Afire Love escrita por Ikarus


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Eu estive escrevendo isso, mas nem mesmo eu sei o porquê de estar escrevendo. Já me desculpo aqui caso tenha ficado repetitivo, confuso, ou brisado demais.



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Ele era um mentiroso. Às vezes, falso. E eu tinha raiva desse lado dele, que teimava em tentar provar a todos que tudo estava bem… Que tudo sempre terminava bem para as pessoas “boas”. E eu, trouxa, confiei nele; acreditei nas ilusões que ele vinha plantando em mim desde que me conheceu.

Gilbert tinha a fama de se fazer de durão para impressionar os que viviam ao seu redor; eu incluso. Quando o Muro caiu, sabíamos que ele não viveria para sempre. Sabíamos que ele agora tinha limitações. Mas não falávamos nada, na esperança de cairmos na ladainha dele, de que tudo estaria bem…

As coisas estavam bem até ontem

E o demônio levou sua memória

Até ele começar a perder a memória. Grandes vazios apareciam em sua mente e o tempo encheu as memórias dele de buracos. Infelizmente, não esperávamos que fosse pior do que ele temia. Porque pior do que ser esquecido por todos é esquecer-se de tudo que já lhe acontecera. Era doloroso, porque todas as lembranças e memórias daquele homem milenar lentamente iam se perdendo em meio às consequências dessa variação do Alzheimer.

Depois de apagar tudo que existia de Gilbert naquela mente, estava na hora de esvaziá-lo por inteiro. A estranha doença (que médico nenhum sabia tratar) começou a atacá-lo de maneira muito agressiva, prendendo-o à cama do hospital e, mais tarde, aos aparelhos. Eu passava horas olhando para ele, sem saber o que falar; sem saber como me dirigir a um homem que tinha sido meu irmão.

E se você perecesse para a morte hoje

Espero que o céu seja o seu descanso final.

Eu nunca tinha perdido ninguém.

Eu não sabia como a morte era cruel para aqueles que julgávamos ser imortais.

Apesar de ele não conseguir se mover, ele tentava se expressar pelo simples movimento dos olhos. Às vezes mostrava-se irritado, confuso. Às vezes, alegre, disposto. Até parecia o meu irmão, mas eu sempre me lembrava que, para ele, eu não era nada mais do que um estranho.

Ouvi os médicos fazerem-lhe doer o peito

Mas pode ter sido o remédio

E mesmo sentindo dor, mesmo não sendo mais o mesmo Gilbert que eu conhecia, ele continuava escondendo isso de nós. A dor insuportável que ele deveria estar sentindo enquanto o corpo dele se despedaçava por dentro, retorcia-se em tumores incuráveis e se digeria.

E aí está você deitado na cama novamente.

Ligamos máquinas e tubos nele, sem qualquer esperança. Não sabíamos o porquê de termos feito aquilo. Eu sabia que ele estava com os dias contados. Mas eu continuava indo visitá-lo, continuava sentando-me na mesma cadeira ao lado de sua cama para encará-lo dormindo calmamente. Eu levava alguns dos diários que ele escrevera ao longo de sua vida e tentava lê-los a ele, para ver se ele se lembrava de alguma coisa. Algumas vezes, me deparava com volumes escritos em uma língua indecifrável, mas Erzsébet se oferecia para ir comigo e me ajudar a ler.

Até que um dia estávamos lendo um dos diários quando ele dormiu e não abriu os olhos nunca mais. As máquinas ainda apitavam, anunciando que Gilbert ainda estava vivo, ainda que em algum lugar distante. Mas, realmente, não havia motivo nenhum para que continuássemos aquele sofrimento, tanto para nós – família e amigos – quanto para ele… Então, com muito pesar, assinei os documentos que permitiriam que ele fosse eutanasiado.

De qualquer forma, chorarei com eles também.

Durante o velório, eu não conseguia parar de me sentir perdido. A pessoa que sempre admirei estava dentro daquele caixão. Eu nunca mais o veria de novo. Eu nunca mais ouviria ele me irritando. Nunca mais sentiria sua mão afagando-me os cabelos.

E só então eu percebi que ele não tinha sido apenas um irmão para mim… Mas sim um pai. Foi ele quem me protegeu, me acolheu, me fez crescer e me tornar o homem que sou hoje. Só então permiti que eu mesmo me debruçasse sobre o caixão negro e preenchesse aquele novo vazio com o luto e a água que escorria de meus olhos e das nuvens cinzas no céu. Todos aqueles anos em que eu fingia estar aborrecido para que ele parasse de me incomodar, todas as vezes em que eu o ignorava para cuidar de documentos inúteis… Eu poderia ter feito mais. Eu poderia ter aproveitado o que havia sobrado da vida dele para alegrá-lo, fazer qualquer coisa que pudesse retribuir aquele amor incondicional que ele nutriu por mim.

E joguei tudo fora.

Tentei afastar as lembranças dele, esperando que a apatia me permitisse o tempo para aquele vazio cicatrizasse em mim, sem resultados. Sem sucesso ao me afastar da memória do meu irmão, tentei o caminho inverso: a aproximação. Até onde eu conhecia o meu irmão? Quem foi ele de verdade?

Liguei para a chanceler e disse que estaria ocupado por duas semanas. Ela disse que entendia o que eu estava sentindo e permitiu que eu me afastasse por até um mês, para a minha surpresa.

Gilbert tinha quatro residências, no total: Uma em Berlim, outra em Viena, outra em Leipzig e a última em Kaliningrado. Essa última residência foi, na verdade, a primeira dele, mas ele nunca falava muito dela. Do jeito que falava dela, parecia mais um depósito de coisas velhas do que uma casa, e eu nunca havia posto os pés dentro daquela tal casa. Pelo menos ele não se esqueceu de finalmente me dar a chave.

A cidade é um enclave russo, mas a maioria da população é alemã, o que me deixava menos perdido na hora de pedir informações. A casa era uma das mais velhas da cidade apesar de parecer que passou por inúmeras reformas; a tinta havia sido retocado há menos de dez anos. Era um sobrado grande para um homem só. Por dentro, muitos móveis antigos, quadros e artefatos que devem valer milhões de euros em espadas e mosquetes autênticos. Parecia até um museu.

Entretanto, o mais impressionante da casa – com certeza – era o escritório, maior do que a sala de estar. Uma pequena biblioteca de velhos livros ocupava grande parte do cômodo, erguendo-se imponente em até três metros de altura. Uma escada podia ser vista recostada em um canto, assim como inúmeros outros livros empilhados ao lado da escada. Parecia que ele nunca pôde terminar de arrumá-los…

Mais ao fundo da casa, um cômodo inteiramente preenchido de infinitas prateleiras de mais livros: Os volumes perdidos dos diários de Gilbert. Meu irmão mantinha alguns volumes consigo em Leipzig, onde morava. Alguns outros estão em Berlim, mas praticamente todos os outros estavam em Kaliningrado.

O mais estranho na casa – entretanto – era o fato de tudo estar minimamente limpo. A escrivaninha tinha uma fina camada de poeira; por pouco, imperceptível. Então ele realmente viera para aquela casa antes de a doença tomar-lhe as energias… Ainda assim, ele não poderia ter simplesmente vindo para uma faxina qualquer. Talvez estivesse esperando que alguém visitasse a casa após sua morte, deixando um tipo de mensagem? Talvez soubesse que eu procuraria pelo que ainda resta de Gilbert no mundo?

Alguma pista… Quem sabe?

Demorei cinco dias para juntar todos os infinitos volumes, metodicamente classificados em datas. Alguns já tinha lido, outros meu próprio irmão leu para. O resto era inédito; e eu podia entender o porquê.

Gilbert era bem sincero consigo mesmo em seus diários, que transbordavam de palavras meticulosamente organizadas em frases agradáveis e de leitura fluida. Era um verdadeiro escritor. E, apesar de se tratar de uma grande e completa autobiografia, era incrivelmente crítico a respeito de si mesmo. Sabia enxergar os próprios erros, mas também sabia que, como nação, tinha de deixar sua moral de lado diversas vezes. Ninguém melhor para descrever o monstro do que o doutor em si. Pena muitos ainda acharem que ele nunca estava ciente de suas próprias crueldades.

Pena muita gente não tê-lo conhecido em todas as suas facetas. Nem mesmo eu podia ter certeza ao afirmar que conhecia meu irmão de fato.

Ao final do quinto dia, separei os diários que já tinha lido dos inéditos e sentei-me para devorar aquela pilha de manuscritos. As letras curvilíneas mais pareciam desenhos nos papéis manchados pelo tempo. Gilbert tivera paciência ao escrever em seus diários, esperando a tinta secar antes de escrever a outra palavra. Escrever com penas e canetas-tinteiro sem borrar nada era um desafio para canhotos.

Algumas páginas tinham manuscritos tortuosos, quase ilegíveis. Ele sempre registrava as horas em que começava e terminava de escrever, e essas páginas ressaltavam as noites em que não dormia. A cada dia, eu imaginava meu irmão sentado em algum canto, escrevendo sobre si, perdido em seus pensamentos velozes, em sua mente rodeada de palavras. Gilbert adorava descrever cidades, registrar detalhes que eu, por exemplo, não notaria. Um gato de olhos de cores diferentes em Veneza, um relógio parado no tempo em Bucareste, um casal apaixonado em Berlim.

Entretanto, a leitura nem sempre se dava em alemão. Pequenos registros e comentários em línguas diferentes naquela mesma letra cursiva e elegante… Conseguia ler alguns trechos em latim e outros em francês e italiano. Mas russo e húngaro, com certeza, não eram meu forte. Marquei todos os trechos em húngaro, ao menos. Poderia pesquisar depois.

Era fim da segunda semana e meus olhos já ardiam de tanto exercitarem-se por mais linhas e parágrafos. Uma vida inteira passava por minha mente e eu jurava sentir um pouquinho do meu irmão em uma piadinha ou outra que escrevia ao contar sobre uma reunião entediante com diplomatas holandeses. Um dos velhos estava com o uniforme apertado demais, e acabou acertando um outro velho no olho com um dos botões de seu colete. Outro fora sentar-se mas rasgou as calças por também estarem apertadas. E ele ria, tentando controlar-se durante a reunião séria. Típico.

No final da terceira semana, terminara de ler tudo… Precisava chamar a “tradutora” húngara. Erzsébet não demorou muito tempo para chegar, dizendo que tinha mais algumas coisas de Gilbert. Coisas pertinentes ao outro lado dele que eu não conhecia.

Era uma arca enorme, cheia de (mais) livros, abarrotado de cartas e pacotes. Como velhos amigos, era de se esperar que trocassem correspondências com certa frequência, pensei com um pingo de dúvida.

Não, Lud, ela dizia. Acho que ele nunca falou muito sobre isso, mas éramos algo além de amigos. Sempre tivemos nossas dúvidas.

Ao menos, sanei aquele pingo de dúvida ali. Sempre soube que Gilbert tinha uma certa facilidade em manejar as palavras tal como manejava espadas e mosquetes. Seria um desperdício não se aventurar na poesia.

Erzsébet foi uma das pessoas com quem mais convivi nos meus anos como o Sacro Império e quase a considerava uma mãe. Às vezes me perguntava se esse irmão-pai e essa “mãe” não teriam alguma coisa ali. Sabia perceber uma troca de olhares mais longa, a entonação da voz ao se referirem um ao outro. Mas agora que podia pensar com mais calma, como ela estaria lidando com a perda? Abrir aquela arca de lembranças trazia o mesmo sorriso que dançava nos meus lábios. Saudade sempre deixa a mesma dor nos corações de quem ama.

Sentados nas velhas poltronas do falecido dono da casa, ela tentava traduzir os poemas e cartas para mim da melhor forma. Contava também as coisas que faziam juntos, como não conseguiam assumir que o que sentiam um pelo outro era amor de fato. Contava como a aproximação foi lenta depois de tantas e diversas turbulências, em meio a casamentos e alianças, ambos de caráter político.

Ela lia, sorria para a carta. Não conseguia mais esconder as lágrimas como fez no velório. Dentro daquelas quatro paredes, chorou. Chorou ao sentir as palavras tocando-lhe a alma, ao lembrar-se de como ele timidamente roçava sua mão na dela ao se cruzarem em suas rotinas corridas. De como segurou-o firme contra si, sentindo o calor sob a pele fina dele.

Querida, segure-me em seus braços como na noite passada

E vamos ficar lá dentro por mais um tempinho

Eu poderia olhar nos seus olhos até o sol nascer

Estamos envoltos em luz e em vida e em amor

Pouse seus lábios sobre os meus e lentamente deixe-os tocarem-se

Pois assim foram desenhados; para permanecerem juntos

Com o seu corpo próximo ao meu, nossos corações bateram como um só

E estamos ardendo, somos amor em chamas.

Sensações que não voltariam mais. Poemas que ninguém mais escreveria. Um autor que jamais foi, nem seria. E na fala dela, eu o encontrava, eu o entendia mais um pouco.

Ele nunca falava de si, Erzsébet falou um pouco mais calma; um sorriso. De todos nós, nunca vi alguém mais humano que ele.

Mas pior que a dor perda que sentiam, foi a dor que sentirmos ao não mais sermos reconhecidos pela velha nação. Ainda assim, foi bom que ele finalmente pudesse descansar em paz. Depois de tanta guerra, tanta morte, até mesmo os pecadores merecem a redenção pela compaixão.

Porque até mesmo os pecadores poderiam aprender a amar, a proteger aqueles que ama e que quer bem. Gilbert, sendo ele tão unicamente… humano, merecia ser compreendido antes de partir. Entretanto, mesmo tendo aquela história tão ricamente documentada, ele não deve ter escondido aquilo tudo de propósito. Talvez apenas pelo simples fato de duas pessoas conhecerem quem ele realmente foi já fosse o suficiente para que partisse sem arrependimentos, sem medo de ser esquecido (apesar de seu próprio fim o trair).

Mas esse era Gilbert, não é? Esse foi o homem que humilde e silenciosamente morreu em meio ao próprio esquecimento, pedindo para ser lembrado. Não como Prússia, nem como herói, nem como vilão, nem como nação, nem como homem.

Simplesmente como Gilbert.

Vá com Deus, querido irmão.

E meu pai e toda a minha família

Erguem-se dos assentos para cantar aleluia

E minha mãe e toda a minha família

Erguem-se dos assentos para cantar aleluia

E meu irmão e toda a minha família

Erguem-se dos assentos para cantar aleluia


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