Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 9
Raven




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Raven observou a água resvalar para dentro do ralo. De alguma forma, os canos de seu lavabo transportavam os ruídos vindos do andar debaixo; a TV ligada no noticiário e o estéreo berrando uma música do Aerosmith.

Havia despejado sais de frutas vermelhas na água, e agora, sua pele exalava uma fragrância açucarada. Abraçava suas pernas enquanto a banheira se esvaziava, e notou o quanto elas se assemelhavam às pernas dos escoteiros locais. Os joelhos eram riscados por pelos grotescos e os calcanhares, pontilhados por brotoejas e picadas de insetos.

O sangue do ferimento havia coagulado na lateral de sua face. A nuca latejava, a maquiagem preta derretida fluía pelas maçãs do seu rosto e as memórias da noite passada ainda fulguravam em sua mente, fervorosas e enérgicas, como um filme de Chytilová. Uma desconhecida de cabelo longo e desgrenhado, dançando com as axilas peludas à mostra. Floyd avançando nela, com as mãos irrefreáveis prontas para agarrar o seu pescoço e esganiçá-la. O ritmo de ‘‘Blue Monday’’ martelando seu coração. Uma garrafa de Grey Goose vazia esfacelando em sua cabeça. E o pico da noite: Park, de bochechas púrpuras e artérias salteadas da garganta, gritando com ela e tremendo de fúria.

Raven passara a noite inteira fumando no banheiro, queimando incensos na pia, pintando as unhas do pé de lilás, lendo revistas antigas e ficando de molho na banheira. Sua mãe, no entanto, não disse uma palavra sobre o ocorrido e não a avisou quando o ônibus da escola chegou no ponto. O relógio de pulso sobre a pia marcava onze e meia da manhã. Temperatura aparente de 23 graus Celsius, chance de chuva de 80%. As andorinhas agitavam suas penas, prontas para partir com o verão.

— Docinho? — escutou a voz da Sra. Wakahisa do outro lado da porta.

— O quê? — respondeu enquanto escondia no vão entre a banheira de o chão, a saboneteira entulhada de cigarros apagados.

— Vou entrar, ok?

Raven abraçou suas pernas com força. A mãe cheirava a magnólias e cera de vela. A Sra. Wakahisa havia emagrecido alguns quilos em duas semanas, e agora, suas vestes de gorda não se ajustavam à cintura severamente reduzida. Essas flutuações de peso aconteciam em virtude de sua diabetes, que um dia, deixava-a com o rosto bolachudo e os braços musculosos, e que em outro, marcava seu rosto com vincos da gordura que não estava mais ali.

A Sra. Wakahisa se agachou e afagou os cabelos gotejantes da filha.

— Minha menininha linda, o que houve com você? — silvou ela, naquela voz que utilizava para niná-la.

— Nada, mãe. — resmungou. — Uma menina chamou o Floyd de virgem frouxo, ele pirou, ela se assustou e foi quebrar uma garrafa na cara dele, mas eu entrei na frente e aconteceu isso.

— Não perguntei o que aconteceu com o seu rosto. O que você tem, Raven? Você não é a mesma pessoa de um ano atrás. — ela parou de alisar os fios de cabelo da filha e a encarou, com austeridade. — Chega em casa às três da manhã, não estuda com aquela avidez de antes... Não sei onde você esteve, nem onde está indo. E está cheirando a cigarro.

— Você pode me passar a toalha? — pediu Raven, ignorando as afirmações acusadoras.

— É porque a Lua está em Escorpião? — ela entregou a toalha azul que cheirava mofo e que tinha seu sobrenome bordado em letras cursivas e faustosas.

— Eu não quero falar com você.

— É porque o Park explodiu ontem à noite?

Raven bufou e se enrolou na toalha.

— Você está apaixonada pelo Floyd? É isso? Ah, filhinha, eu sei que não é justo; ele é o melhor amigo do seu irmão, é mais velho e vai para a universidade ano que vem. Mas, bebê, não é motivo para se castigar.

— Que merda, mãe, eu não tô a fim do Floyd. — bradou ela, erguendo-se da banheira quase esvaziada e respingando água na mãe. — Eu só cansei. Depois falo contigo, não tô no humor pra isso.

Raven saiu do banheiro pela primeira vez em dezesseis horas e caminhou até o quarto com passos frustrados e pesados. Trancou-se e se espreguiçou sobre os lençóis verde-água. Aspirou o cheiro difuso de desodorante, resina aromática e urtiga-branca. Imaginou a matéria do seu corpo pulverizar vagarosamente, até ser absorvida pelo colchão.

Seus filamentos negros e úmidos pincelavam o travesseiro rosa de uma cor mais escura. Se ela fosse uma cor, seria cinza-chumbo.

Havia alguns dias em que ela poderia descansar as costas na cabeceira, escutar ‘‘Scary Monsters And Super Creeps’’ na vitrola crepitante, folhear um antigo álbum de família, que mesmo assim, não se sentiria em casa. Sua casa deixou de ser um lar anos atrás, quando seu pai pegou um avião junto com outros noventa e quatro soldados para o Iraque.

Raven não costumava pensar tanto no pai.

Ele era dourado. Ela não se lembrava de suas particularidades com muita nitidez, mas Deus, Raven se recordava daquelas manhãs em que acordava e o encontrava virando panquecas na frigideira, enroupado no uniforme completo do Exército, e ela podia jurar que o pai irradiava a mesma fulgência do sol numa aurora primaveril. Ele era dourado até explodir num posto regimental, junto com noventa e quatro soldados feridos. Ficou tão áureo que a sua matéria mortal não suportou e cedeu ao fogo, que incinerou sua carne e libertou sua alma.

E gradativamente, a família Wakahisa (ou o que restou dela) afundou em decrepitude. Ninguém regava os bonsais e os girassóis do jardim da frente. Algumas telhas de ardósia se soltaram e ninguém se dispôs a consertar. A porta rangia, a pia entupia, o encanamento quebrava, o sótão inundava e eles seguiam com suas vidas, aguardando o declínio iminente.

Raven ligou o rádio, desejando espairecer os pensamentos com alguma música feliz e banal da Cyndi Lauper. Ouviu dois toques na porta e grunhiu.

— Docinho? Sei que está de mau-humor, mas o Park acabou de ligar da escola e pediu para trazer o trabalho de inglês que ele esqueceu aqui. Procurei em todo lugar, mas não encontrei. Pode me ajudar?

Raven abaixou a antena do rádio e se levantou da cama, ajeitando a toalha no corpo. Abriu a porta abruptamente e ultrapassou a mãe, esbarrando em seu ombro.

— Tentou procurar na gaveta? Ele sempre deixa as coisas lá.

Park vivia ressaltando a importância de respeitar a privacidade dos outros. Ela não poderia entrar em seu quarto sem o seu consentimento. Uma pontada de culpa cutucou o seu estômago quando Raven adentrou os aposentos do irmão, mas não chegou a impedi-la por completo.

O quarto de Park era mais amplo do que o dela. Possuía dois armários de linóleo; um para guardar as roupas, o outro para armazenar suas telas e seus equipamentos de pintura. Por curiosidade, abriu o segundo. Anos atrás, assim que acabava um quadro, o irmão a chamava, ainda com as mãos sujas de tinta, para lhe exibir sua mais nova obra de arte. Gostava de pintar ruelas estreitas, nas quais flores brotavam misteriosamente no asfalto. Às vezes, esboçava rostos de desconhecidos e os coloria com azul de praxe, verde-musgo e laranja incandescente. A maioria de seus quadros traziam uma mesclagem cromática que queimava as pálpebras do apreciador e Raven amava a distorção matizada nas telas.

O armário de quadros estava quase vazio. Havia duas telas retangulares equilibradas no móvel espaçoso. Ela segurou uma na altura do rosto e se surpreendeu ao perceber que era o retrato de alguém familiar. Era um garoto e ele trazia um sorriso duvidoso na fronte formosa. As clavículas expostas eram profundas e nelas se acumulavam traços azuis-marinho. Os lábios possuíam uma coloração avermelhada sutil. O torso era translúcido de tão pálido. As órbitas pareciam criptas, que escondiam orbes intrínsecos e vulneráveis, pelos quais ondas de mágoa vertiam como transmissões de rádio. Quando viu aqueles olhos desconfiados, Raven reconheceu o garoto de imediato. Era Floyd, e Park havia o retratado tão fielmente que o garoto até tinha escoriações nas costelas e marcas em forma de lua minguante no pescoço.

— Ele se parece com o Floyd, não? — comentou a Sra. Wakahisa, apoiada no batente da porta.

— Mais ou menos.

Raven devolveu o quadro ao seu lugar e fechou o armário.

— O trabalho, né? — murmurou, atordoada.

Abriu a primeira gaveta do criado-mudo. Havia alguns papéis de bala, embalagens de camisinha lacradas, um pacote de cigarros American Spirit, pomadas para acne e um envelope amassado. Fuçou a segunda e encontrou o trabalho intitulado ‘‘Os Louváveis Marginais de Oklahoma’’. Ela folheou a história e contou doze páginas.

— Aqui. — ela entregou o trabalho à mãe, que agradeceu e saiu do quarto, girando as chaves do carro na mão.

Raven olhou para a gaveta ainda aberta. Havia um saco plástico amarelo com seu nome, ‘‘Rae’’, escrito na caligrafia elegante de Park. Ela extraiu o peso da sacola. Era um maço de cartas compactado com um elástico. Suas mãos, incontroláveis de tão curiosas, desataram-no e começaram a abrir os envelopes com uma velocidade impressionante, temendo que o irmão magicamente se materializasse no quarto e a flagrasse.

‘‘Meu chefe pagou mil dólares pelo seu quadro. Aqui o dinheiro.’’

‘‘Obrigado por ontem à noite.’’

‘‘Convenci minha tia avó a comprar ‘Walt Whitman em Azul’ por dois mil. Bom preço para um amador, né? Aqui vai o dinheiro.’’

‘‘Obrigado por ontem à noite.’’

‘‘Obrigado por ontem à noite.’’

E havia mais onze envelopes agradecendo Park pela noite anterior, cada qual contendo uma nota de cinquenta dólares. No final de cada carta, um nome assinado em letras desleixadas: Ben Godfrey.

Ela se curvou sobre a gaveta, com a testa úmida e febril. Park estava guardando o dinheiro que ganhara para Raven? E por que Benedict estava o pagando por ‘‘ontem à noite’’? Com a pouca experiência que Raven tinha no campo dos relacionamentos, sabia que casais não se remuneravam por amor.

Enfileirou as cartas, colocou-as de volta na sacola e a guardou na gaveta, com o lado do seu nome virado para cima. Alisou a superfície amassada do saco amarelo. A cena do crime estava imaculada, livre dos respingos de sangue e das impressões digitais que comprovavam o delito.

Encaminhou-se ao seu quarto novamente, enquanto escutava o sedã antigo da mãe rugir no quintal. O portão da garagem soltou um bramido detestável, suplicando por um lubrificante. Raven observou da janela de seus aposentos o automóvel esmeralda contornando a esquina, reluzindo sob o sol californiano.

Sozinha de novo, naturalmente. Olhou para o retrato de seu pai, rodeado por três tocos de velas derretidas, e teve uma ideia. Em seguida, vestiu uma calçola de algodão, shorts de pijama cinza e um blusão estilo Baja que pertencera a Park anos atrás. O tecido áspero a pinicava no abdome.

Raven desceu as escadas e pegou duas moedas de cinquenta cents pela abertura na barriga do cofrinho de porco. Encarou o perfil honesto de John F. Kennedy estampado no níquel e perguntou a si mesma se era correto infligir as economias da casa. Negou com a cabeça e enfiou as moedas no bolso, saindo pela porta frente e a trancando logo em seguida.


***


Raven tentou olhar através das janelas escuras e embaçadas da Pink's Grocery. Vislumbrou um garoto esquálido encurvado sobre alguma coisa, sentado no caixa. A mercearia estava desértica e quando resolveu ultrapassar as portas duplas, foi recebida com o olhar desanimado de Floyd, que havia a confundido com uma freguesa senil ao bater os olhos nela. Todavia, ao reconhecê-la, correu até Raven com uma pressa desastrada.

Floyd usava o uniforme da aula de Educação Física. Só Raven conseguia entender a sua repulsa por partidas de futebol ímprobas e polichinelos. Suas chuteiras rotas estavam sujas de terra e as meias grossas, puxadas até os joelhos.

— Eu juro que quando o meu turno acabasse, ia pra sua casa direto. — disse Floyd, numa voz carregada de culpa. — O Park tava uma fera na escola, quase espancou o Beau. Ah, cara, nós não devíamos ter ido pro Drácula, sempre dá merda toda vez que a gente vai.

Ele pousou os olhos no ferimento semi-coagulado em seu rosto. Ergueu os dedos com sutileza e tocou no sangue pastoso, levando o dedo médio à boca e engolindo a seiva rúbida que uma vez correra pelas artérias de Raven.

— É bom? — questionou ela, abrindo um sorriso. O que seria de Floyd sem as suas esquisitices?

— Razoável. — deu de ombros, com um ar mais descontraído.

Ela percebeu o cubo mágico sobre a esteira do caixa junto de um estojo cheio de canetas permanentes coloridas. Floyd estava pintando os quadrados do cubo para que os lados ficassem monocromáticos, sem que fosse exigida muita força mental.

— Se você tivesse pedido, eu poderia ter te ajudado a resolver a magia do cubo sem roubar. — afirmou ela, esfregando o dedo polegar contra a tinta úmida.

— Usar um oriental para resolver alguma coisa complexa já é roubar. — gracejou ele.

— Isso é racista.

— Desculpa, deixei escapar. Não foi a minha intenção, você sabe que eu gosto de pessoas orientais... Digo, eu gosto de pessoas, não quero dizer que tenho feitiche por asiáticas, porque eu não tenho. Não que eu não te ache bonita por ser japa, porque eu acho, mas não é como se fosse achar todas as japonesas bonitas porque... Ah, você me entendeu. — suas orelhas ficaram vermelhas de vergonha.

— Floyd, relaxa. — ela sorriu bondosamente e tentou tirar a tinta vermelha sobre um quadrado branco pela última vez. — Bom, você estragou o seu cubo mágico.

Floyd cheirava a desodorante Mr. Fresh e a cigarros Newport. Possuía sardas nos braços e os músculos de seu rosto gracioso estavam sempre tensionados, em alerta. Havia cedido a métodos radicais para aliviar seus traumas e as chibatadas do pai, e ultimamente, parecia mais arredio e ausente. Menos com ela; com Raven, era sempre dócil e atencioso, tratando-a com a pureza de um garoto crismado. Floyd fora feito de estrelas, cicatrizes e Pop Tarts; era o sonho irreprimível de toda garota suburbana. Até mesmo o dela.

— Eu queria passar no túmulo do meu pai. Faz tempo que não faço uma visita. A gente tem cactos pequenos?

— Sim, temos uma variedade aqui. Só não entendo por que você não para em alguma floricultura próxima ao cemitério e compra um arranjo bonito.

— Tô tentando ser original aqui.

Ela serpentou pelos corredores com as moedas tilintando no punho fechado. Na seção de jardinagem, pegou um cacto de aparência amigável dentro de um vaso circular de plástico preto. Retornou ao caixa e despejou os centavos na esteira.

— Hã, Rae, acho que o meu velho não ia se importar se eu fechasse a loja por alguns minutos. Você quer uma carona pro cemitério? — ofereceu-se Floyd, coçando a nuca.

— Pode ser. — balançou a cabeça, um tanto desanimada. Gostava de conversar com a lápide de seu pai a sós. Quando não tinha tanto trabalhos escolares, costumava falar com o espírito do Sr. Wakahisa por horas a fio, até o coveiro gentilmente expulsá-la de lá.

— Beleza, então. Você tá com fome? Posso pegar umas amostras grátis e alguns refrigerantes da cozinha.

— Cara, ia ser muito bom se você fizesse isso.

Ele recolheu todos os pratos descartáveis espalhados pela loja e guardou os tascos de pão de azeitona e as frutas frescas cortadas ao meio dentro de um saco de papelão. Sumiu dentro da porta que conectava a loja à sua casa e retornou segundos depois, segurando duas garrafas de Dr. Pepper em uma mão.

— Dá uma ajuda aqui. — entregou o saco para ela.

Floyd tirou o avental verde-musgo e virou a placa de ‘‘Aberto’’ para ‘‘Fechado’’. Os dois ultrapassaram a porta de vaivém e foram engolfados pela aragem dos últimos dias daquele verão abrasador. A velha bicicleta estava largada sob um dedaleiro imponente. Os pneus murchos exibiam vários remendos. Adesivos de chamas petulantes no guidão atestavam uma infância obsoleta e constrangedora. Enquanto os garotos de sua idade dirigiam seus Buick Electra possantes, Floyd ainda pilotava sua magrela azul. Ele a ergueu do chão e sorriu para Raven. Sentou-se no selim e ela, no guidão, com o cacto e a comida entre as pernas.

—Não é muito confortável, mas dá pro gasto. — murmurou ele.

— É bacana. — consolou ela.

Floyd começou a pedalar, apresentando uma dificuldade inicial enquanto a engrenagem girava lentamente, rangendo. Raven prendeu o cabelo para que os fios indomáveis não atrapalhassem a visão do amigo. Observou seus punhos agarrados na direção, manchados por feridas arroxeadas, como se houvesse espancado uma parede de espinhos.

— Você tá bem? — perguntou Raven.

— Sim, sim. — retrucou ele, com o hálito fresco em seu pescoço.

Raven gostava das ruas arborizadas e do aroma rupestre impregnado no ar, temperado com o pólen que se desprendia das flores de cerejeira. Ela ficaria entristecida se soubesse que derrubariam todos os salgueiros e ipês, e que substituiriam as casas de tijolos por fábricas poluentes, durante a sua eterna ausência. Virou-se para trás e flagrou Floyd em um momento de reflexão, com o maxilar trincado e os olhos cerrados. Suas íris espelhavam os postes de luz e o céu estriado de nuvens. Em suas pupilas, ela enxergou sonhos nevoentos, estradas luminosas e revoadas de urubus. Raven beirava à fala quando Floyd apontou para os portões enferrujados do Cemitério Ursa Maior.

— Foi rápido. — comentou ela.

Adentraram a necrópole com as rodas tropeçando no caminho íngreme de pedras. O ar cheirava a feno e pântano, mesmo que não houvessem cavalos ou aguaçais na região. Todos os túmulos estavam cobertos por esqueletos de folhas e flores decompostas, com exceção de um, que fora rodeado por guirlandas fúnebres e velas de citronela. Na lápide quadrada estava escrito: ‘‘Gary Austin, filho, irmão e amigo adorado’’.

Gary havia sido a vítima mais recente do assassino. Raven não comparecera ao seu funeral e fora incapaz de derramar uma única lágrima pelo seu falecimento. Ela se sentia culpada. Havia sido uma das últimas pessoas a tê-lo visto, tendo cabulado a última aula com ele no carro de Teddy Turner. No dia anterior, dois policiais vieram à escola para interrogá-la, contudo, Raven não conseguira ser muito útil ao responder as indagações.

— É ali. — ela indicou uma sepultura, na qual haviam fincado uma miniatura da bandeira dos Estados Unidos.

Floyd parou e Raven desceu do guidão. Apoiou a bicicleta num carvalho e os dois seguiram a pé até o túmulo, onde se sentaram e abriram o saco de comida. Ela devorou os pedaços moles de pão de azeitona, abriu uma atemóia e sugou a sua polpa branca com ferocidade, engolindo algumas sementes sem querer. Abriu a garrafa de Dr. Pepper e sorveu um terço do conteúdo em duas goladas barulhentas.

— Ei, pai, hoje eu trouxe um amigo comigo. Espero que não se importe. — saudou ela, com o refrigerante borbulhante fazendo cócegas em seu nariz.

Era estranho o quanto uma lápide poderia ser parecida com um homem. Seu aspecto rígido, severo e cinzento poderia ser comparado à postura do pai, de costas eretas e olhar estreito. Floyd pegou um pêssego do saco e deu uma mordida suculenta na fruta.

— Por que você gosta do Finn? — perguntou ele, direto. — Ele representa tudo o que você mais odeia no mundo: projeto de Bugle Boy machista e pretensioso.

Raven quase engasgou enquanto bebia da garrafa. Conteve-se para não espirrar refrigerante pelas narinas e ficou alguns segundos segurando a respiração, deixando as faces rosadas.

— Eu gosto das pessoas porque gosto. Eu não ligo se o Finn é pretensioso, ou se gosta das roupas da Bugle Boy. Gosto da companhia dele. Ou pelo menos, gostava até uns dias atrás.

— Você não gosta mais dele, então?

Raven suspirou.

— Por que as pessoas tratam esse assunto com tanta importância? Romantizam o romance, sabe? Aquele lance das ‘‘borboletas no estômago’’, não existe na vida real. — ela refletiu por alguns instantes. — Existe?

— Depende. Às vezes, parece um enxame de abelhas picando as suas entranhas até você sangrar por dentro.

E eles afundaram em um silêncio desconfortável mais uma vez. Ela queria reunir todas as suas energias positivas e transmiti-las ao cadáver do pai, mas agora, não conseguia pensar em nada além de Finn e o pálio aberto em seus olhos.

— Eu sinto muito pelo seu pai. — Floyd deu palmadinhas incômodas no ombro de Raven.

Ela sorriu em contrapartida, sem saber como reagir.

— Eu também sinto muito pelo seu pai. — deixou escapar. — De verdade.

— Sabe, nem é tão ruim assim. Os cascudos, quero dizer. É legal quando ele tá meio bêbado e me deixa dar uns goles em umas cervejas-choca. Daí, a gente fica vendo Saturday Night Live, rindo de umas piadas sem-graça. — falou ele, dando de ombros. — Pra ser bem honesto, até que gosto quando ele me bate. Pelo menos, parece que eu existo. E também me faz crescer como homem.

Raven formulou um sermão em sua cabeça. Pretendia argumentar sobre como agressividade não podia ser relacionada à virilidade e emendaria o assunto à questão de Floyd ter quase estrangulado uma garota na noite anterior. Lembrou-se, todavia, do rapaz retratado na tela de Park e de como ele não lhe daria ouvidos por ser muito teimoso.

Floyd era um infante corrompido, um adolescente evadido, um espírito padecido. Ele era dourado e ela não permitiria que o mundo apagasse o seu halo lampejante.

— Não diga isso, por favor. — reconfortou ela. — Olha, se você precisar, pode dormir em casa por uns dias. Temos um colchão sobrando. Pode ficar o tempo que quiser.

Raven engoliu a seco. Finn era o único garoto permitido a dormir em seu quarto. A Sra. Wakahisa era apaixonada pelos seus olhos azuis e radiantes, e pelo seu sorriso luzidio de bom moço. Ela não tinha certeza se a mãe se apaixonaria do mesmo jeito pelas olheiras de Floyd, que pareciam dois bueiros tenebrosos, e seu sorriso amarelado, do tipo de garoto que arruina garotinhas graciosas.

— Sério?

— É. Totalmente séria. — disse, tentando transmitir uma imagem confiante.

— Você perguntou pro Park? — ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Nem precisa. — mentiu descaradamente.

Floyd desfrutou dos últimos goles de seu refrigerante e reprimiu uma eructação na garganta. Folhas de coqueiro farfalharam acima de suas cabeças e formigas vermelhas trilhavam uma fila indiana até uma rachadura na lápide do Sr. Wakahisa. Raven sorriu à mera lembrança de escutar as histórias de guerra do pai minutos antes de dormir, com o edredom aprazível puxado até o queixo.

— Posso entrar num assunto meio sério? — questionou ela.

— Claro. — retrucou ele, arqueando as sobrancelhas com surpresa.

— Quando o meu pai deixou a gente pela última vez, eu lembro que era a véspera do meu aniversário. — iniciou Raven, controlando sua entonação para que não ficasse embargada. — A gente tava bem relaxado porque todo mundo pensava que ele voltaria.

‘‘Ele me deu um livro como presente. É tipo aqueles que dão na escola, com umas mensagens subliminares e um título inspirador que te faz chorar. Eu o lia todas as noites. Agora não sei onde está. Só lembro de um trecho, que é mais ou menos assim:

Rae, este é o último dia especial de comemoração a cada ano que estarei com você, tendo aprendido com os nossos amigos, os pássaros.
Não posso ir ao seu encontro porque já estou com você.
Você não é pequena porque já é crescida, brincando entre suas vidas como todos fazemos, pelo prazer de viver.

Você não tem aniversário porque sempre viveu; nunca jamais haverá de morrer. Não é a filha das pessoas a quem chama de mãe e pai, mas a companheira de aventuras delas na jornada maravilhosa para compreender as coisas que são.’’

Floyd arrancava as cutículas das unhas com os dentes. Ele possuía aquele olhar que penetrava em seus glóbulos oculares e se esgueirava pelos cantos de seu cérebro, fincando sua bandeira de conquista em cada extremidade.

— Parece que ele sabia o que ia acontecer. — analisou.

— Eu sei. É estranho.

Um galho estalou num ponto não muito distante da lápide do Sr. Wakahisa. Raven virou-se na direção do ruído, mas só encontrou mausoléus sombrios e árvores estéreis. Floyd parecia ter captado um movimento estranho e seu pomo de adão subia e descia no pescoço descarnado. Ela arremessou as cascas e sementes de frutas no saco, e sorveu o restante da garrafa de Dr. Pepper.

— Eu não gosto de cemitérios. Eles não têm uma energia muito boa. — criticou Raven, voltando a encarar o amigo.

— É bem sinistro. Vamo embora.

Eles rolaram para fora do túmulo e contornaram as outras sepulturas, a caminho da bicicleta vetusta. Entre as árvores, que se tornaram borrões, Raven distinguiu o sorriso soturno da garota morta, ainda vestida em seu traje de bailarina. Peggy Ryan, a monarca dos sopros vitais, o passarinho que quebrou a casca do ovo, a menina desaparecida das caixas de leite, debochava de Raven com os olhos malignos a cintilarem, rindo de sua tolice mortal. E assim, desapareceu em um piscar de olhos, como a lembrança de um cruel pesadelo.


***


Raven destrancou a porta silenciosamente e tentou dar pisadas leves no assoalho antigo. Floyd se arrastava atrás dela, já familiarizado com os rasgos no papel de parede e com as baratas amigáveis cruzando a sala de estar. A Sra. Wakahisa bebericava seu chá caseiro de casca de abacaxi e assistia a um episódio novo de Seinfeld.

— Ei, mãe, o Floyd pode dormir em casa hoje? — perguntou Raven, largando-se no sofá, ao lado da mãe. — Como o Finn fazia semestre passado?

— Sim, claro... — respondeu a Sra. Wakahisa, distraída. — O Finn é um garotinho bom.

— Não, mãe, o Floyd.

Sua mãe ergueu os olhos para seu amigo e quis não parecer surpresa. Escondeu um sorrisinho orgulhoso atrás da xícara de porcelana e assentiu com a cabeça.

— Tudo bem. Pergunte ao seu irmão se ele não se importa ceder o colchão ao Floyd.

Raven ordenou ao amigo que ficasse no andar debaixo. Subiu as escadas, ignorando o quinto degrau que fora partido ao meio durante um dos inúmeros ataques de raiva de Park. A porta do quarto do irmão estava descerrada. Descansava sobre a cama, segurando um pacote de gelo na testa, e de alguma forma assustadora, notou a irmã o espiando pela fresta.

— A mamãe me falou que foi você que encontrou o meu trabalho de inglês.

— Sim.

Raven entrou cautelosamente na área de perigo, que cheirava a tênis esportivos suados e queijo grelhado. O irmão havia furtado seu rádio e agora, ouvia uma música da New Order no volume mínimo. Park era mestre em esconder seu nervosismo; os olhos sonolentos, a boca inexpressiva, os braços atrás da cabeça, as pernas cruzadas e descontraídas. O irmão era como uma panela de pressão. Era apenas uma questão de tempo até que ele começasse a apitar e consequentemente, explodir.

— Você vendeu os seus quadros. — afirmou ela.

— Pois é. — confirmou ele.

— Você vendeu o seu corpo.

— Pois é.

Raven se sentou na cama e tocou no calcanhar do irmão.

— Por quê?

— Por causa da sua faculdade. Pelo menos, eu sou o único nessa casa que se importa com isso. — retrucou Park, ácido.

— Eu me importo. Trabalho na mercearia do Floyd nos sábados e às vezes, vigio o bebê dos Wyatt. É o máximo que consigo, Parkie.

— Não é o suficiente. Nós mal conseguimos nos sustentar, imagine pagar uma mensalidade. O mínimo que você pode fazer é estudar e pelo que eu tô vendo, você não tá cumprindo os seus deveres. — disse ele, no mesmo tom que o professor de Sociologia usava quando brigava com os alunos.

— Eu tô tentando.

— Você não tá coisa nenhuma! — bradou ele. — Se soubesse o quão difícil tá sendo pra mim, não ficaria saindo por aí com traficantes e fazendo sacanagem com os meus amigos.

— Sacanagem? Não sou eu a prostituta da casa.

— Cala a boca, Raven.

— Ninguém nunca te pediu nada, Park. Você tá fazendo isso porque gosta.

Ele pegou o objeto mais alcançável no momento — nesse caso, o rádio — e o estraçalhou no carpete lígneo com um estrondo. Raven gritou e pulou para trás, aterrissando no chão de costas.

— Cala a boca! — ele se pôs de pé. — Você acha que eu gosto de dormir com o irmão mais velho do meu amigo? É nojento, é repugnante. Mas é o jeito que consigo colocar comida na mesa, pagar as contas e comprar as coisas que você pede. Os cultos que mamãe faz não adiantam em nada e muito menos as cinco pratas que você ganha por ociar, empacotar produtos veganos e trocar fraldas.

— Eu acho que você gosta disso, sim. — clamou ela, apontando para o irmão como se estivesse o condenando.

— Eu não sou gay, porra.

— Acho que a tela que você pintou do Floyd sem camisa pode ser bem contraditória, então.

Park agarrou-a pelo capuz do blusão e a chacoalhou no ar. Içou o punho cerrado para trás, mas foi incapaz de acertá-la no nariz com um soco. Raven só percebeu as lágrimas extravasantes na orla de seus olhos nipônicos quando piscou, perplexa. O irmão a pôs de volta no chão e virou o rosto para trás, fungando.

— Pare de fuçar nas minhas coisas, por favor. — pediu, mais calmo.

— O que aconteceu com a gente, Park? — inquiriu ela, sufocada.

Ele ultrapassou a porta. Raven escutou seus passos pesados e ritmados, similares à uma marcha. Pela janela do quarto do irmão, assistiu-o sair pela porta da frente e seguir pela rua com o skate sob o braço.

— Ouvi um barulho esquisito. — articulou Floyd, apoiado no portal de madeira. — Você tá bem?

Ela assentiu com a cabeça, volvendo-se para ele com o queixo erguido e os braços cruzados. Raven ficou oca e leve, como o olho de um furacão, e a única coisa que pesava dentro de si era o coração latejante. Floyd a tomou pela cintura e afundou o rosto em seu pescoço, tendo que se curvar ligeiramente pela diferença notória entre suas alturas. E então, Raven sentiu. Sentiu o enxame de abelhas fincando os ferrões em seu estômago, zumbindo as asinhas em sua cabeça e produzindo um mel glutinoso em seu ventre.

— Ele deixou você passar a noite aqui.

— Obrigado. — murmurou, ainda abraçado à ela.

Raven absorveu a colônia que se desprendia do corpo unguento de Floyd. O cenário ao seu redor ficou embaçado, translúcido. Tudo o que ela sentia era a camiseta de bélbute contra o seu rosto, o odor de amaciante de alecrim e as abelhas inglórias zanzando pelas suas vísceras.

— Quando eu tinha dez anos, não conseguia me controlar perto de você. — confessou ela.

Floyd desgrudou o nariz de seu pescoço e tocou-lhe o ferimento da lateral do rosto. Contornou-o com o dedo indicador, descascando a fina crosta que havia se formado sobre o machucado. Seus lábios costumavam ficar entreabertos quando estava concentrado em algo.

— Eu não consigo me controlar perto de você.


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Notas finais do capítulo

(NÃO, ELES NÃO SE BEIJARAM DEPOIS DISSO)
Olar, gatinhas e gatões, espero que estejam gostando de DaC.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Giovanna e ao Lucas pelas recomendações arrasadoras que me deixaram estática por um mês.
Em segundo lugar, gostaria de agradecer aos amorzinhos que deixaram comentários no capítulo anterior.
Estou planejando em fazer uma playlist geral da história com todas as músicas que têm esse estilinho DaC, mas que não se encaixam com os capítulos. Aliás, um obrigada à Lanninha por ter me indicado a melhor música de todas que consequentemente me apresentou ao melhor curta-metragem de todos. Também tô a fim de criar um Tumblr pra DaC, daí eu conseguiria mostrar a vocês algumas imagens, músicas, screencaps de filmes e frases que uso como inspiração para escrever.
O trecho que a Raven cita não é fictício (pois é, fiquei impressionada com as coincidências), e sim, foi extraído de um livro clássico do Richard Bach, chamado ‘‘Longe É Um Lugar Que Não Existe’’.
E não se preocupem, vou abordar os motivos que levaram o Floyd a querer esganar aquela menina na rave do vampirão, só não o fiz nesse capítulo para não ficar muito longo.
Espero que tenham gostado e que comentem :)
Próximo capítulo: Floyd