O mundo desabando. Era assim que aquilo se parecia para Kana quando ela via os lábios de Rikuo tocando os de Tsurara. A garota lutou contra a vontade de chorar e tentou ignorar a cena. Culpada. Era assim que se sentia no momento. Se sentia culpada por estar sentindo inveja de seus dois amigos. Tentou respirar fundo. Inspirou e expirou. Uma, duas, três vezes. Ao perguntar-se se alguém mais tinha visto a cena, ela olhou ao redor e viu que Yura olhava com o canto do olho para o casal que se formara abrindo um pequeno sorriso que talvez era a prova de orgulho. Ao lado dela, Shima estava com uma mistura de surpresa e desespero em sua boca escancarada. Kana sabia bem que o garoto tinha uma queda por Tsurara. Contudo, ela nunca tinha parado para se perguntar como Shima encarava esses sentimentos que tinha pela garota depois que descobriu que ela era um youkai.

    Claro… youkai. Porque Kana ainda achava que teria chances com Rikuo quando ele era cercado de seres poderosos e ele mesmo tinha uma parcela daqueles poderes? Fora trouxa em começar a imaginar para si um conto de fadas quando percebeu que Rikuo ainda tentava manter e conciliar sua vida humana com sua vida de líder yakuza youkai. Kana tocou em sua bochecha ao sentir a lágrima escorrendo por seu rosto. Limpou a lágrima o mais rápido que pode e voltou a prestar atenção no desfile apesar de não estar realmente o vendo, apenas olhando. E sim, havia uma diferença entre ver e olhar.

    Quanto ao casal que havia acabado de dar seu primeiro beijo, timidez e vergonha eram os sentimentos que reinavam. Rikuo coçou a nuca sem graça perguntando-se o que fazer agora.

    - Então né… - disse ele sem graça.

    - Então né… - repetiu Tsurara toda vermelha alternando entre encarar o chão e encarar Rikuo.

    Claro que adorariam ter um momento mais particular para conversar. Rikuo olhou nervosamente ao redor enquanto buscava as palavras para falar e notou o olhar de Shima que rapidamente desviou o olhar. Entretanto, não notou o olhar de Kana pois ela já estava com este focado no carro alegórico que passava na sua frente embora sua atenção estivesse em usar os ouvidos para pegar a conversa do recém formado casal.

    Lembrando das facilidades que um celular poderia trazer para reencontrar os amigos, Rikuo agarrou o pulso de Tsurara delicadamente e a puxou se afastando do desfile. Os dois cruzaram a multidão em busca de um lugar mais particular para conversarem e esse lugar logo apareceu na forma de um simples banco de madeira que ficava entre alguns arbustos de flores vermelhas. Os dois se sentaram lá, ainda um olhando nos olhos do outro.

    - Acho que posso dizer que me pegou de surpresa - disse Tsurara.

    - Eu também me surpreendi - disse Rikuo dando uma risada sem graça.

    Os dois se olharam esperando para ver quem ia ser o primeiro a falar e Tsurara soltou um suspiro antes de quebrar o silêncio.

    - R-Rikuo-kun… Por favor não deixe mais difícil então, por favor, deixe eu falar tudo que quero antes. Ok?

    - Ok - disse Rikuo.

    - E-Eu… eu sempre gostei de você. Seja forma humana ou youkai. - disse Tsurara quase morrendo ao dizer aquelas palavras - Nunca falei nada, verdade. Para mim sempre foi o suficiente ver você feliz. Não importa se isso seria comigo ou não. Não sei ainda se esse beijo significa que sente o que eu também sinto. Tenho que ser honesta e dizer que eu espero que seja o caso. Mas ainda tenho medo de o que irá falar depois de ouvir as coisas que estou dizendo. Enquanto para mim é a mais alta honra lutar ao seu lado e ser sua amiga, também me enche de felicidade ver você feliz. Não vou fingir ser perfeita. Eu sinto ciúmes e obviamente ficarei mais feliz se a felicidade que você quer encontrar possa ser ao meu lado por mais que talvez seja muito cedo dizer isso, mas eu vou entender se não for assim até porque sei que seu coração já pertenceu à outra ou ainda pertence.

    Rikuo esperou alguns segundos para checar se ela tinha terminado de falar. Ela afirmou com a cabeça brevemente encarando o chão e enrolando uma de suas mechas de cabelo distraidamente. Ele tomou um suspiro e tentou organizar as palavras. Era normal que como líder do clã tivesse que fazer um ou outro discurso, mas nunca achou encontrar as palavras certas tão difícil como agora.

    - Sei o que quer dizer com “outra”. - disse ele soltando um suspiro - Se eu dissesse que não era assim, estaria mentindo. Eu… Eu sei… que eu gostava de outra. Gostava da Kana e claramente sabe disso. Nem sempre eu tive noção desse sentimento mas era o que era. Mas as coisas mudaram desde daquilo. Eu mudei desde daquilo. Eu notei que eu não fico mais eufórico como ficava perto dela. E cada vez mais tenho notado como venho me sentindo cada vez melhor quando você está por perto. Eu ainda não sabia o que era isso, fui perceber naquele dia na escola…

    Aquele dia na escola… ela lembrava bem do dia em que estavam arrumando umas vassouras e a gravidade resolveu pregar uma peça. Os dois tropeçaram e os rostos ficaram muito perto. Ela lembrava, e ele também, como os rostos de ambos ficaram vermelhos com a aproximação.

O silêncio reinou por mais alguns minutos enquanto Rikuo olhava para ela e disse as palavras que ela queria ouvir.

— Tsurara, eu também gosto de você.

O medo da resposta rapidamente sumiu de dentro de Tsurara. Foi como se um enorme peso estivesse sendo tirado de seu peito. Esse alívio se mostrou no formato de lágrimas que começaram a escorrer pelo rosto da garota. Meio sem saber se deveria, Rikuo aproximou a mão direita lentamente e limpou a lágrima que escorria pelo seu rosto. Seus olhos mais uma vez se encontraram e mais uma vez eles se aproximaram até que seus lábios se tocassem.

Dessa vez, o beijo foi mais demorado mas foi igualmente delicado. Seus lábios se tocavam com a inexperiência e timidez dos primeiros beijos mas a doçura de um sentimento recém descoberto. Eles se separaram depois de um tempo exibindo belos e simples sorrisos que serviam como prova da felicidade do momento que partilharam.

Foi daquele banco que eles ficaram admirando os fogos de artifício que enchiam o céu. Claro, perdiam parte da vista por causa de uma árvore, mas isso não tornava a noite menos perfeita enquanto eles curtiam aquele momento juntos segurando um na mão do outro.

Quando o show de fogos de artifício chegou ao fim, não demorou muito para que o celular de Rikuo e também o de Tsurara começassem a receber mensagens dos outros. Combinaram de se encontrar na entrada do parque já que estava perto do parque fechar. Quando eles foram se aproximando do grupo na entrada, de mãos dadas, viram que a conversa já estava bem animada no grupo e que ficou bem mais eufórica quando os dois se aproximaram.

— Oooooh!! - exclamou Kiyotsugu apontando para a mão de Rikuo entrelaçada na mão de Tsurara - O Shima-kun falou mas eu não queria acreditar!!

— Isso âe garota! - disse Maki dando um joinha para Tsurara.

— Parabéns - disse Torii batendo palmas.

Imediatemente os dois coraram e, vendo isso, Yura foi logo ao auxílio deles.

— Ssh! Deixem eles em paz! - ralhou a garota.

Apesar disso, o caminho de volta para Kyoto se seguiu normalmente. Especialmente porque eles tiveram que correr para não perder o trem e porque estavam cansados demais quando chegaram em Kyoto e foram direto dormir.

O resto da estadia em Kyoto se seguiu normalmente. O grupo ficou visitando os templos famosos da cidade e basicamente turistando. Nenhuma outra vez o avô de Yura procurou conversar com Rikuo e Rikuo só não falou com o irmão de Yura, Ryuji, porque no mesmo dia que o grupo foi para Osaka, Ryuji tinha ido resolver alguns problemas nos vilarejos vizinhos de Kyoto como prova do esforço dos Keikain em voltar à manter a ordem da região.

Depois de dois dias, o grupo voltou para Tokyo. Uma vez em Tokyo, os dias foram se passando rapidamente. Rikuo teve um encontro com Tsurara no shopping, outro num restaurante, outro em um parque de diversões que na verdade não ficava em Tokyo e sim perto do Monte Fuji. Este último rendeu uma bela foto com o Monte Fuji no fundo. Assim como os dias se passavam, também se passavam as semanas e então os meses. As férias acabaram, os anos se passaram.

Rikuo se espreguiçou querendo tirar a dor do corpo dolorido. A lua brilhava lá fora quando o jovem deitou na varanda de seu quarto querendo aproveitar a brisa da noite. Não deveria estar fazendo isso. Tinha prova no outro dia, tinha que estudar, mas tinha passado o dia resolvendo problemas de fronteira dos Nura. Para piorar, era uma das provas finais do ano. Rikuo agora era um aluno do penultimo ano do Ensino Médio e estava tendo dificuldade em separar as responsabilidades da escola com as responsabilidades do clã. A demora da família Keikain em fortalecer e ampliar seu território, fez com que Rikuo resolvesse organizar mais o dele e se preparar para a eventual criação da zona de neutra convivência. Yura havia dito para ele que poderiam começar à tentar em breve. Ela havia dito isso ano passado, algumas semanas depois da morte do avô dela.

Os anos haviam trago consigo muitas mudanças na aparência do atual líder do clã Nura também. Sua forma youkai permanecia a mesma mas a forma humana agora era praticamente idêntica à youkai se ele trocasse a cor dos olhos e do cabelo e também o tamanho do cabelo. Rikuo, assim como todos os seus amigos, estavam lentamente se tornando adultos. Claro que parte de Rikuo ainda lembrava de como permaneceria algumas centenas de anos como adulto. Contudo, naquele momento, ele só queria testar sua memória para ver se ainda lembrava de todas as fórmulas de física enquanto tentava relaxar o corpo.

Ao falhar em lembrar de uma fórmula, Rikuo se levantou e entrou em seu quarto. Abriu o caderno atrás da fórmula e começou a recitá-la tentando memorizar.

— Tão estranho ver você nessa forma tentando decorar física - disse uma voz da porta do seu quarto, que deixara aberta.

Rikuo se virou e abriu um sorriso ao ver Tsurara. Sim, os anos fizeram bem à ela também. Sua namorada estava vestindo um kimono rosa bebê simples que ela havia começado a usar de pijama uns dias atrás e em seus ombros estava uma toalha para impedir que seus cabelos molhados molhassem a roupa. O corpo dela estava visivelmente se tornando o de uma mulher e seus olhos exibiam mais confiança e inteligência do que aquela jovem Tsurara que havia beijado em Osaka anos antes. Claro que os youkais do clã Nura tinham feito uma enorme festa quando descobriram que os dois estavam namorando. Afinal, qualquer motivo naquela casa era motivo o suficiente para beber até se acabar.

— O que tem de tão estranho em eu usando a forma youkai para estudar? - perguntou ele dando uma leve risada.

— Porque você praticamente só usa para assuntos do clã e pra sair lutando por aí - disse ela dando de ombros e sentando ao lado dele para ver o caderno. Afinal, também teria prova no dia seguinte.

— Se eu pudesse eu bem que iria fazer a prova nessa forma só para ver a reações dos outros - disse ele com um sorriso zombateiro.

— É amanhã que o Nurarihyon-sama irá viajar para Shikoku né? - perguntou ela lendo o livro de física.

— É - disse Rikuo afirmando brevemente com a cabeça - Vai ver o velho amigo dele. Vai pegar o trem bala pouco antes do almoço.

— Acha que está pronto para a prova? Ficou praticamente o dia inteiro resolvendo os assuntos da fronteira.

— Eu sei… - disse ele suspirando - Estou sim meio preocupado. Mas é o que eu mereço por essa idéia de querer estender o território até Joetsu.

— Não diga assim - disse ela apertando levemente seu ombro - É uma ideia maravilhosa. Sem falar de toda a importância estratégica de o clã ter saídas tanto para o Pacífico como para o Mar do Japão.

— Por mais que a parte do Mar do Japão só inclua as cidades de Joetsu e Itoigawa? - disse ele em tom zombateiro quanto à própria ideia.

— Sim! É importante pois está começando aos poucos. Se ficar pegando muito de uma vez só, vai acabar perdendo rapidamente e aí de que vai servir? - disse ela se levantando - Pare de pensar nisso por hoje, vá dormir para fazer uma boa prova amanhã, Rikuo-kun.

Ela se virou para ir embora mas Rikuo também se levantou e foi atrás dela. Com passos apressados, ele a alcançou e segurou em sua mão. Ela se virou e foi nesse momento que sua mão livre foi para o rosto dela e seus lábios para os lábios dela. Ela fechou os olhos assim como os dele estavam fechados enquanto se deixava levar pelo beijo que não tinha nada haver com o beijo que trocaram em Osaka tantos anos antes. Sedento, apaixonante. O beijo era prova de como a relação deles tinha evoluído com o passar dos anos devido aos momentos juntos fossem eles encontros ou batalhas. Quando os lábios se separaram, eles sorriram um para o outro antes de palavras cortarem o silencio.

— Boa noite, Tsurara. - disse Rikuo.

— Boa noite, Rikuo - respondeu ela.