Povoando Suas Páginas escrita por Daniela Mota


Capítulo 16
Capítulo 15 - Reviravolta do 2º ato


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Melanie PDV

Se eu estivesse escrevendo um livro, ou seja, se essa ideia de escrever cada dia não fosse uma metáfora para o meu tédio em relação a viver, e se eu conseguisse um público que lesse isso – o que seria a parte mais difícil –, esse seria o momento em que as pessoas iriam revirar os olhos, e pensar: “Eu não acredito que essa burra ainda gosta dele depois de tudo que ele fez”. Talvez elas tivessem vontade de desistir da história, ou talvez elas despertassem uma curiosidade porque não odeiam 100% o Dobrev. Até eu tinha que admitir que não o odiava 100%. Há algo nele que faz querer mata-lo sob tortura longa, mas não infinita. Que faz querer enterrá-lo na praia só até a cabeça para jogar xixi na sua cara, e não enterrá-lo por inteiro. Eu esperava que meu hipotético público despertasse curiosidade para ver o que aconteceria a seguir. Que sou burra, tenho certeza. Ele ainda me atrai pela aparência, e também quando apela para a escrita. Mas não sei se agora é o título que me cabe, não nesse contexto. Porque, pelo menos na minha definição, acredito que uma burra continuaria o beijando. Uma burra não balançaria a cabeça e empurraria com o dedo indicador um homem aparentemente perfeito como se não quisesse se misturar com aquele tipo. Uma burra não ignoraria os seus olhos azuis esverdeados cabisbaixos, e não zombaria internamente da cara dele de perdido ao ser rejeitado. Ela acreditaria que, pelo menos bêbado, ele era o príncipe que sempre sonhou. Mas eu só precisava de uma pequena dose de experiência para que a minha insanidade tirasse o disfarce de sobriedade, para que ela não tomasse o meu bom senso. Eu vivia um conto de fadas em minha mente. Mas esse tempo acabou. E não importava como era o contato com os lábios dele, numa continuação inusitada do meu sonho, só que sem o Obama. Parar aquilo não foi uma tarefa tão difícil quando pensei na consequência. E qual era a consequência? O tanque ia me atropelar depois, assim como no sonho. Um tanque chamado: Vai dar merda.

O que mais me intrigava era o fato dele me olhar em busca de respostas ao invés de tentar me agarrar novamente. Talvez a minha expressão deixasse claro para ele que não adiantava investir esforços.

–Você não... quer... me beijar? – ele perguntou, tropeçando nas suas próprias palavras. Era como se sua voz de canalhice, e a voz que decepção se misturassem a ponto de ser impossível de distinguir qual era qual. Ele me encarava demais, e isso me deixava imensamente desconfortável. Não tinha ideia para onde ele olhava tanto. Deduzindo ser uma espécie de transe, respirei fundo e me desfoquei dele.

–Não. – eu disse, seca, enquanto ligava o carro.

–Por que? – ele perguntou com um tom mais baixo, porém ainda podia sentir as palavras tremendo.

Em busca de uma resposta melhor que o impulsivo “porque sim”, o deixei no vácuo enquanto me concentrava mais na tarefa de dirigir, ignorando a sua presença, assim como o cheiro de bebida que agora podia notar claramente. Aquelas ruas eram tão bem planejadas que chegavam a ser estranhas. As casas nobres eram extremamente parecidas, exceto pelas suas cores. Como se fossem construídas em photoshop a partir de um único modelo. As casas deveriam ser construídas para que se viva nelas, não para serem olhadas. Cada rua tinha uma árvore. Uma devastadora imposição de controle sobre a natureza. Eu acho que alguém tem uma visão espacial crítica quando está concentrada.

–Sabe.... Isso nunca aconteceu comigo antes. – ele admitiu, ao fundo. Eu sabia disso, mas fiquei surpresa de qualquer maneira. Pude sentir um pesar desconhecido na sua voz, como se de fato estivesse triste pelo o que tinha acontecido. Ele tinha mais habilidades do que eu imaginava. Controlar o humor para conseguir o que quer deveria ajudar quando as palavras falhavam.

–Não pode ter tudo aquilo que quer. – eu disse, dando um sorriso amarelo.

–Mas esse é o problema.... Eu não tenho nada. – ele suspirou. Ok, isso era uma resposta inesperada. Recalcula a trajetória, Melanie, e ignora que essa foi a primeira verdade que já ouviu esses lábios professarem – Tudo que tenho é passageiro, tudo é efêmero.

–Não quero ser tida passageiramente, por isso não o beijei. – usei sua própria frase para justificar meu comportamento. Era uma boa técnica. Não deixava de ser verdade.

–Mas dizendo isso, esquece que a vida também é efêmera.... Efêmera demais para que percamos tempo escolhendo o que vai durar ou não. Até porque só saberemos se tentarmos. Eu posso te ter por uma noite na mesma chance que posso te ter para toda a vida. Eu posso fazer uns segundos durarem a intensidade de um infinito. O que importa é a maneira como conduzimos o tempo, e não a quantidade de tempo que conseguimos conduzir. – ele pontuou. Esse diálogo se diferenciava de todos que eu já tive com ele. Apesar de serem belas e verdadeiras palavras, eu simplesmente não conseguia afastar a ideia de que estava sendo manipulada mais uma vez.

–Momentos só valem a pena se forem fortes o suficiente para serem lembrados. Amanhã nem lembraria que me beijou. – eu disse. Talvez isso fosse a parte que mais me incomodava.

–Talvez eu viva como se cada dia fosse um infinito. No final dos meus dias poderei dizer que vivi todos com a mesma intensidade. Amanhã o cronometro zera, mas não sei se vou ser capaz de te esquecer. É muita informação para que minha memória consiga ignorar. – ele respondeu, enquanto brincava de tentar tirar o cinto. O que me intrigava é o fato de não apelar, de ter argumentos tão reflexivos. Tive que pensar muito para retrucar. Não conseguia parar de pensar na parte da sua fala que dizia que eu era “muita informação”... Como assim?

–O uso de belos pensamentos não justificam atitudes imbecis. – clichê, mas foi tudo o que eu disse. Me detinha agora ao contraste das luzes das ruas que passava. Mas não sabia bem se estava voltando pelo caminho certo. Havia acionado meu GPS para chegar ali, e agora, tendo conversado enquanto dirijo, parece que perdi a minha trilha de migalhas de pão de João e Maria.

–O uso de frases ensaiadas não deturpam as minhas intenções. – ele retrucou.

–Como que alguém pode mudar tanto ingerindo álcool? – essa pergunta era para mim mesma, mas acredito que eu tenha dito alto demais.

–Hoje eu escolhi para você a minha melhor máscara. – ele parecia se divertir de repente, acreditei ser efeito do álcool – Você age como se a vida fosse um teatro. Você não percebe que uma pessoa interpreta vários papeis se ela interpretasse todos perfeitamente. E, vendo de longe, era o que eu fazia. Então não sou um autor e ator, sou apenas um autor. De perto, eu sou os dois, e você me considera um péssimo ator, então dá ênfase nisso. Quando mostro que ainda sou o autor, você fica confusa e acaba cedendo em partes. – ele respirou fundo, e balançou a cabeça – Vou citar um exemplo para que entenda: Uma mulher que interpreta bem o papel de mãe, é uma mãe perfeita, perfeita ao ponto de não ter tempo para ser mulher. Mas quando, por um descuido, ela o faz mal, ela é uma mãe ruim. Ou seja, uma má atriz como mãe. Quando é perfeita nos dois papeis, ela é uma pessoa incrível. Interpreta tudo muito bem a ponto de não ser julgada como atriz em nenhum dos papeis. A questão não é usar máscaras.... É saber escolhê-las e conduzi-las para que ninguém as perceba.

Era assustador o quanto aquilo fazia sentido. A sua tão aparente sanidade quase me fez esquecer que na verdade eu estava conversando com um homem embriagado que de fato usava a sua melhor máscara. Eu tinha saído do papel de experimentadora para cobaia em questão de minutos. Era uma droga me sentir tão desvendável ao passo de que eu nunca sabia se uma característica era dele ou mera encenação.

–Talvez máscaras sejam apenas metáforas para conduzir o que seriam peças de teatro da sua cabeça à realidade. – concluí.

–Belo raciocínio. Por isso eu só era capaz de enxergar uma máscara em você antes. Você confundia peças de teatro com realidade. Porém ver a máscara que eu uso para conduzir minha realidade te deixou traumatizada. – ele falou, e o olhei de relance, os olhos pareciam felizes com a descoberta. Certo, isso estava ficando estranho.

Calei-me. Não sabia o que responder porque ele estava certo. Tão certo que nem mais tropeçava nas palavras de tão firmes que elas haviam se tornado. Consegui identificar um trecho na estrada, e respirei aliviada ao notar que eu não estava perdida. Não no sentido literal.

Aquela conversa era a mais sã que já tivemos, mas estava me deixando louca. Ele era um enigma, conclui. Um enigma mutável. Que dá pistas verdadeiras e falsas sobre si mesmo apenas quando a bebida lhe arranca a sobriedade, que contraditoriamente o faz parecer tão sóbrio. Será que esse era seu “eu” escondido, ao invés de um “eu” completamente novo? Aquilo martelou tanto o meu cérebro, que por um momento tive danos cerebrais graves. Infelizmente não tão graves para que eu pudesse enxergar da sua perspectiva, o que era uma merda porque já estávamos tão perto de não nos ver nunca mais, e eu não era capaz de deduzir nada.

–Estou confusa quanto a você... – tirei meu foco da estrada por uns segundos, e ele apenas apertava os olhos, como se já pudesse sentir os efeitos da ressaca.

–Não sou um enigma. – ele disse, como se lesse meu pensamento.

–E como explica o fato de eu não te compreender? – ergui uma sobrancelha, e pude ouvir uma risada gostosa ao meu lado.

–Está olhando sob a ótica errada, Mel. Desesperada à procura de clichês e reviravoltas do 2º ato. O bastante para acreditar em qualquer coisa que surja. – ele disse. Mais uma porra de uma verdade. Ainda não acreditava que soubesse meu nome. Talvez tenha associado à sua habilidade de reparar cor de cabelo.

–Quer dizer que sempre foi assim? – concluí, descartando a hipótese de folha de papel quase em branco.

–Não, eu não disse isso. – ele riu.

–Nada lhe aconteceu? – insisti.

–Acho que tem algo que te torna especial. Todo esse lance de tentar me desvendar, e pensar que eu não percebo que está tentando traçar um perfil meu que faça sentido pra você. – ele parecia sorrir.

–Não sei porque está falando isso. – ri de nervoso.

–Entendo que se assuste com a minha escuridão. Mas não com sua própria luz. – ele disse. Eu estava ficando ainda mais nervosa, e acabei por pisar fundo no acelerador. Era nisso que eu me metia tendo medo da escuridão dele e da minha luz: Numa droga de um meio-termo que me deixava confusa. Voltei novamente meus olhos à estrada, pedindo que ele não tivesse ainda me analisando – Tem uma coisa que eu não te disse ainda... Sabe como eu consigo escrever aquelas coisas? Eu... – os segundos pareceram passar mais devagar, quando vi algo se movendo na estrada que me fez pisar no freio bruscamente. Tudo que ouvi foi o barulho de algo se chocando. E não foi porque atropelei algo. Esse algo foi o Dobrev chocando a cabeça com o porta-treco. Não consegui identificar o que estava na estrada porque não estava mais ali, talvez meu subconsciente tentando fugir de uma análise, talvez um animal assustado demais para ficar parado na estrada. O cinto havia me salvado de bater a cabeça, mas o infame do Dobrev havia tirado o seu. Hoje ele estava com uma tendência fantástica à se machucar. Quase ri da situação, até perceber que ele não acordava, por mais que eu o cutucasse. Levantei a sua cabeça e vi sua testa ferida com o impacto. Será que ele morreu? Como é que checa mesmo isso? Droga, por que eu não prestei atenção nas aulas de primeiros socorros?

“Merda! Merda! Merda!” – continuei dizendo, mesmo percebendo que a Cece já havia atendido o celular.

“Melanie? O que houve?”

“Acho que matei o Dobrev.” – comuniquei.

“Você o quê?” – tentei dar uns tapinhas no rosto dele, e nada acontecia – “Eu não achava que esse jantar com ele era um plano de assassinato... Você tá brincando, né? Nunca conseguiu matar uma mosca na sua vida e atribui isso a ela ser profeta, como pode ter matado um homem?”

“Ele não acorda, Cece! Me ajuda!”

“Verifique o pulso. Coloque dois dedos a um dos lados da traqueia ou para o lado de baixo do punho no lado do polegar. Sinta o pulso.” – Isso é hora de desespero, não de ser nerd!

“O que?”

“Tente ver pelo coração então, Melanie. Não vai me contar o que aconteceu?”

O coração, vamos ver pelo coração... O seu ritmo cardíaco estava anormal, se ele tem um ritmo cardíaco, significa que ele está vivo, estar anormal significa que talvez ele possa morrer, mas só talvez... Nossa, dava para sentir mais do que o coração colocando a mão em seu peito. Certo, Melanie, certo. Agora como o Dobrev vai voltar para casa? Vou fingir que ele é um inválido, colocar ele numa cadeira de rodas e mandar colocá-lo no avião? Como vou explicar no hotel que vou hospedar alguém desmaiado, mas para ele não se preocuparem, porque ele é famoso? Droga! Isso! Posso inventar que ele tem problema com drogas. E se ele acordar só amanhã porque misturou desmaio com ressaca e capotou de vez? Posso simplesmente jogá-lo na estrada para ele ser estuprado por coiotes? Mas a culpa foi em parte minha. Só tem um jeito de resolver isso...

(...)

Era 1 da manhã quando cheguei na casa de Cece. Não buzinei. Toquei a campainha repetidas vezes. 5 segundos e ela ainda não havia aberto a porta. Não, eu não estava impaciente. Igual como também não estava louca quando vim tentando conversar com ele todo o resto da estrada, na teoria que sendo tagarela a sua alma era obrigada a ficar. Respirei de alívio quando Cece abriu, trajando apenas um roupão, com olhos avermelhados e cara de preocupada. Talvez tenha sido porque naquela hora a deixei na linha sem querer, e não atendi as outras ligações temendo ser a polícia.

–Por que não me retornou? Que diabos aconteceu? – ela perguntou, um tanto irritada pela minha atitude, e apreensiva pela mesma coisa – Você não está presa, isso significa que ou sabe esconder um corpo muito bem, ou nada grave aconteceu... Está tarde! Afinal, o que tem na cabeça para dirigir à essa hora... Poderia ter acontecido algum acid... Mel, foi isso que aconteceu? Vamos, entre!

–É que... não é só eu que... É difícil explicar, preciso da sua ajuda. – eu disse, e rapidamente os seus olhos focaram no meu carro, parado a pouca distância de onde estávamos.

–Não me diga que aquele canalha está ali dentro. Só pode estar brincando. – ela disse, dando um tapa na sua própria testa. Apenas neguei com a cabeça. – Por que diabos o trouxe?

–Ele não está em condições de pegar um avião. Acho que está desmaiado, talvez em coma...

–Deixe-o num hotel então. Por que trouxe esse canalha para cá? Mel, ele não é problema seu. Deixá-lo na estrada seria razoável. Para começar... porque deu carona à ele? – por um momento ela parecia mais confusa que eu, mas só parecia.

–Ele insistiu muito, e... – ok, eu era burra – Por favor, me ajude a carregá-lo. Ele só precisa de um curativo e uma noite de sono. – pedi, mas ela parecia inflexível.

–Está me pedindo para ser sua cúmplice numa tentativa de quase-assassinato contraditoriamente não proposital, num resgate num ambiente não médico, quando este está em estado vulnerável e incapaz, de um homem estupidamente babaca que nada em dinheiro que deve ter um rastreador no orifício anal e que te jogaria na estrada sem hesitar se tivesse a mesma oportunidade? – ela questionou, e isso além de me deixar mais nervosa, me deixou prestes a desistir.

–Sim.

–Ok. – ela sorriu, abriu a porta do meu carro, e começou a puxar o Dobrev pelo pé para fora dele.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Perdão a demora... Foi algo de fato complicado de escrever, mesmo sendo uma ideia que tive desde que pensei na história. Voltei da viagem um tanto turbulenta (não superei ainda huahua) para que pudesse sair algo que prestasse, mas compromisso é compromisso. Espero ter dado pro gasto.
Agradeço à quem continua acompanhando...
Beijo!



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