Enquanto o Sol Brilhar escrita por Gabriel Campos


Capítulo 13
Bob: Ainda é agosto


Notas iniciais do capítulo

Música: Fake Plastic Trees
Intérprete: Radiohead

https://www.youtube.com/watch?v=NUJP0BwWB5Q



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Acordo. Estou jogado no corredor do hospital municipal. Desejo que tudo isso faça parte do pesadelo pelo qual estou passando, mas as lembranças da noite anterior me dão um choque de realidade. Esfrego as costas dos braços nos olhos, sento-me no chão e uso uma das cadeiras ao meu lado para me pôr de pé. Cento e tantos quilos de pura preguiça e de pura decepção com a vida. Queria estar morto agora.

Começo a caminhar, este lugar tão branco, tão limpo chega a me dar náuseas. Sinto que vomitarei caso não veja alguém. Ótimo, a recepcionista. Talvez ela tenha notícias da Dona Tânia.

— Eu posso vê-la? — indago, sem hesitar. Minha amiga, quase mãe, mãe postiça, precisa de mim. Ninguém pode me impedir isso.

A recepcionista me entrega um papel com o número do quarto da enfermaria onde Dona Tânia está. Fica no terceiro andar. Vou de escadas. Chego à porta do quarto, um pouco cansado (Bob, não minta, você está quase colocando os bofes para fora!) e por vezes, hesito em entrar ou, ao menos, pôr a cabeça para ver o que lá dentro se encontra. Decido entrar de uma vez. Vejo Tânia, ali, o soro glicosado ligado em sua veia. Ela está pálida, seus olhos abertos, fixando o nada, o teto talvez.

Dou dois passos à frente, Tânia percebe minha presença. Sem dizer nada, me aproximo ainda mais, de modo que pego sua mão. Ela me olha, feliz por eu estar ali. Não aguento o silêncio, preciso dizer algo, mas é ela quem diz primeiro.

— Bob, por favor, não deixem que me vejam assim. — ela pede, há dificuldades em sua fala — Eu sei que não sairei daqui viva.

— Ei! — repreendo-a — por favor, não diz isso. Eu não quero que a senhora morra.

Tânia fecha a mão, em punho, e tenta me bater.

— Já disse pra não me chamar de senhora. Faz eu parecer... velha.

Eu rio. Após isso, uma lágrima escapa. Eu não quero que ela vá embora. Eu quero que ela resista. Eu sentira falta das broncas dela, e de seu humor ácido. Eu não viveria sem ela. Ela é minha família.

Despeço-me com um beijo em sua testa. Prometo que vou voltar, prometo que voltarei e farei com que ela resista, que se cure, que fiquei bem. Ainda há chance.

— Eu não quero, Bob. — Tânia diz, antes que eu saia do quarto. Já estou de costas, choro muito — Eu não quero sofrer. Tratar o câncer só vai fazer com que meu sofrimento dure mais. Você não acha que é melhor que eu vá e acabe com tudo isso de uma vez?

Eu não respondo nada. Continuo parado, de costas para ela, inundando minha camisa com lágrimas descontroladas.

— Eu não quero que a senho-... Eu não quero que você morra.

— Não seria muito egoísmo da sua parte, garoto? Querer que eu fique viva e sofra? Bob, entenda uma coisa: a morte significa libertação. Pelo menos, no meu caso.

— Voltarei depois. — digo, finalmente. Quero sair dali o quanto antes.

Algumas pessoas dizem que agosto é o mês do desgosto. Talvez elas tenham razão. Chego em casa, olho no calendário, esta maldita segunda feira também é dia 31 de agosto. Só pode ser algum tipo de carma. Talvez o mês do desgosto queira mesmo fechar com chave de ouro. Eu só preciso resistir até as onze e cinquenta e nove da noite.

Meu amigo Jack me recebe abanando o rabinho. Deve estar faminto, penso. Também estou. Ando pelo meu cubículo até chegar a cozinha, onde encontro a maior bagunça. O pote onde guardo sua ração canina está no chão e o conteúdo esparramado. Pelo menos ele se serviu enquanto eu não estava em casa.

Eu não preciso trabalhar hoje, mas é triste ficar feliz com isso, sabendo que o motivo é o estado de saúde de Dona Tânia que, por consequência disso, a mercearia não será aberta. O que será daquele condomínio sem sua síndica? Onde as pessoas comprarão suas coisas? O que será de mim sem ela?!

Sento no chão, em frente à TV. Evito ligá-la. Há uma parte de mim faltando, talvez seja aquela parte desleixada, que não está nem aí pra vida. Aquela que me apodrece. Há um pouco de compaixão em mim e é isso o que talvez me torne humano naquele momento. Minha mente pensa mil coisas, mas ao mesmo tempo, está vazia, oca. Jack percebe minha tristeza e se aproxima, lambe o meu rosto. Fito-o: nem parece aquele cachorrinho que salvei da morte. Ou melhor, que Doutora Janaína Bernardes – a Jana – salvou.

Eu não acredito muito em milagres, mas acredito muito na medicina. O problema de Dona Tânia com certeza é mais grave que o que Jack teve, mas devo dizer que também acredito que a pessoa deve querer viver para que a medicina aja e faça seu trabalho.

Eu sou um ser humano, gordo, com fome, com uma promessa de emagrecer prestes a ser quebrada. A comida, tão doce, foi o que me salvou quando Bia morreu. Talvez o que me envenenou também. Levanto-me do chão, Jack late duas vezes, aquele deve ser um código canino para “não”. Meu amigo sabe que estou prestes a fazer uma merda, e eu também sei que não devo tapar um buraco no meu coração entupindo o que resta das minhas veias, mas eu não vejo saída até encontrar um pacote de bolachas recheadas cheio de colesterol, de gorduras trans e de muito açúcar. Ser viciado em comer é uma droga. Você sabe que o alívio é passageiro. Você se esquece dos seus problemas por um breve momento, mas mesmo sabendo que tudo vai voltar, continua se entupindo de tudo o que vê pela frente.

Fecho os olhos enquanto mastigo. Minha glicose aumenta a cada grão de açúcar industrializado que ponho para dentro do meu corpo. Eu não ligo. Só quero ficar aqui até agosto acabar. E eu quero que as últimas horas de hoje sejam doces, mesmo que tal doçura seja venenosa.

Mês que vem , Deus, eu juro, retomo minha dieta. Eu juro.


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