O peso da minha alma; a leveza dos teus atos. escrita por SweetFantine


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Confesso que fiquei impressionada ao ler "A insustentável Leveza do Ser". É só ver o meu pequeno livrinho de bolso, todo marcado, com fitinhas rosas e azuis, grifados aqui e ali, para ter uma ideia do quanto eu me dediquei ao ler ele.

E posso afirmar, com certeza, que foi um dos livros mais proveitosos dos quais eu já li. Curto, inteligente, profundo, verdadeiro.

E é com grande honra que trago a vocês a minha primeira fanfic dedicada exclusivamente a duas (poderosas) personagens de Milan Kundera.
Àqueles que já leram, peço que tenham um pouco de mente aberta, pois, por mais esforços que empreguei, não consegui manter exatamente todas as características das personagens.

Até por que, neste curto relato, eu explorei um sentimento à parte do livro (que, infelizmente, talvez nem tenha existido), que é a ligação entre Tereza e Sabina.

Quanto ao tema, havia de escolher um dos três, pois bem, escolhi a Amizade. Porém, o meu relato pode dar margem a diversas interpretações.
Gosto sempre de adicionar algo à mais em meus textos. Por isso, perdão, isto já é inerente a mim. Mantenho sempre um estreito vácuo para que o leitor interprete a seu modo e como quiser alguns trechos ambiguos.

Afinal, quantas possibilidades há nestas três palavras: "Eu te amo"?


A história é narrada em terceira pessoa, narrador-personagem, e mantive uma estrutura de relato, misturado à entrevista e um flashback duvidoso/controverso.

Resolvi inserir alguns trechos da música "Best of you", já que foi dela a geração da semente que deu origem à história.

Talvez o número de palavras ultrapasse um pouco do permitido por ter adicionado os trecho por último.

Talvez seja desclassificada. Não importa. Selecionei aquilo que achei essencial ao momento.

Sem mais delongas, segue então o trecho esboçado de um caderno de uma entrevistadora e leitora muito ávida:



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I've got another confession to make
I'm your fool

Março, 1971*

Vou relatar o que se sucedeu quando, devido à uma ideia absurda que me ocorreu, resolvi entrevistar duas mulheres que não se viam a anos.


Começou da seguinte forma:

Perguntei às duas, separadamente, quais eram as suas conclusões uma sobre a outra; e pedi que escrevessem num guardanapo.

Eis o que se sucedeu:

Guardanapo de Sabina

– “Ela é quieta. Ela é tímida. Ela é torta. Ela é linda.”




Guardanapo de Tereza

– “Eu a odeio. Odeio o seu caráter. Mas me ensinou o que é ser mulher, acima de tudo.”




Sabina ria desaforada ao entregar o guardanapo, já Tereza me encarava com seriedade.

- Um acontecimento, você pede? Foi no primeiro de Maio...


1º de Maio, década de 60

As ruas foram tomadas por uma passeata que mais se assemelhava a um bloco de rua, com direito a marchinhas e confete. Desfilavam-se as camisetas rubras, os sorrisos políticos, o comunismo gratuito. E metido em toda aquela turba, um chapéu coquinho se destacava das demais cabeças descobertas.

E foi justamente esta proeminência que foi ressaltada através de uma câmera. E por trás desta câmera, escondia-se um rosto.

A moça de chapéu notou o flagra, foi ter com a fotógrafa. Verdade seja dita, foi mais por mérito de curiosidade de que por implicância.

- Você acabou de tirar uma foto minha. – chegou-se a morena próxima à fotógrafa. A sua altura proeminente mais o chapéu redondo sombreavam a outra.

- Sim... Eu sou do foto jornalismo... – explicou-se, encabulada e intimidada pela proximidade dos corpos.

- Então, se importa se eu der uma olhada nela...? Na foto, eu digo. – a mulher de chapéu nem sequer aguardou por uma resposta, foi logo retirando a câmera das mãos frágeis da suposta jornalista.

Passou a sua foto, passava as outras, mexericando em álbuns alheios, até que encontrou algo que lhe chamou a atenção.

- Esta aqui. – apontou para o filme da câmera.

A fotógrafa de cabelos secos e emaranhados debruçou-se e esticou o pescoço. Sim, reconhecia aquela foto. Fora uma das primeiras do seu segundo ensaio sobre minissaias e tanques de guerra russos. Suas prediletas.

- Pode me vendê-la? – perguntou a morena.

- O quê?! – o pedido surpreendeu.

- Eu compro os seus direitos autorais, se precisar. Apenas me permita usar a imagem. – insistiu, conferindo certa sinceridade.

- Ah... Bem, é que não está a venda sabe...? E já foi utilizada há alguns anos atrás...

- Mas eu não pretendo republicá-la! Eu quero usá-la como referência para meu próximo quadro!

- Quadro...?!

- É, eu pinto quadros, sabia? Sou artista como você. – A moça de chapéu sorriu desinibida, pousando a mão sobre o ombro da outra.

A fotógrafa estremeceu. Acabara de ser considerada como uma artista...?

- Talvez... – a sua voz definhou antes de terminar.

- Hum...?! Talvez...? – a morena inclinou a cabeça.

- Talvez eu permita que você use minha foto, com a condição de que você permita que eu utilize a fotografia que acabei de tirar... – enfim a suposta jornalista a fitou nos olhos.

- Fechado! – selaram o acordo com um aperto de mãos.

Trocaram endereços. Ficou combinado que a fotógrafa entregaria a revelação da foto no dia seguinte.

Logo ao se despedirem, a suposta jornalista percebeu que havia esquecido o básico da saudação: perguntar o nome da pintora.

Esta, por sua vez, a deixou na expectativa ao dizer: “Amanhã eu te conto”.






- Oi... – Aquela mesmíssima figura nanica e de cabelos espevitados do dia anterior agora saudava a artista na porta do seu atelier.

- Você veio mesmo! - constatou com certo espanto, cedendo lugar para que ela entrasse.


O atelier era amplo, não tinha corredores. Mesmo assim, os quadros eram expostos pelas paredes espaçadas. Para poder analisá-los melhor, a convidada desviou-se do caminho.

Tinha à sua frente agora uma tela intrigante, desconhecida, talvez. Fora pincelada com tanto realismo que poderia se confundir com uma foto. De ponta a ponta era talhada por um rasgo fictício, revelando a outra faceta, oculta sob a paisagem. Na frente, a mentira inteligível, atrás, a incompreensível verdade.



- Venha logo! - exigiu a pintora, apressando-a a conhecer o restante do apartamento.


Estavam agora em frente a um cômodo amplo e vazio, tendo como seu centro um divã quadrado, uma tela em branco e um espelho.

- É aqui onde eu produzo. - disse com orgulho a artista.


A suposta jornalista consentiu em silêncio, e se sentiu impelida a entrar tão logo seus olhos encontraram o chapéu coquinho jogado a um canto.

Recolheu o acessório do chão, e o afagou com zelo.


- Gostou? Era do meu avô. - a pintora se aproximou, fitando com ternura de mãe o chapéu. - Ele pertencia ao prefeito de uma cidadezinha. O prefeito era meu avô. Agora o chapéu é meu.

A fotógrafa fez menção de encaixar o dito cujo na cabeça da outra. Esta se inclinou minimamente para que ela concluísse a ação.

- A propósito, o meu nome é Sabina. - comentou casualmente a morena. - Ficou bom?

A visitante assentiu com a cabeça. - O meu é Tereza.


Sabina ajeitava o cabelo às cegas, impaciente para ver o resultado no espelho. Assim que Tereza ajeitou os retoques finais, a morena correu para este.

Ficou um tempo a se observar (ou admirar-se, como concluíra Tereza); a mesma expressão vaga a qual Tereza já estava tão habituada quando, em seus momentos de intimidade, buscava em seu semblante algo seu, único, desvencilhado da genética.


- Tereza... - "venha aqui" chamou com um gesto a artista.
Receosa, a fotógrafa deu alguns passos a frente, até ser puxada de encontro com a outra.


- O que acha, hun? - lançou esta interrogativa, mantendo a sua convidada junto a ela com o enlace de seu braço ao redor do pescoço dela.

Ambas fitavam o espelho.

Sabina, creio que fitava o conjunto, ambas as duas figuras femininas, lado a lado, dividindo harmonicamente cada uma um espaço no espelho.

Tereza, por outro lado, lançava olhares constrangidos ao reflexo da morena que se impunha ao seu lado, alta, esculpida como por mãos de um artista (pelo que ela mesmo o era). Observava acima de tudo o chapéu coquinho, o qual era uma extensão proeminente de suas individualidades. A fotógrafa diria mais tarde que Sabina dava razão ao nome que possuía, e sentido à palavra mulher. O que Tereza buscava à anos oculto em si, Sabina o tinha em evidência.

Diante da reflexão, abaixava a cabeça.

- Tereza... - murmurou a pintora após observar a atitude de sua visitante. - Levanta a cabeça.

Progressivamente, quase que instintivamente, a fotógrafa ergueu o rosto em direção à artista. Sabina insistia seu olhar perscrutador sobre os tímidos relampejos ocasionais de Tereza.


- Tire a roupa. - ordenou calmamente a anfitriã. - Fique só de sutiã, para mim.

A fotógrafa estarreceu diante do comando, absurdo a seu ver. Tentou, ainda que falha, juntar as pontas. Recuar, assim dizia o seu instinto.

- C-como assim?! - inquiriu receosa. - P-por que...?



Sabina, porém, manteve-se impassível, como que a analisar a reação da sua visitante, o que só tornou a situação desta mais constrangedora.

Passados alguns segundos tortuosos, a infinidade contida em cada minuto, a pintora esboçou um sorriso de derrota:


- Está bem então... Eu tiro a minha, que tal? - Tereza ia protestar, mas a morena já havia aberto o zíper de seu vestido por completo. Nestes momentos, a praticidade fala mais alto.
Revelou por baixo da estampa de suas vestes um conjunto preto, sutiã rendado e modelador de cintura, que, aliás, lhe caiam muito bem.

- Proponho um ensaio fotográfico, hun? – ajeitou o ondulado dos seus cabelos. – O que me diz?

Tereza a fitava intensamente, sem perceber os seus olhos caídos sobre o colo de alabastro da artista. A isto, Sabina interpretou como um sinal. Interpretou nas íris da fotógrafa o desejo de descobri-la por baixo de suas rendas negras com a câmera.

A pintora deslizou as mãos pelas alças do sutiã.

- Não, não! – impediu-a de se despir. – Assim... Assim fica melhor...

- Por acaso você está envergonhada...? – insinuou através de um sorriso torto.

- Não... Bem... – gaguejou a outra, embora Sabina houvesse notado no olhar fixo dela a sinceridade tênue. – Eu creio... É... É que o chapéu cria uma bela composição com a sua langerie, sabe...?

Após uma rápida checada no espelho, Sabina teve de concordar.

Tereza recorreu à sua câmera para ocultar a face enquanto registrava cada e todo momento de sensualidade, de ângulos cada vez mais ousados.

- Composição ou contraposição, eu te pergunto... – refletia preguiçosamente a modelo acerca do chapéu coquinho.

Houve um momento que os cliques cessaram, e Tereza sentou na beirada do divã para analisar o rolo de fotos e repor o filme.

A pintora sorriu divertida, e se pôs em frente à Tereza. Retirou inesperadamente a câmera das mãos da outra; esta lhe fitou surpresa.

- Agora é a minha vez... – insinuou tirar uma foto. Tereza compreendeu o que a anfitriã propunha.

Estremeceu, e cruzou os braços num gesto de autoproteção. Queria mesmo aquilo?

- Eu... Eu não sei... – murmurou, desviando o rosto.

- Seria injusto... Só eu, sabe? -insistiu a morena, ainda com um sorriso bem próximo do rosto da convidada.

Tereza suspirou um suspiro de vencida.

Deu as costas para a artista, e começou pela peça de cima. Seu desconforto era evidente, pelo que se embolara ao retirar a cacharrel sem botões.

Ao descer a saia cor creme, desequilibrou e quase tropicou no chão. Retirou as sandálias, uma a uma, por último.

Ainda de costas, respirou fundo uma última vez e virou desajeitada para dar de cara com Sabina sentada na outra ponta do divã, pernas cruzadas, e um sorriso indecifrável contornando-lhe os lábios.

Os olhos de Tereza, tão logo encontraram-se com os da artista, quiseram fugir das garras desta, e refugiaram-se no seu próprio colo. Agora tinha por baixo de seu nariz as curvas das quais tanto sua mãe caçoava. Aquele corpo, corpo feminino, corpo que tanto desprezava, pois ele a traía, traía a sua alma.

Sabina, por sua vez, notara o desprezo, quase ira, com que a fotógrafa fitava a si mesma. A princípio, não compreendera o motivo da careta de sua visitante. E talvez nunca viesse a compreender. Mas teve ímpetos. Sentiu uma necessidade quase que instintiva de acolhê-la em seus braços.

A repreensão de Tereza só teve um fim quando foi puxada de volta para a realidade; puxada pelo pulso, era guiada pela pintora novamente ao espelho.

Desta vez, porém, a fotógrafa não dividiu o espaço com a artista. Tinha sido posta de frente ao centro do espelho, Sabina a segurava por trás, apenas suas mãos transpareciam.

Tereza, surpresa pela situação na qual se encontrava, forçada a fitar inteiramente seu corpo, como o fazia sempre, mas agora na presença de outro ser vivo. Tentou livrar-se das mãos que a acorrentavam.

- S-Sabina... – foi tudo que conseguiu sussurrar diante da imagem dos seus olhos assustados.

Mais que um complexo físico, Tereza vivenciava um verdadeiro dilema entre corpo e alma. E Sabina percebeu isso apenas ao ver a expressão da visitante.

- Sabe o que eu tenho aqui, diante do espelho...? – indagou a artista, retoricamente. – O deslumbre de uma alma, as suaves curvas de uma personalidade...

- S-Sabina, por favor... – choramingou a outra, tentando se desvencilhar em desespero dos dedos finos que comprimiam seu ombro. A verdade é que estava amedrontada pelo que estava por vir.

- Tereza, eu vejo a alma em cada pêlo do seu corpo. – comprimiu com mais afoito os braços da fotógrafa. – Eu vejo uma alma tímida, anacrônica, porém corajosa, fiel, forte...

Aos poucos, a visitante foi cedendo à força a qual era sujeita, e atentando ao reflexo ao qual tinha diante de si.

- Você não vê...? – Sabina segurou o maxilar da fotógrafa e o posicionou alinhado ao espelho. – Por que não vê...? Algo ainda a perturba...

Tereza, que agora escutava cada palavra da pintora, assentiu levemente com a cabeça. Lembranças de quando habitava sob o mesmo teto que a sua mãe fluíram esparsos pela sua mente. A casa materna foi o seu campo de concentração. E tudo o que lhe remetia àquele local lhe nauseava. Daí da necessidade da busca pela sua individualidade, e àquilo que nos torna únicos: a alma.

- Também acho que o corpo nos trai. – declarou séria a pintora. – Vejo em nós seres o que retrato em meus quadros: no exterior, a mentira inteligível, no âmago, a incompreensível verdade.

Diante desta reflexão, Tereza ficara perplexa.

- M-mas você... – mais uma vez a sua voz se extinguiu antes de finalizar a frase.

- Eu...? – insistiu Sabina.

- Digo... – abaixou a cabeça e o tom de voz. –O seu corpo não a contradiz...

A artista fragmentou um riso, indecifrável, com nuances de satisfação. A antes necessidade de acolher Tereza nos braços metamorfoseou-se em impulso de possessividade, isto, em poucos segundos.

Acarinhou a lateral do pescoço da fotógrafa, e ao sentir cada micro-pêlo dela se eriçar com o simples contato de seus dedos, não mediu mais as conseqüências.

Para a surpresa (ou susto) de Tereza, Sabina depositou um beijo na curvatura de seu pescoço. A sua reação imediata foi estremecer e corar violentamente. Mal conseguia encontrar palavras para repreender o gesto. E mesmo que as tivesse encontrado, nada impediria mais Sabina, pois para ela, não havia nada mais sincero que o semblante de Tereza. Ela não percebe, dizia consigo mesma, mas está tão presente tanto em corpo quanto em alma.

Não bastasse isso, a pintora queria mais. Desejava a conjugação perfeita entre corpo e alma, mesmo tendo conhecimento da inconstância desse raro acontecimento.

Percorria toda a extensão do pescoço da fotógrafa com os seus lábios, e encerrava com singelas mordiscadas na ponta da orelha desta.


- Veja. – Mais uma vez, Sabina guiou o rosto de Tereza para o centro do espelho. – Seu corpo está lhe traindo, Tereza?

O rosto da visitante fervia em chamas, pelo que o rubor lhe tingia até as orelhas. Tremores lhe percorriam periodicamente, aparentava estar sendo consumida pela febre, seus olhos lacrimejavam.

Poderia ser mais um caso de traição do seu corpo, no entanto, sentia a sua alma ainda presente, relutante e teimosa, na fronteira entre o resistir e o ceder.


- Tem razão, Tereza... O meu corpo não me contradiz, muito menos o seu... Porém, há apenas um único momento de plenitude entre alma e corpo. Você quer descobri-lo?

A fotógrafa tinha sido contemplada perante duas escolhas, e, no entanto, ao invés de escolher a alternativa menos arriscada a si, ainda habitou no campo da dúvida.



No momento do gozo, daquele gozo, ambos corpo e alma entraram em acordo, e atingiram sua nota máxima com os urros guturais arrancados das entranhas de Tereza. Sabina em êxtase, urrou junto de sua visitante. Os seus próprios urros, com a sua própria voz, enquanto vislumbrava de olhos cintilantes os espasmos íntimos de sua amiga.

Sentia-se particularmente privilegiada por ter presenciado as máximas de Tereza. Teve a certeza de que havia trazido de volta à superfície a alma da fotógrafa. Havia, indubitavelmente, extraído de Tereza o melhor de si.



Is someone getting the best, the best, the best, the best of you?

A visitante acordou antes da anfitriã, já anoitecia. Deixou sobre a mesinha de canto a foto negociada, e tratou logo de partir. Sentia-se desnorteada por tudo que lhe acontecera em menos de doze horas. Ainda assim, não arriscou perder contatos, e escrevinhou a lápis o número do seu telefone no verso da foto.




Daqui em diante, a relação entre Sabina e Tereza estreitou-se, ao mesmo tempo em que sofreu graves abalos.

Gradativamente, uma foi descobrindo à outra, e conseqüentemente, imergindo no autoconhecimento. É bem verdade, as suas personalidades se contrapunham: enquanto Tereza era contida e anacrônica, Sabina era o oposto: voraz e alternativa. E é mais verdadeiro ainda o fato de que uma completava à outra, sem o perceberem, é claro.

Compartilhavam do mesmo medo (o do kitsch, a mentira inteligível no exterior; no âmago, a incompreensível verdade.) e do mesmo homem (Tomas).

Sabina já conhecia Tomas há anos, há tantos anos que podemos concluir que ambos compuseram uma partitura juntos. O motivo pelo qual a artista fitava com carinho de mãe o seu chapéu coquinho era, sobretudo, devido aos momentos que cultivara junto de Tomas.

Assim que descobriu ao acaso a relação entre Tomas e Tereza, tornou-se apreensiva. Não por Tomas. Ela o tinha como por um companheiro de vida, um homem que a conhecia antes e acompanhou junto dela as suas mudanças. E era justamente por ter conhecimento tão íntimo das facetas de Tomas que Sabina temia pela integridade de Tereza.

Are you gone and onto someone new?
I need somewhere to hang my head
Without your noose

A sua Tereza.

Anacrônica, tímida, nada frágil. Torta.

Até então, Tereza só havia se revelado à Sabina, e ninguém mais. Qual não foi a surpresa desta ao saber, do próprio Tomas, que a fotógrafa havia gritado todo o conteúdo de suas entranhas nas primeiras noites em que fizeram amor!

A dicotomia imperava acima de tudo sobre Sabina. Ao mesmo tempo em que comemorava o avanço de sua amiga, a descoberta independente da própria individualidade, partilhada com outros; isto a fazia se sentir péssima.

Estremecia de cólera só ao imaginar que outras pessoas além dela viessem a descobrir aquela (fascinante) faceta, a verdadeira, de Tereza. Ainda mais indivíduos como Tomas, incapazes de se devotar a apenas um corpo.

Sabina tinha conhecimento do amor de Tomas pela amiga, mas vê-la sofrer pela mínima discordância com o companheiro a comovia absurdamente, fora de seus padrões.

Saber, e compartilhar, a dor que ela sentia; assistir em silêncio enquanto Tereza depositava toda a sua fé nas mãos de Tomas e morria aos poucos, a isto, ela não suportava. Era como se carregasse nas costas envergadas o mundo.

Tentou ainda se envolver com Franz, um indivíduo com personalidade totalmente oposta à sua, cujas palavras não compreendia, e cujos atos reprovava.





My heart is under arrest again
But I break loose




- E aqui estou eu... Fugindo do peso que me atormentava... – Sabina sorri amarga. – Eu só não esperava que este peso que suporto agora é infinitamente maior do que eu carregava lá na Tchecoslováquia... Como descrevê-lo...? Bem, você já ouviu falar na insustentável leveza do ser?


I've got another confession, my friend
I'm no fool
I'm getting tired of starting again
Somewhere new

Sabina já não é mais a mesma. Tem o rosto sulcado por rugas mal-tratadas e nenhuma tintura na face ou no cabelo. Sob seus olhos, tingem-se olheiras púrpuras.

O chapéu coquinho, tive conhecimento que ainda o possui. Não consigo, porém, parar de presumir a reação dela ao saber que ambos os seus amigos, Tomas e Tereza, estão mortos. Ainda não recebeu a notícia, logo, fala deles abertamente.

Seria antiético da minha parte omitir este fato? Por que estou fazendo isto?


Há pouco tempo atrás, entrevistei Tereza, e fiz a ela os mesmos pedidos que agora faço. A idéia era simples: comutar as cartas e trechos da entrevista. O principal ficaria por último: tenho aqui comigo as fitas cassetes da gravação que eu realizei com Tereza. O mesmo seria feito com Sabina. Ambas iam receber as encomendas simultaneamente.

Portanto, de que adianta revelar agora o óbito do casal?

Crime por omissão?

Reparo mais uma vez na figura de cabeça baixa e sorriso vago nos lábios de Sabina, a autêntica expressão de quem carrega um peso maior do que pode suportar; o peso de uma vida de traições. O peso de uma vida vazia.


Esta é Sabina.

Não quero tomar isto como por verdade, porém. “A Tereza lhe deixou algo de lembrança... Ela gravou uma mensagem...”.

Revelo a fita cassete sobre a mesa. A pintora me interroga com o olhar. Suspiro. Abstendo-me de solicitar qualquer coisa, dou play no rádio.


- ... Já está gravando...? Ah, bem... Lembra do dia em que nos conhecemos, que eu lhe mostrei aquele ensaio fotográfico...? Pois bem, eu faturei bastante com eles, mas nada se compara ao quanto eu faturei com suas fotos! – Sabina se sobressaltou, indignada. A indignação logo cedeu lugar ao riso, pois na gravação, Tereza também ria. – Brincadeira! Aposto que consegui te pegar! Brincadeiras à parte, - assumiu um tom visivelmente sério. – Sabina, você tinha razão... Eu deveria ter me apaixonado por alguém que soubesse me amar de corpo e alma. Mas há no mundo alguém assim...?! – após uma risada cansada, a gravação sofreu uma rápida chiada, escuta-se os ruídos de mais algumas vozes. – Oh, veja só quem chegou. Tomas, venha aqui, dê um oi.

Após alguns murmúrios, Tomas responde:

- Ermm... Olá Sabina! Eu não sei se isso vai chegar aí, mas... Eu quero que você saiba que estamos todos com saudades! Não nos vemos há anos... Nossa... O tempo passa... – a voz de Tomas era monótona e grave como sempre.

- Chega Tomas. O tempo é precioso. - houve uma pausa, até que Tereza retomasse. – Desculpa. Ah, onde estávamos...? Ah, sim. Quantos anos se passaram desde que nos conhecemos? Eu sinto que passei por tanto... E ao mesmo tempo por nada... – nova pausa. – Você também, suponho... – suspirou – Creio que desperdicei boa parte da minha vida apenas com o Tomas em mente, enquanto eu deveria ter me atentado a você. Se, ao invés dele eu tivesse escolhido a v--- Tereza respirou fundo, interrompendo o fluxo de pensamentos. – Estes últimos anos, aqui no interior não foram de todo desagradáveis, sabe? Tinha a Karenin, a paz do campo, a tranqüilidade. Gostaria tanto que Karenin ainda estivesse viva... Não sei se cheguei a apresentá-la a minha cachorra. Em todo caso, vai um anexo com algumas fotos dela. – suspirou mais uma vez. – Estou com tantas saudades... Espero que a sua gravação chegue logo, pois, não me interprete mal, mas creio que eu e Tomas estamos chegando a última parada. Não, não estou depressiva. Muito pelo contrário. Estou contente. Porque, finalmente eu e Tomas estamos juntos. Em todos os sentidos! Eu o amo, com uma fidelidade que chega a ser tola... Mas... – a voz de Tereza falhou, dando a entender que estava prestes a chorar. – S-Sabina... Oh, como eu estava enganada! Apenas uma pessoa foi capaz de me amar de corpo e alma... Você, Sabina, foi tudo para mim... Eu aprendi tanto contigo... Eu... – os gemidos pranteados a interromperam. – Desculpe... Ah, desculpe... Eu... Queria tanto pode-la abraçar agora...!



Has someone taken your faith?
It's real, the pain you feel
The life, the love
You die to heal
The hope that starts
The broken hearts
You trust, you must
Confess
Is someone getting the best, the best, the best, the best of you?

A gravação foi interrompida, Tereza não estava em condições de prosseguir.

Fitava Sabina. Ela estava pálida, um pouco trêmula. Seu semblante, indecifrável. Que se passava em sua cabeça?

Educadamente, perguntei se ela pretendia gravar uma resposta. Ela assentiu imperceptivelmente.


- Tereza... – iniciou a artista, de olhos marejados. – Eu sou uma covarde... Fujo daquilo que me pesa, que me incomoda, não importa de quais meios eu me utilize. A traição rege a minha vida, desvencilho-me de tudo aquilo que me é insustentável. Não sou como você... Sua coragem é admirável, persiste ao longo dos séculos... Eu já lhe disse isso? Aquele primeiro dia em que me visitou no atelier, lembra? – Sabina contorcia o rosto, prendia o pranto. – Você é tão bela, sabia? Apesar de torta, anacrônica? Eu fui uma covarde, Tereza. Não só o seu amor por Tomas persistiu, como também a sua devoção. Não sei se estou no fim de minha jornada, porém, estou certa de que, enquanto você terá um fim junto da pessoa amada, eu me corroerei aos poucos, só, ciumenta, amarga e arrependida... A minha morte será lenta... Eu fui uma covarde, Tereza... – o primeiro soluço a sacudiu. – De admitir que estava apaixonada por você.



Everyone's got their chains to break
Holdin' you

...

You gave me something that I didn't have
But had no use
I was too weak to give in
Too strong to lose

Sabina, que já estava no seu pico emocional, rompeu em um pranto silencioso e convulsivo.

Ela pediu um momento só, eu a respeitei.


Jamais pensei que a veria assim.

Da janela gradeada, eu expelia o fumo. A princípio, este não era meu objetivo. Meu objetivo era estabilizar a vida das duas, com um singelo gesto de troca de cartas entre amigas, nas quais as duas se reconciliariam. Um simples e belo final feliz.

Aquele o qual qualquer leitor deseja aos seus personagens preferidos.

Quem diria, porém, que explorar mais a fundo a relação entre duas personagens tornaria o final tão ou mais melancólico do que já o era?

Encerro então, aqui, o relato da minha interferência no enredo.

Não posso admitir que as situações descritas aqui ocorreram de fato, nem o contrário. Afinal, Milan Kundera poderia muito bem ter omitido esta relação.

Pois, de acordo com a crença de Sabina: no exterior, a mentira inteligível, no interior, a incompreensível verdade (o amor?).




Há algumas verdades que são melhores deixadas incompreensíveis.



Viva ao Kitsch!

Were you born to resist or be abused?
I swear I'll never give in
I refuse


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Notas finais do capítulo

*Não confiem nas datas, os anos não são especificados no livro.
**A câmera fotográfica de Tereza é da década de 60-70, e obviamente, não possuia os recursos digitais de hoje em dia. A discrepância foi proposital no trecho em que Sabina visualiza as fotos na máquina dela. Eu assumo o erro XD

Kitsch -" Alguns autores entendem o kitsch como uma atitude e um espírito geral de complacência e supressão do senso crítico, que pode se estender a áreas bem distintas da arte, como a política, a religião, a economia, o erotismo e praticamente toda a esfera da vida humana, e sua estética, de enorme penetração na psicologia das massas, muitas vezes é usada pelas elites para dirigir a opinião pública, seja na forma de publicidade comercial, educação escolar, propaganda partidária ou iconografia religiosa." - wikipedia
O sentido é bem amplo. O "kitsch" que eu quis trazer para o texto, contudo,está empregado no sentido da valorização do exterior (corpo e aparências), e por tal é tão desprezado pelas personagens, que valorizam o interior (a verdade, a alma).

O kitsch no final, pode também ser interpretado como "clichê".


Acho que é tudo! Espero que tenham apreciado.
Enfim, comentem mesmo se não tiverem. Afinal, uma amadora como eu jamais chegaria aos pés destes grandes escritores.
Mas, fanfiction é para isto. Soltar a imaginação e desenvolver aquilo que parece ter sido deixado em pendente (às vezes, propositalmente) pelo escritor.



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