde então, entre estudo, trabalho e o filho de 3 anos. Érico era um menino esperto, divertido e que fazia o impossível para arrancar sorrisos do rosto da mãe e dos avós que ajudavam na criação do pequeno.

Ser mãe solteira não fazia parte dos seus planos, mas o casamento com Fabrício, pai de Érico acabou antes mesmo de o menino completar um ano.

Foram 10 anos juntos, contando os seis anos de namoro e quatro de casamento. Mariah engravidou a pedido de Fabrício, que dizia que um casamento só é completo quando crianças correm pela casa.

A gravidez de Mariah foi complicada. Ela teve pré-eclampsia e passou os últimos dois meses de gestação na cama, sob cuidados médicos intensos. Fabrício se desdobrava em mil para garantir que mulher e filho ficassem bem. Não saía do lado dos dois a não ser para trabalhar e sempre que voltava pra casa trazia consigo uma surpresa: algumas vezes um doce que a mulher gostava, outras vezes um brinquedo para o quarto do “pequeno príncipe”, como ele mesmo chamava o filho.

Mas quando Érico nasceu e o perigo passou, o rapaz simplesmente perdeu o interesse pela esposa, passando a enxergá-la exclusivamente como “mãe” e esquecendo-se de que ela também era uma mulher.

E assim que as responsabilidades da criação de um bebê pesaram, Fabrício se afastou definitivamente. Inventava congressos de T.I. em lugares cada vez mais distantes, deixando Mariah na casa dos pais. Não sabia trocar uma fralda, não se oferecia para dar banho no menino e sequer admitia acalentá-lo quando acordava chorando no meio da noite.

Nem mesmo a cirurgia cardíaca a que sua sogra teve que se submeter quando o pequeno tinha 6 meses foi suficiente para trazê-lo de volta à realidade e despertar nele a preocupação com mulher e filho.

Mariah continuou tocando o casamento do jeito que podia, mais pelo que seus pais pensariam ao vê-la separar-se do que pelo que sentia em relação a tudo. Estava cansada da imaturidade do marido, das desculpas esfarrapadas e da covardia dele, que se recusava a colocar um ponto final em tudo sempre que ela lhe pressionava para se decidir.

- Você está confundindo as coisas, amor. Eu só estou cansado de trabalhar muito.

- Cansado? E eu, Fabrício? Eu não estou cansada? Trabalho na escola quase todos os dias em turnos alternados, cuido do Érico nos intervalos das aulas, cuido da nossa casa e agora também supervisiono a recuperação da minha mãe.

- Já lhe disse pra chamar sua irmã para ajudar.

- Ah, sim, vai ser muito fácil para minha irmã sair de Buenos Aires com os gêmeos de três anos e vir até aqui para me ajudar a cuidar da minha mãe!

- Fácil não é, mas não é justo ficar tudo sobre as suas costas.

- Exatamente! Se você assumisse seu papel de pai, eu não teria que fazer tudo sozinha.

- Quer saber! Chega! Não dá pra conversar com você. - E ele saía, batendo a porta atrás de si.

Discussões como estas eram freqüentes e sempre terminavam com Fabrício dormindo na casa de um amigo ou dos pais e Mariah trancada no banheiro, chorando embaixo do chuveiro para que a mãe não ouvisse seus soluços.

Ela aturou essa situação por meses a fio. E no fim das contas já não procurava saber se ele estava com outra mulher. Já não lhe importava mais. Os carinhos na intimidade deixaram de existir mesmo antes de Érico nascer. E o que antes deixava a mulher preocupada, agora a deixava aliviada.

Sabia em seu íntimo que mesmo que quisesse não conseguiria fingir interesse no marido. Beijá-lo na frente dos parentes era quase uma tortura e se imaginar na cama, nua, ao lado dele, a deixava verdadeiramente incomodada.

E foi justamente este afastamento inicial, antes de oficializarem a separação, que fez com que Mariah entendesse que a tristeza que sentia não era pela falta do marido, mas sim pela falta de si mesma.

Certo dia, ao se olhar no espelho, com roupas que ela não gostava, uma cor de cabelo que não lhe fazia sentir-se atraente, brincos pequenos, unhas claras e olhar sem brilho, ela se perguntou quem era aquela estranha.

Há quanto tempo ela havia renunciado de si mesma? Há quanto tempo havia se deixado moldar por um padrão avesso a suas convicções e anulado o que de melhor havia em si?

Foi até o guarda-roupa e notou que nada ali era seu. Todas as roupas, sapatos, jóias e acessórios eram exatamente como sua sogra pensava que uma mulher de família devia se portar. Puxando uma escada, retirou do maleiro duas caixas de roupas, onde havia guardado seus jeans, tops e vestidos. Em outra caixa, quase uma dúzia de sapatos e sandálias de saltos e numa outra caixa, desta vez pequena, os brincos de argola e pulseiras de berloque que amava.

Deixou roupas e sapatos para lavar, passou no salão, cortou os cabelos com um corte channel moderno e desfiado e tingiu-os de vinho. Fez as unhas com o esmalte vermelho mais intenso que a manicure tinha e ainda se deu ao luxo de passar em uma loja e comprar algumas peças novas para seu guarda-roupa.

Quando chegou em casa, Fabrício já estava sentado na sala lendo um livro e sequer reparou em qualquer mudança. Apenas comentou que havia pedido uma pizza, já que parecia que ele não tinha mulher.

E Mariah respirou fundo dezenas de vezes para não responder que parecia que ela não tinha marido há no mínimo dois meses. Mas achou que uma discussão aquela altura do campeonato não levaria a lugar algum. E os dias foram seguindo sem nenhuma mudança além da jovem professora recuperando sua auto-estima e ainda assim passando despercebida pelo marido.

Até que junho chegou e com ele a exposição de gado, que era o evento mais aguardado na comunidade e que Mariah fazia questão de ir, mesmo que não entendesse muito do assunto principal da festa. Ela apreciava de verdade o movimento, os shows de duplas sertanejas e bandas countrys e o clima de animação que pairava sobre a cidade nos sete dias que a festa durava.

E como era de se esperar, Fabrício se recusou a ir à festa aquele ano, alegando ter outro congresso em Porto Alegre. Passaria três semanas longe e antes de sair de casa, com as malas e o notebook a mão, ainda comentou:

- Chama uma das meninas para ir contigo. Não precisa ficar em casa sozinha só porque eu vou viajar a trabalho. Você também precisa se divertir. Ultimamente tem se mostrado muito estressada.

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Notas finais do capítulo

Adoro reviews, sabia?



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