Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 7
Everyone


Notas iniciais do capítulo

esse capítulo acabou saindo muito grande, desculpinha :/
e tem quatro músicas no banner porque estava me sentindo inspirada.
aproveitem então



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Era sexta-feira e todos estavam apaixonados, embora as nuvens ominosas parecessem estar planejando algum sacrilégio.

Beauregard chegou em casa muito satisfeito com as suas traquinagens. Grudara papel higiênico molhado com água sanitária no teto da sala dos professores, acionara o alarme de incêndio e consequentemente os sprinklers ao acender um cigarro no corredor, talhara o contorno de um pênis no Ford Mustang da prof. Kruger e por fim, colocara uma tachinha na cadeira do sr. Vanderbean (que soltara um grito esganiçado e outro de frustração por não conseguir apontar qual dos seus alunos cometera tal atrocidade).

Sentou-se na mesa do almoço. Apoiou os cotovelos e enfiou sua cabeça entre eles, de modo que a sua mãe não pudesse captar o sorriso travesso. Encarou seu próprio rosto refletido na superfície marrom e envernizada da mesa. A sra. Godfrey pigarreou e um panfleto foi arrastado perante à ele, parando sobre o seu reflexo.

— Para você pensar mais um pouco sobre o seu comportamento. — falou, severa.

— Colégio militar? — Beauregard pegou o panfleto e o analisou. Não precisava mais esconder seu sorriso endiabrado porque este não estava mais lá.

— Vai ser bom pra você.

— Não, não vai. — abriu o catálogo e começou a examinar minuciosamente as fotografias que ilustravam o pátio, os dormitórios e os alunos. Tudo era cinzento, pálido e lúgubre, até mesmo as pessoas. — Que merda é essa, mãe?

— Não fale desse jeito comigo. — ralhou, apontando a faca para ele. Em seguida, acalmou-se e ajeitou o coque louro. — Vamos guardar essa conversa para outro dia. Seu irmão está vindo para almoçar conosco. Se você se comportar até o fim das aulas, talvez não precisemos tocar no assunto Idaho de novo.

— Essa porra fica em Idaho?

— Solte mais um palavrão perto de mim que você vai prum reformatório neste fim de semana.

Beau se contentou em mordiscar o prato de entrada com uma expressão aborrecida. Benedict era levado em seus dias de estudante; costumava ser suspenso com frequência, visitava a sala do orientador duas vezes por semana, dava festas colossais na casa (e sempre era pego pelos pais) e já fora preso e obrigado a prestar serviço comunitário. Sua mãe, contudo, esquecera de todas as suas brutalidades e resolvera canonizar o filho mais velho.

A empregada hispânica entrou na sala. Parecia miúda em seu uniforme azul e piscava constantemente como um chihuahua. Era jovem e bronzeada, e Beauregard tinha a impressão de que ela o temia. Talvez, de tanto escutar as reclamações que sua mãe soltava a respeito dele, teria assumido um comportamento defensivo quando o via.

— O sr. Benedict está aqui. — anunciou numa voz baixa para a sra. Godfrey, sem olhar para Beau. A empregada não só era semelhante à um chihuahua nos olhos esbugalhados e lacrimosos; sua respiração frenética, seu corpo pequeno e suas origens mexicanas eram características que possuía em comum com aquele cachorrinho minúsculo.

— E o que está esperando? Vá abrir a porta! — ordenou rudemente. Quando a empregada saiu do recinto, a sra. Godfrey suspirou: — Esses mexicanos não servem nem de empregados. Deveriam ter ficado nas indústrias maquiadoras.

Beauregard escutou a voz trovejante do irmão pela primeira vez em um ano. Seu pai estava num táxi em Toscana agora. Os dois o haviam abandonado e partido para as suas vidas incríveis, deixando-o preso num subúrbio ensolarado e pacato com a megera que era a sua mãe.

Beau nunca havia odiado o irmão mais velho tanto na vida.

***

Finn tentava desesperadamente arrancar uma farpa do dedo. Se Raven estivesse ali, retiraria uma pinça da bolsa e resolveria o problema de imediato. Contudo, ela estava ocupada ajudando Floyd na mercearia porque ele ainda estava se recuperando da cirurgia.

Naquela manhã, Finn havia acordado tarde. A família já havia se espalhado pela casa; sua mãe na cozinha, virando hambúrgueres na frigideira, cortando tomates, lavando folhas de alface e derretendo queijo cheddar; seu pai sentado no sofá, com a cara bigoduda escondida atrás de um jornal, mantendo o olhar sério e fingindo que estava lendo as notícias sobre economia, quando na verdade, divertia-se com os quadrinhos; e Audrey em pé, conversando com uma amiga no telefone e enrolando o fio com o dedo indicador.

Finn não deu bom-dia para ninguém. Passou direto por eles, que não notaram sua presença. Ele entrou na casa da árvore com pacotes de Snickers dentro dos bolsos do macacão de pijama. Notou que havia um novo buraco na parede de madeira e por curiosidade, meteu o dedo indicador dentro da abertura. E foi aí que a maldita farpa penetrou em sua pele e o fez soltar um grunhido.

Pensou em tentar tirá-la com os dentes. Provavelmente acabaria espetando a própria língua com a farpa. Em seguida, cogitou em entrar novamente na casa, desejar um bom-dia a todos e pedir polidamente à sua mãe que arrancasse aquilo do seu dedo. Ela o faria com um sorriso, aquele que todas as mães dão quando os filhos fazem alguma bobagem infantil, e depois beijaria a região dolorida. Finn negou com a cabeça; faria aquilo sozinho, já era grande o suficiente.

Apertava a pele avermelhada do dedo quando escutou alguém bater palmas no lado de fora da casa. Espiou pela janela e viu Park, vestido numa jardineira e um chapéu de pescador. Seu coração palpitou e, com o rabo entre as pernas, planejou em agachar e prender a respiração até o amigo ir embora. Contudo, ele já havia o visto.

— Posso subir? — perguntou Park, numa voz cabisbaixa.

No início da semana, Finn e Raven haviam-no flagrado com a suposta namorada durante um banho. A namorada era o irmão mais velho de Beau, que trabalhava com finanças e era rico como Deus. Finn pressionou a ponte do nariz, expulsando a sensação vertiginosa que embaçava a sua visão. E todas aquelas vezes que dormiu na casa dos Wakahisa? Ele imaginou, com repulsa, Park abrindo a porta do quarto de Raven no meio da noite e observando-o enquanto dormia na bicama, com o torso pálido e nu, cintilando na escuridão. Será que já teria tido sentimentos por ele?

— Tanto faz. — respondeu, arrastando-se para um canto da casa.

Park teve dificuldade ao entrar. Sempre fora a criança mais alta da sala, aquela que tinha que se curvar ao tirar fotos com os amigos e que sempre era confundido com garotos do ginásio pelas universitárias. Encolheu-se sob o teto da casa da árvore e se sentou, visivelmente desconfortável, num pufe que Raven havia trazido dias antes.

— Você deve saber o porquê de eu ter vindo aqui.

— É, cara, tanto faz. Eu... Eu tenho que fazer uma coisa mais tarde. — gaguejou Finn.

— Qual é, para com essas paias. Eu sei que você tá mentindo.

— Não tô, não. Eu tenho que me aprontar pro Midnight Floyd hoje. A gente vai ver aquele show de lasers com música do Pink.

Park afundou no pufe, que produzia um ruído de flatulência toda vez que alguém se ajeitava nele. Finn e Raven batizaram o móvel de Peido.

— Finn, você odeia Pink Floyd.

— É, mas a Rae me obrigou a ir.

— Por que ninguém me chamou? — Park estreitou o rosto. — Você não falou nada, né?

— Não. O Beau me pediu pra te convidar. Não sei se é uma boa você ir.

— Por quê?

— Porque ia ser estranho. Não me acostumei com a ideia. E se alguém descobrir sobre isso, vai ser suspeito. Sabe, vão achar que eu também sou viado.

Finn dobrou as barras desfiadas da calça jeans. A farpa afundou mais alguns milímetros em sua pele, o buraco imperceptível em seu dedo entrou em erupção e expeliu sangue (ele o lambeu e sentiu a farpa espetar-lhe a ponta da língua e o gosto de ferro azedar as suas papilas gustativas). Park tirou os óculos do rosto e limpou a lente esquerda (1,5 graus de astigmatismo e dois de miopia) e depois a direita (três graus de miopia) com a manga vermelha-enferrujada da camiseta. Seus Chuck Taylor All Star formavam um ângulo perpendicular e uma das meias listradas laranjas e amarelas estavam furada na altura do tornozelo.

— Sabe, Finn, eu não costumo concordar com a minha irmã sobre muitas coisas, mas ela tá certa sobre uma coisa. Às vezes, dá uma vontade absurda de meter porrada na sua cara.

Finn arqueou as sobrancelhas e enrubesceu. Ele já suspeitava que andava irritando as pessoas ultimamente (Raven havia lhe dado um tapa ardido na bochecha e Teddy socara seu nariz e chutara sua virilha; tudo no mesmo dia), porém nunca pensou que conseguiria enfurecer Park, que era tão calmo e descontraído.

— Foi mal. Não quis dizer isso. Pode vir no show de lasers. Na verdade, é uma escolha sua, né? Não depende de mim essa...

— Só porque eu ando com um babaca como você, — interrompeu-o. — não significa que eu seja um babaca. Então... As pessoas não vão achar que você é gay porque você anda comigo. A não ser que você seja.

— Sai pra lá, cara.

Os dois riram baixo. Finn esticou o dedo inchado para Park.

— Ei, cara, será que você e as suas mãos delicadas poderiam tirar essa farpa de mim? Tô tentando fazer isso há uma hora.

Park colheu a farpa entre as unhas longas e a atirou num canto da casa. Finn encarou seu dedo, vermelho e pulsante, e agradeceu o amigo num tom envergonhado.

— Também não curto muito Pink Floyd mas eu vou hoje. O que o Beau tava pensando quando convidou a minha irmã pro maior ponto de encontro dos maconheiros?

— É. — concordou Finn, sugando a pele machucada do dedo.

— Bom... — Park se ergueu do pufe, que emitiu um som estrondoso ao se preencher com ar. — Tenho que ir. E Finn?

— Que foi?

— Por favor, não abra a sua boca pra ninguém. Entendeu?

— Sim, cara. Conta comigo.

Park assentiu com a cabeça. Finn nunca vira alguém tão vulnerável a ponto de conseguir enxergar todos os seus segredos através do seu mero tecido mortal. Park saltou da casa da árvore, correu até a cerca-viva e parou por alguns instantes. Finn, seguindo-o com os olhos, ficou curioso e engatinhou até a porta. Seu amigo estava hipnotizado por alguma coisa do outro lado da rua.

Finn acompanhou o olhar dele, que o guiou até uma garota careca, vestida num camisetão sujo. Ela se deixou ser absorvida pela sebe de uma casa e sumiu. Park, como uma gazela amedrontada, fugiu sem olhar para trás. Finn esperou que a estranha tornasse a surgir — afinal de contas, não se pode entrar na propriedade de alguém sem ser percebido. Foi aí que percebeu o formato da chaminé, a janela oval do sótão, os ciprestes tortos do jardim dos fundos e, é claro, a estufa de vidro translúcida. A garota tinha acabado de entrar na casa dos Keely.

***

Raven estava acabando de empacotar as compras de uma senhora quando ‘‘Floyd, The Barber’’ começou a tocar no rádio. Pôs o volume no máximo e a velhinha cobriu os ouvidos com as mãos enrugadas e delineadas com veias grossas e azuis latejantes.

— Esse som do diabo está estourando o meu aparelho auditivo! — berrou ela por cima da música.

— Pronto, senhora. — Raven entregou à velha as compras (frutas congeladas, embalagens de cogumelos shitake, três potes de suplemento alimentar e duas alfaces roxas).

A cliente saiu apressadamente, com passos rápidos e diminutos, quase tropeçando na própria bengala e derrubando parte do conteúdo das sacolas ao atravessar a rua.

— Que barulheira é essa? — indagou Floyd, descendo as escadas que conectavam a mercearia com os quartos. A gaze ao redor de seu antebraço exibia alguns pingos de sangue.

— Sua música.

— Ah, Nirvana, não tinha ouvido essa música antes.

— É ‘‘Floyd, The Barber’’. Quem diria que haveria mais alguém com esse nome. Aliás, você tá precisando ir ao barbeiro. Essa franja tá pedindo pra ser aparada. — Raven riu enquanto empilhava as moedas de cinquenta centavos.

— Eu sei que você gosta do meu cabelo. — amarrou o avental da mercearia ao redor da cintura.

— Você vai pro show de lasers hoje?

— Sim. O Park te deixou ir?

Raven acidentalmente derrubou a pilha de moedas, que tilintaram ao rodarem no piso.

— Ah, o Park... Ele... Não sei. Sei lá. Ele tá bem. — após catar as moedas no chão, levantou os olhos para Floyd, que parecia confuso. — Quer dizer, eu vou.

— Você tá bem?

— Tô. Vou regar as flores. — ela se levantou do banco e fechou o caixa, quase derrubando uma estante de gibis ao se esgueirar de Floyd.

— Mas nós só temos cactos!

Raven correu para a pequena seção de plantas que a Pink's tinha. As prateleiras enferrujadas mal conseguiam sustentar os aparatos de jardinagem e havia sacos de terra humífera espalhados pelo azulejo branco. Ela viu uma minhoca rastejar para um buraco na parede. Os cactos pareciam homens quadrados, com braços assimétricos e erguidos, de corpos verdes e arroxeados nas extremidades e cobertos de espinhos. Floyd havia a seguido, desviando de cestas de pão e amostras grátis de tangerinas.

— Você tá bem, Rae?

— Tô, sim. Onde tá o regador?

— Rae, a gente só rega os cactos uma vez por semana.

— Bom, não faz mal regar de novo. Olha como eles tão robustos e... Grandes.

Ela estava tão focada nos espinhos afiados e nos vasos pretos de plástico, que nem percebeu quando ele segurou a sua mão. E estava tão preocupada com o seu rabo de cavalo desgrenhado, com a umidez sob as axilas, com o irmão e a reconciliação que demoraria para acontecer, com o hidratante que havia esfregado em sua pele na noite anterior e a coceira em suas costas, com as jeans justas, com os cadarços do pé direito desamarrados e com todas as outras coisas ao redor, que nem notou quando ele a abraçou.

— As aulas nem começaram direito e eu já tô toda fodida. — choramingou ela.

— O que aconteceu? — perguntou ele num tom compreensivo.

— Nada. Eu percebi que não entendo nada de Física, não consigo dizer nada inteligente no clube de debate e toda vez que tento fazer uma linha reta na aula de Geometria, ela sai trêmula. E eu ainda uso uma régua!

Raven sentiu uma vontade patética de chorar.

— Bom, ninguém entende Física. E eu sei que você é bem inteligente. — desconcertado, Floyd se afastou para conseguir mirá-la nos olhos. — Mas eu me preocupo com esse lance da linha.

Ele difundiu um sorriso radiante e ela engoliu a terrível tentação de vomitar todos os seus problemas para cima de Floyd — desde os dois potes de sorvete que ela consumira na tarde anterior até o caso de Park com o irmão de Beauregard.

— Talvez seja a minha TPM.

— É. Não se preocupa.

Raven segurou a sua mão nodosa, esfregando o dedo indicador contra a palma dele. Uma brisa de tensão inquestionável pairou entre eles, tornando o ar pesado e quase febril de tão cálido.

— Eu acho que escutei um cliente entrar. Vou lá. Regue os cactos. — ela afrouxou seus dedos dos dele e se afastou, deixando-o sozinho com as plantas desérticas e seus corações áridos.

***

Beauregard arranhou o fundo do prato com o garfo dourado. As taças de cristal refulgiam sob a luz do sol que atravessava as janelas coloniais. A parede branca, um grão de poeira no chão, os olhos arregalados da empregada, o odor doce do banquete sobre a mesa medieval, o relógio de madeira tiquetaqueando e até mesmo a mosca voando tortuosamente diante de seu rosto eram mais fascinantes do que a conversa de Benedict.

— Alguém pode me passar o molho? — pediu Beauregard, encarando seu próprio reflexo na mesa envernizada.

— Ah, Ben, me conte mais sobre a sua namorada! — exclamou a sra. Godfrey de boca cheia.

Benedict deu alguns goles em sua taça de vinho. A gola de sua jaqueta estava esticada para cima, cobrindo seu pescoço. Ele tinha cabelos tão compridos que conseguia prendê-los em um rabo de cavalo curto atrás da cabeça. Assim, não parecia um jovem adulto e inexperiente — estava mais para jovem moderno e despojado que faria coisas inovadoras no futuro.

— Bom, ela é bonita. — levou a taça aos lábios novamente. — E gosta de pintar. Você amaria os quadros dela, mamãe; são meio impressionistas, como os de Monet no começo da carreira.

— Sim, sim, ela parece muito interessante, mas como ela é? Digo, de aparência?

Beauregard se remexeu na cadeira.

— Alguém pode me passar a porra do molho?

— Ela é bonita, mãe. Asiática.

— Oh. — a sra. Godfrey deu uma garfada em seu frango. — Ela é coreana? Dizem que os coreanos são os asiáticos mais bonitos. Eu, particularmente, não vejo diferença alguma.

— Eu acho que ela é japonesa. O pai acabou contraindo malária na guerra e morreu.

— Impressionante. — ela manteve os traços de seu rosto impassíveis e fixou os olhos perspicazes no prato de porcelana. — Ela mora perto daqui?

Benedict virou a taça de vinho na boca. Beauregard observou uma trilha de líquido bordô escorrer pelo seu queixo e ser absorvida pela camiseta de linho branca. Sem dirigir nenhuma palavra à mãe ou ao irmão mais velho, levantou-se da cadeira com um rangido estrídulo. Olhou de viés para os dois familiares a fim de verificar suas reações: a sra. Godfrey esperava uma resposta de Benedict, erguendo as sobrancelhas maldosas e batendo os cílios curiosos, enquanto o outro limpava a camiseta com o guardanapo e observava Beau, desapontado.

No caminho de seu quarto, não pôde evitar dar uma espiada no velho cômodo que um dia pertencera à Benedict. A flâmula do time de futebol da escola acima da cabeceira, as gavetas e os armários vazios, a rachadura na parede — originada por um soco de frustração quando Ben recebeu um fora da primeira namorada —, as miniaturas de monumentos famosos de lugares por onde viajou em 1982 sobre o criado-mudo, o contorno de seu corpo atlético no lençol esticado na cama, o odor sutil de mofo e as revistas masculinas sob o tapete que datavam anos distantes faziam parecer que aquele quarto pertencera à uma pessoa morta.

Aqueles anos em que convivera com Benedict haviam sido bons tempos. Tempos efêmeros, tempos passados, tempos que nunca mais voltariam.

— Ei, carinha. — chamou-o Benedict. Sua voz grave e áspera soava engraçada no tom manso que utilizara.

— Que é?

— O que que tá pegando? — pousou a mão sobre o seu ombro direito, num gesto paternal. Beauregard se esquivou.

— Nada. Tô de boa. Ia dar uma soneca.

Benedict abriu um sorriso nostálgico. Estava deixando a barba crescer, abandonando o rosto do garoto desajuizado que já foi. Ele cheirava a colônia Diesel e charutos cubanos. Seus dedos, grossos e com unhas curtas e sujas atrás, exibiam calos de tanto assinarem papeladas e digitarem no teclado de um Apple Macintosh SE/30.

— O quê? — rosnou Beau, rabugento.

— É que você é uma cópia de mim quando eu tinha a sua idade. — ele espiou o quarto por cima do ombro do irmão. — Uau. Faz tempo que não entro aqui.

Benedict entrou em seu antigo aposento e se sentou na cama, ainda admirado pelas lembranças que brilharam vívidas em sua mente e de tão coloridas e fervorosas, as memórias se incineraram e foram convertidas em cinzas. Beauregard o seguiu automaticamente.

— Leona Cabochard. — apontou para a rachadura na parede. — Eu lembro dessa garota.

— É. Eu também. Sarada, moreninha, tudo de bom.

— Ah, sim. Eu sinto falta do colégio. Como estão as coisas lá? Com os assassinatos e tudo mais.

— Normal, como sempre foi. Provavelmente vão cancelar o baile de inverno por causa do serial killer, mas quem liga?

— A sra. Kruger já me mencionou durante as aulas?

Deus, aquela maldita professora Kruger não parava de falar sobre Benedict. Vivia chamando Beauregard de ‘‘Benny’’ e quando percebia o seu erro, desculpava-se com uma risadinha e repetia as mesmas histórias do adolescente endiabrado que Benedict fora. ‘‘Houve uma vez que o seu irmão cortou o rabo de cavalo da garota que sentava em sua frente. Oh, oh! E também teve um dia que ele começou a fazer teatro de sombras durante um documentário que eu apresentava à sala. Era terrível, aquele garoto. Por onde anda agora?’’ E Beauregard era obrigado a contar, pela milésima vez, que seu irmão havia se tornado um homem bem sucedido e que atualmente morava em Nova Iorque, num loft luxuoso da Quinta Avenida.

— Não, ela nunca falou de você. Por quê? — mentiu rispidamente.

Benedict pareceu pouco ofendido.

— Por nada. Saudades da velha sra. Kruger. — e inflou os pulmões com ar, como se estivesse prestes a anunciar algo importante. — Saudades de você, carinha.

— É. Às vezes eu sinto saudades de você.

Por mais que tentasse negar, não foi a sra. Godfrey (ou muito menos o sr. Godfrey) que mais sofrera com a ausência de Benedict. Beauregard vagava à noite pela casa e quando fumava um baseado na rede do terraço, seu irmão se materializava perante à ele, apoiado no peitoril e segurando um copo d'água na mão, e os dois conversavam até o amanhecer, quando Beau acordava sozinho e com os olhos avermelhados e sonolentos.

— Você me largou com a mãe. Ela é louca. Quer me botar num reformatório. — falou ele, ressentido.

— Desculpa, carinha. Mas eu tinha que seguir em frente. Essa cidade toda é doente.

— É. Você tá certo.

— E eu aposto que ela não vai te botar naquele colégio militar em Idaho. A mãe vivia me ameaçando com isso.

— Sério? Ela fala de você como se fosse um anjo.

Benedict afagou os cabelos abundantes de Beauregard, como se tivessem 17 e 9 anos novamente. Ben, como o irmão mais velho divertido, e Beau, como o irmão mais novo que se espelhava no outro. Não tinham aquela típica relação fraterna, onde um pegava no pé do outro, brigavam por bens materiais e dividiam um quarto juntos. Benedict era velho demais e em seus últimos anos na casa, estava ocupado em seus deveres de um rapaz no final da adolescência — o que significava comparecer em festas noturnas irrevogáveis, estudar fervorosamente durante as tardes e fingir se comportar na escola. Já Beauregard era novo demais e Ben se sentiria covarde se batesse nele ou se brigasse quando o outro roubasse algum pertence seu (e não havia motivo para dividirem um quarto porque havia suítes em excesso na casa dos Godfrey).

— Posso te fazer uma pergunta, carinha?

— Claro.

— Você continua sendo amigo da Raven Wakahisa e daquele Finn?

— Sim, eles são maneiros. Por quê?

Benedict esbranqueceu e improvisou um sorriso sem-graça.

— É que... Bem, eu achava que você saía com os caras mais velhos, sabe? Eu lembro daquele Ted e do Percy. Lembra de quando vocês quebraram a máquina de doces e esconderam tudo embaixo da minha cama?

— É... E quando a mãe descobriu, você assumiu a culpa.

Benedict enfiou a miniatura da ponte de São Francisco no bolso. Em seguida, levantou-se da cama com um arquejo — culpava o tempo que passava trancafiado no escritório pela dor nas costas — e deu palmadinhas nas costas de Beau.

— Vamos descer, vai. Quero comer a sobremesa e depois a gente pode jogar uma partida de pebolim.

A empregada hispânica surgiu no corredor, segurando o espanador com o braço estendido, da mesma forma que a Estátua da Liberdade. Correu até os irmãos com passos desastrados — os sapatos de borracha atritavam contra os tapetes indianos e faziam com que ela tropeçasse.

— Seu Benedict, pode falar ao Beau — ela não conseguia pronunciar seu nome inteiro. — que tem um garoto na porta procurando por ele?

— Seu Benedict, — Beauregard a imitou. — pode falar à Celia que captei o recado e que disse ‘‘obrigado’’?

Ele a ultrapassou e desceu os inumeráveis lances de escada. Passou de fininho pela sala de jantar, onde a sua mãe esperava pacientemente pelos dois, degustando um copo de tequila.

— Seja rápido. Não gosto daquela ralé na minha porta. — exigiu a sra. Godfrey, sem olhar para filho.

Beauregard espiou a visita pelo olho mágico. Park limpava os tênis no tapete de lycra com as mãos para trás, sempre passando a imagem de bom moço.

— E aí, Parkie? — disse Beau ao abrir a porta.

— Oi. Eu só queria saber como chegar ao Centro de Ciências. — falou cautelosamente, analisando sua expressão com cuidado.

— Como assim? Fica a dois quarteirões da sua casa. Teto redondo, paredes espelhadas, tem uma placa gigante neon escrita ‘‘Centro de Ciências’’ e embaixo ‘‘show de lasers às sextas, 21:00’’.

Park deu uma risada nervosa.

— Você tá bem, cara? — Beauregard se apoiou no portal. — Quer entrar? O meu irmão tá aqui. Lembra do Ben?

— Ah... Não, eu... Tô apressado, sabe? Hã, eu também vim aqui te dizer uma coisa. — umedeceu os lábios. — Um dia desses, você me falou sobre uma garota que roubou a sua camiseta da Sonic Youth.

— Falei, é?

Beauregard cavucou em sua cabeça a imagem de uma garota vestida em sua camiseta favorita. Não encontrou nada.

— Sim. Você não se lembra?

— Não.

— Cara, você é muito esquecido. Enfim, eu acho que vi ela hoje.

— Legal.

— Ela meio que se parece com a Martha Plimpton. Careca, né? E bem ameaçadora.

— Que estranho. Quer entrar? A Darcy fez um tiramisu que deve tá uma delícia.

— Parece tentador. Mas eu tenho que ir. Tchau.

— Ei, espera. Era por isso que você veio aqui?

— Hã, sim. — Park segurou a maçaneta de acrílico e puxou-a. — Tchau.

Beauregard se defrontou com a porta fechada no segundo seguinte. Havia um porta-casacos de porcelana pregado na madeira de ipê. Ele nunca o notara. Estava prestes a se aprofundar na análise da origem daquele porta-casacos quando ouviu um pigarreio atrás de si.

— Quem era? — questionou Benedict.

— Park. Irmão da Rae. Acho que vocês já se conheceram, né? Eu montei uma banda com ele na oitava série pro show de talentos e você foi. Lembra o nome do grupo? Era o nome de alguma comida do Taco Bell... Fiery Burritos!

— Você ainda é amigo dele?

— Sim. Agora ele não tá andando tanto com a turma.

— Você é amigo dele? — Benedict carminou, desorientado.

— Você é surdo?

Benedict afundou as mãos no cabelo rufo.

— Merda. — bufou.

***


Finn comprara uma camiseta especial para aquela ocasião. Colocou um boné vermelho enviesado e cortou os elásticos que sua mãe costurara em uma calça (de modo que ele pudesse usá-la à medida que fosse crescendo), para que ela ficasse caída e expusesse um terço da sua cueca preta. O toque final (o decisivo, aquele que o permitiria se camuflar no show de lasers) foi o cigarro atrás da orelha.

O sr. e a sra. Swanson já descansavam em sua cama àquela hora. Experimentou descer a escada pelo corrimão — uma perna de cada lado e torso junto da superfície metálica — mas acabou tombando para a direita e rolando pelos degraus.

— Droga. — praguejou enquanto arrumava o boné (não poderia ajeitá-lo tanto; tinha que parecer despojado, indiferente).

Levou a mão para atrás da orelha para verificar se o cigarro continuava ali. Não encontrou nada além de sujeira e restos de creme capilar.

— Ah não. — se a sua mãe encontrasse um cigarro ao pé da escada, piraria.

— Procurando isso?

Finn viu coturnos pretos e desamarrados. Meia arrastão, polainas cobrindo os calcanhares, minissaia plissada de couro. Top listrado. Colete rosa berrante. Unhas postiças longas, brincos de plástico, camadas de anéis de pedra falsos cobrindo os dedos. O cigarro amassado estava sobre a palma de sua mão, revestida por uma luva sem dedos.

— Audrey, pra onde você vai fantasiada de Madonna?

— Deus, Finny, você não sabe o que os cientistas falam sobre nicotina?

Sua irmã mais velha havia contornado os olhos com lápis vermelho, deixando-a com uma cara mais maldosa do que o normal.

— Me deixa ir. A Rae vai passar aqui...

— A Rae? — ela fez um muxoxo com os lábios escarlate. — Sua namorada?

— Eu odeio você, porra. Me dá isso.

— Não.

Finn rastejou até a sala, com o piso rangendo sob os seus joelhos.

— Você não vai querer o seu cigarrinho? Deus, o papai vai ficar louco.

— Eu peguei do porta-luvas do carro. E agora o cigarro tá na sua mão, otária.

Após anos de convivência com Audrey, ele havia finalmente entendido como ganhar alguma coisa sua de volta. Ao invés de protestar ou xingar, mostrar-se desinteressado a faria instantaneamente perder o entusiasmo em atormentá-lo.

— Não, eca! — e arremessou o cigarro nele.

Finn o botou no bolso da calça, levantou-se e saiu pela porta da frente. A aragem noturna chicoteou seu rosto e ele inalou o curioso odor rupestre que pairava sobre o concreto da rua. As loniceras exuberantes de sua mãe balançavam no jardim e entre elas, avistou a silhueta de Raven sentada sobre um vaso virado de ponta cabeça.

— Rae, eu tô pronto. — chamou ele.

Ela se virou para ele, com os olhos alarmados. Um manto nepalês, que trazia a ilustração de uma mulher segurando a cabeça decepada de um leão, velava seus ombros ossudos. Raven havia alisado os cabelos com ferro de passar roupa e pintado suas pálpebras com sombra laranja. Brincos de aranha pendiam dos lóbulos de suas orelhas. A camiseta que vestia tinha o famoso anúncio feito por Barbara Kruger, ‘‘Seu corpo é um campo de batalha’’, mostrando a fronte polarizada de uma moça bonita dos anos 50.

— Vamos, então.

Eles andaram de braços dados sob os postes de luz oscilantes. Raven exalava um perfume cítrico, diferente daquele que habitualmente ficava impregnado em suas roupas (incenso de lavanda, pelo que ele lembrava).

— Mais rápido, Finn. — ela o puxou para frente.

— São 20:45 ainda.

— Exato. Quase escurecendo. E ainda tem o assassino, lembra?

— Já tá escuro, Rae. E eu acho que esse serial killer já se mandou. Faz quanto tempo que não encontram outro corpo? Duas semanas? — ele notou o seu semblante entristecido. Meteu a mão no bolso e tirou o cigarro de lá. — Olha, trouxe isso pra você.

— Sabe, garotos costumam dar flores para garotas, não cigarros. — zombou ela.

No entanto, Raven continuava desconsolada. Havia recolhido uma lonicera (se a sra. Swanson houvesse a flagrado no ato, teria a expulsado da casa) do jardim. Finn, delicadamente, pegou a flor de suas mãozinhas graciosas e a colocou atrás da orelha dela. Raven, tendo outra ideia, pôs o cigarro quase partido ao meio atrás da orelha dele.

— Mas você tá certa. É melhor a gente apertar o passo.

Os dois correram por um quarteirão, de mãos dadas e narizes avermelhados em virtude do vento gélido contra as suas faces. O manto esvoaçava e trêmula atrás de Raven, propagando a sua essência pela atmosfera. Finn tentava manter a calça na altura da cintura, entretanto ela tornava a cair até o fim das nádegas, e ele torceu para que a amiga não notasse.

— O Teddy e o Percy tão lá! — ela apontou para duas figuras debaixo da placa luminescente do Centro de Ciências.

Percy McKiddie usava a camiseta do álbum ‘‘The Dark Side Of The Moon’’ e um boné branco virado para trás que ocultava seu cabelo negro oleoso. Teddy Turner era um indivíduo curioso porque oscilava entre duas aparências. Um dia, estava galanteador, saudável e sorridente em suas roupas folgadas; o deleite das garotas, o sonho inalcançável das mulheres e o objeto causador de inveja nos garotos. Contudo, no outro dia, Teddy estava cansado, pálido e distante, parecendo um junky aidético com o cabelo cor de rosa característico sob a touca preta. E naquela noite, ele suava frio e suas bochechas e seus olhos pareciam mais encovados.

— Oi. — saudou Raven.

— Ei, Rae Rae. Gostei desse seu manto. Da hora. — Percy a cumprimentou apertando seu nariz. — E aí, Finny?

— Cadê a Gretel? — indagou ele.

Raven apertou um pedaço do manto com força, enterrando as unhas no tecido espesso.

— Eu não sei, por que você não vai procurar ela? — sugeriu ela impetuosamente.

— Boa ideia. — retorquiu ele, não percebendo a ironia implícita em sua fala.

Finn se distanciou e Raven o vigiou até que ele entrasse dentro do Centro. Teddy sentou de pernas cruzadas no chão e começou a arrancar tufos de grama, do jeito que um bebê bisbilhoteiro e entediado faria. Sua testa macerada luzia sob a luz lunar. Ela se agachou junto dele.

— Teddy, você tá bem? — acariciou seu ombro.

— Tudo bom, tudo bom.

Uma linha de saliva escorreu do canto de sua boca e viajou até seu pescoço.

— Quer pipoca ou alguma coisa?

— Me traz mais. — agora Teddy se balançava para frente e para trás, com terra atrás das unhas e grama úmida grudada em suas mãos.

— Mais do quê? Olha, eu vou te trazer água, pode ser?

— Eu vou contigo, Rae. — Percy estalou os dedos diante de Teddy. — Ei, cara, fica aí que eu já volto.

Eles adentraram no Centro e um fulgor dourado queimou as retinas de Raven. Percy discretamente tirou um maço de dinheiro de dentro da calça. Ambos se dirigiram até o balcão de lanches num sossego embaraçoso.

— Vai querer alguma coisa? — questionou ele polidamente.

— Não, obrigada. O que o Teddy tem?

Percy suspirou, como se já tivesse explicado o fenômeno que Teddy Turner era milhares de vezes.

— Bom, ele tem seus dias. Geralmente acontece quando a Gretel dá piti. Ninguém a suporta, pra ser bem sincero. E o Ted recorre para outros métodos, entende? — ele a puxou para que os dois entrassem na fila.

— Eles brigam quantas vezes por semana?

— Ninguém tá contando. — murmurou distraidamente enquanto lia o menu. — Mas se eu for arriscar, chutaria que pelo menos três vezes por dia. Ainda bem que eles se amam. Ou é isso o que dizem. Ai meu Deus, eles têm nachos aqui.

Havia uma menina na frente deles, que apoiava seu corpo acriançado sobre o balcão e em sua pureza tenra, perguntava ao atendente se conseguiria comprar uma barra de chocolate de 2,50 dólares com vinte e cinco centavos. E o atendente, já impaciente, explicava pela terceira vez que com aquela moeda ela só poderia obter um brinde (a menina, no entanto, teria a sorte de escolher entre um mini telescópio e uma cartela de adesivos de estrelas alegres).

— Eu odeio crianças. Sério, poderia matar todas elas. — resmungou Percy.

Sistematicamente, o cadáver de Peggy Ryan pipocou em sua mente. Olhos vesgos, tutu arriado, sapatilhas encardidas de terra, sangue seco nos ouvidos. Raven fingiu se entreter com o menu de lanches. O rosto decomposto da garotinha morta a espiava atrás das máquinas de refrigerante.

— Eu vou querer uma água, uma Coca-Cola grande, Twizzlers, nachos (não esquece o creme, hein?), pipoca... Ei, Rae, você tem certeza que não quer nada? — Percy requiriu seu pedido no instante em que a menina deixou o balcão com os adesivos grudados nas bochechas enrubescidas e na barriga proeminente da infância.

— Não, obrigada.

O atendente colocou a garrafa d'água e o pacote de Twizzlers sobre o balcão de mármore e sumiu para encher o copo com refrigerante.

— Ei, Rae.

Ela se virou para se defrontar com Floyd e seus cílios claros batendo contra a franja. Ele usava uma regata branca lisa e seus braços eram um degradê que começava num tom quase acobreado e que chegava à seus ombros num branco amarelado. Floyd raramente deixava muita pele exposta. Raven conseguia distinguir os ossos de seus ombros; os acrômios pontudos, as clavículas curvas, os úmeros sob a pele frágil.

— Oi. Que horas são? Acho que já vai começar.

— Rae, vai levando a água pro Ted porque eu acho que vai demorar aqui. — solicitou Percy.

Raven pegou a água do balcão e enganchou o braço de Floyd com o seu.

— Só precisamos levar isso pro Teddy porque ele tá passando mal. — explicou.

Raven abriu caminho até a placa luminosa, porém Teddy parecia ter se dissipado na brisa veranica. Floyd perguntou se ela queria procurar por ele. Todavia, os dois duvidavam se o desaparecido gostaria de ser encontrado.

— Vamos entrar, então.

Pagaram cinco dólares por cada ingresso (Floyd guardaria o dele para sempre, dentro de uma caixa de algodão vazia) e entraram num lugar escuro, com as vistas nubladas pela fumaça de dez cigarros acesos. Sentaram-se no fundo, deitaram suas cadeiras e relaxaram seus pescoços quando ‘‘Comfortably Numb’’ começou a tocar. Seus batimentos cardíacos entraram em sincronia com a música. O suor da garrafa d'água umedecia e gelava as pernas de Raven. Ela viu o rosto de Floyd ficar azul sob as luzes dançantes e suas pupilas refletiram a constelação de Orion.

Floyd estava tão preocupado com a gaze deselegante enrolada em seu antebraço, com a regata que deixava seus braços escanzelados à mostra, com a sua maçã de adão subindo e descendo em sua garganta e com o seu perfil — aquele pelo qual ela frequentemente torcia o pescoço para olhar —, que ele julgava ser desinteressante, que nem percebeu quando ela segurou a sua mão. E estava tão perturbado com o formigamento nos dedos, com a coceira em sua palma e com o suor que brotava em sua testa, que levou um susto quando Raven encaixou sua cabeça em seu pescoço. O frescor de morango em suas narinas, os anéis de metal roçando seus dedos; Floyd não desgrudou seus olhos dela.

— Por que você tá me encarando?

— Bom, você é melhor do que Pink Floyd.

— Essa foi definitivamente a coisa mais legal que alguém já disse sobre mim.

Era sexta-feira e todos estavam apaixonados, embora as nuvens ominosas parecessem estar planejando algum sacrilégio.

E sob essas mesmas nuvens, escondido embaixo da sombra de um olmo, estava o corpo de Gary Austin, pedindo para ser encontrado. A cabeça raspada acentuava seu aspecto cadavérico, os olhos estavam abertos em espanto e a camiseta laranja desabotoada revelava a assombrosa entrada para as suas entranhas, um buraco perfurado a força por algo pontiagudo. O Sinistro confirma suas predições, o Arcanjo Gabriel sopra sua trombeta e deuses dançam em seus próprios corpos.


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Notas finais do capítulo

espero que tenham gostado e desculpe por terem perdido tanto tempo lendo essas 6.000 palavras
comentem!!
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