O Tempo que Leva escrita por Bruna Guissi


Capítulo 3
Estarei te Observando


Notas iniciais do capítulo

Terceiro dia pessoal! Esse aí está comprido!
Espero que gostem, Mikaela anda um pouco surtada!
Every breath you take – The Police



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O rádio relógio tocou cedo. Acordei sem querer realmente sair da cama, me lembrando da noite anterior. Ah!, que loucura!

Não consegui segurar o sorriso de satisfação que invadiu meu rosto. Abri os olhos para a janela, e o dia estava mesmo bem bonito. Suspirei novamente. Eu tenho uma enorme mania de estragar meus dias eu mesma. Ah, tem certos sonhos que eu prefiro não sonhar.

Phelipe. Fechei os olhos novamente, e o rosto dele apareceu ali, nitidamente, para que eu sentisse falta. Consigo lembrar do seu rosto com muitos detalhes; os olhos azuis penetrantes, o cabelo loiro claro e aquela maldita mania de sorrir como se o mundo pudesse esperar por ele.

Since you've gone I've been lost without a trace

(Desde que você partiu, eu estive perdido, sem rastros para seguir)
I dream at night I can only see your face

(Eu sonho a noite, e só consigo ver seu rosto)

–Ugh! – levantei da cama, desligando o rádio sem prestar muita atenção na música que tocava.

Hoje era dia de treino. E eu estava mesmo precisando descarregar um pouco da tensão, frustração, irritação,... enfim! Precisava descarregar! E nadar sempre me deixava exausta, então não tinha tempo de sonhar sonhos imbecis. Caía naquele sono profundo de quem deixou o corpo sem energia nenhuma.

Respirei fundo e fui para o banheiro. Prendi o cabelo em um coque quase na base da nuca, mas sempre tinha uma ou outra mecha rebelde que se soltava. Analisei uma delas por um instante. Meu cabelo já voltara ao tom natural, um castanho escuro cor de chocolate amargo (meu favorito); parei de pintar há algum tempo porque ele estava ficando seco, mas não sinto falta da cor. Costumava deixar a cabeleira numa cor de ruivo vivo, e Phelipe gostava muito. Chegou a reclamar quando parei de pintar e substituí a cor por um tonalizante da cor natural.

Dei de ombros. Vai ficando mais fácil e mais difícil ao mesmo tempo. Sabe, esquecer?

Fui para o quarto e separei as coisas para tomar banho na academia. Comi algo rápido da geladeira e fui para a porta da sala. Coloquei um chinelo que ganhei de presente da minha irmã no meu último aniversário e saí do prédio.

Dessa vez não precisaria pegar o metrô; a academia era a duas quadras de distância, então caminhei pelo sol da manhã, com o óculos escuro protegendo a vista. Estava na esquina da academia quando ouvi um “HEY” sonoro chamando alguém. Virei para trás, certa de que era comigo. Várias pessoas passavam pela rua, de carro, moto ou de bicicleta pela ciclovia, mas não vi ninguém que conhecia. Dei de ombros e continuei andando.

Cheguei na porta da academia, e passei o cartão para entrar. Me dirigi aos fundos, onde estavam as piscinas, e o vapor da qual estava tendo aula de hidroginástica me sufocou. Odeio nadar em água quente. Seu corpo fica mole, sua pressão cai e você não consegue fazer metade do esforço que faria numa piscina gelada.

Entrei no vestiário vazio e troquei de roupa, colocando um maiô simples. Passei uma água no corpo antes de colocar a touca e os óculos de natação, e saí para o lado da piscina de treino.

Cumprimentei a treinadora antes de mergulhar, afundando naquela água fria. Ah! Que delícia! Sério, experimenta mergulhar na água fria num dia quente, quando o vapor da piscina de hidroginástica invadia o lugar. Era quase orgásmico.

Fiquei uma hora dando braçadas violentas na água, e quando terminei, estava mole de cansaço. E faminta! Refleti sobre o que almoçaria enquanto tomava banho, deixando a água com alta pressão cair no corpo, como uma massagem. Decidi ligar para Eileen.

Troquei rapidamente de roupa, e saí quase fugida da academia. Estava muito abafado lá dentro, e lá fora estava um sol do cacete. Já era perto das onze, e eu não costumo usar protetor solar (não façam isso em casa). Deixei o cabelo solto para secar, e coloquei de volta o óculos escuro no rosto.

Voltei andando vagarosamente, como se viver exigisse muito mais energia do que eu tinha para oferecer, e ela foi toda doada ao ato de “nadar até afogar as mágoas”.

Cheguei em casa e me joguei no sofá. Tirei o celular do bolso e disquei o número da Eileen. Após dois toques ela atendeu.

–Oi, mika! – disse pelo celular, com a voz animada – Tudo certo?

–Tudo sim, e aí? Já está em horário de almoço? – perguntei emendando. Ela estava fazendo um estágio de férias num laboratório de alimentos, e poderia estar ocupada.

–Não, mas saio em quinze minutos! Quer almoçar? – adivinhou ela.

–Quero sim, estou morta de fome. Você vem pra cá então? – já estava decidindo o que fazer, quando ela falou:

–Só se fizer aquele macarrão, Mika. Sabe, aquele que eu gosto? – a voz dela dizia algo entre súplica e chantagem. Eu ri.

–Claro que sim! E vou fazer uma carne grelhada também, só pra você vir aqui me amar, pode ser? – ofereci.

–Nossa, chego aí em vinte minutos. – disse desligando o telefone. Dei risada.

Mandei uma mensagem de texto para Avalon, que respondeu estar ocupada. Soltei um muxoxo.

Eu não sei até que ponto trabalhar a noite pode ser ruim, mas tem suas vantagens. Posso frequentar a faculdade durante o dia, e fazer milhares de outras coisas. Agora nas férias ficava até meio perdida com todo esse tempo vago, mas sempre acabo arranjando alguma coisa pra fazer.

Comecei a preparar a comida. Comecei com o molho de tomate, simples, mas ricamente temperado (as visitas ao Mercado da Cidade sempre rendem muito), e coloquei a água do macarrão para ferver. Temperei a carne e terminei de cozer a massa, o suficiente para três ou quatro pessoas normais, mas que costumava sobrar muito pouco quando eu e Eileen resolvíamos fazer alguma refeição juntas.

Já teria o almoço do dia seguinte, se sobrasse. O molho estava pronto, e eu já colocava a carne para grelhar quando o interfone tocou. Mandei que o porteiro deixasse subir, e Eileen entrou sem bater. Tirou os sapatos e pendurou o jaleco em uma das alças no pequeno corredor de entrada, e então veio para a cozinha.

–Ai meu Deus, que cheiroso! – disse fazendo uma careta faminta, onde mordia os lábios e arregalava os olhos. Soltei uma risada gostosa.

–Ponha os pratos. – pedi pra ela, que já arrumava o conjunto americano em cima do balcão.

Eu até tinha uma mesa de refeições, mas o balcão e seus bancos altos eram muito mais aconchegantes, e permitiam que a gente conversasse com mais facilidade. E quando vinham muitas pessoas acabávamos por comer em volta da mesa de centro da sala, o que deixava a mesa para ocasiões especiais e família. Ou quando tivesse comida demais para ser posta nos outros dois lugares.

Servi os bifes generosos, e depois servimo-nos da comida. Coloquei uma garrafa de cerveja preta na minha frente, e Eileen serviu-se de um refrigerante em cima da pia, por causa do estágio naquela tarde.

Conversamos sobre pouca coisa, contei sobre o ocorrido no restaurante e não muita coisa mais, mas o silêncio sempre fora tranquilo. Quando terminamos, começamos a juntar as coisas na pia, e ela se ofereceu para lavar os pratos, dizendo que qualquer dia teria de me pagar um jantar a luz de velas para compensar os almoços.

–O que vai fazer essa noite, depois do trabalho? – perguntou ela, ensaboando um copo. Eu franzi os lábios e encarei as costas dela.

–Não pensei em nada. Talvez dormir, por quê?

Ela enxaguou a louça antes de virar-se para mim secando as mãos em um pano de prato.

–É que tem essa banda que vai tocar no Pub do centro hoje, e a entrada é franca. – disse ela com as sobrancelhas erguidas, encostando-se na pia agora limpa – E aí?

Eu guardava o jogo americano na gaveta quando respondi:

–Mas não vai estar muito cheio? – perguntei – Você sabe, coisa de graça atrai uma galera. – disse fazendo bico de menosprezo.

Ela revirou os olhos.

–Hoje é quinta! Pode até encher no Happy-hour, mas amanhã pessoas que ligam para os empregos trabalham, e fazem questão de dormir. E eu e Avalon já arrumamos as coisas nos nossos empregos. Ela não vai trabalhar amanhã de qualquer jeito, e eu não preciso ir na parte da manhã. Então? – ela me olhou com aquela careta de expectativa, e eu acabei concordando.

–Mas se a banda for ruim, você vai ter que pagar a minha tequila para aguentar a noite. – avisei. Ela riu, e jogou o pano que tinha nas mãos em mim. Na minha cara, na verdade.

–Agora eu tenho que ir. Ava e eu buscamos você na porta do restaurante. – disse pegando suas coisas na beira da porta, colocando o tênis no pé – Até!

Fiquei observando ela entrar no elevador antes de fechar a porta. Voltei para sala, repentinamente sentindo aquele sono pós exercício. Decidi dormir ali no sofá mesmo, para que não ficasse acomodada demais e esquecesse da hora. Não seria muito difícil, eu mal dormi.

Quatro em ponto acordei, sentindo aquele sabor de nhaca na boca quando se dorme de tarde. Fui para o banheiro do quarto tomar um banho, quando notei uma mensagem de Ava no celular.

“Fiquei sabendo do restaurante! Vai receber uma resposta hoje, não é? Não importa, sei que vai dar tudo certo! Vamos comemorar, belezinha! Beijos – Ava.”

Joguei o celular na cama, sorrindo. Tomei um banho bem tomado; saí do banheiro com uma toalha na cabeça, vestindo calcinha e sutiã. Parei na frente do espelho um momento; olhos de quem não dormiu tão bem assim. Hoje usaria aquela maquiagem que Sansa me dera, até porque veria as meninas depois. Fiz uma trança antes de começar a me arrumar.

Ela me ensinou uma sombra que dava para fazer com pouca coisa, e fiquei na escura mesmo, para combinar com o uniforme. Vesti o colete por cima da camisa branca, e arregacei as mangas até o cotovelo para ficar mais confortável. Por isso gosto tanto do uniforme de trabalho; a calça social dava um ar chique, assim como o colete e a gravata. Poderia quase ir a uma festa importante, só faltava um paletó.

Só parecia uniforme quando a gente colocava o avental preto na cintura.

Olhei para o resultado no espelho: fazia algum tempo que não usava maquiagem, mas ficou bom, combinou bem com o traje, no fim das contas.

Já era quase cinco horas quando saí de casa, quase correndo para o metrô. Cheio, como sempre. Desci perto do restaurante, uma rua pra baixo, como fazia seis vezes por semana. Mal posso esperar para entrar no restaurante e ouvir o que Marion tem a dizer. O que será que aconteceu ontem? O lugar estava tão movimentado que não pude parar para me preocupar com isso na hora. Já hoje parecia que tinha uma doninha saltitante no meu estômago.

Entrei pelos fundos dessa vez, deixando minha bolsa no armário. Peguei um avental preto na estante e amarrei na cintura. Quando reuni coragem suficiente para sair de lá, Marion estava me esperando, com a expressão séria.

Sabia! Alguém deve ter cuspido minha comida!

Respirei fundo, esperando que dissesse alguma coisa. Ele continuou me encarando em silêncio por um tempo.

–E então?? – perguntei por fim, cansada do suspense. Ele soltou uma risada frouxa, que fez seu queixo múltiplo balançar.

–Você não é Sous-chef. Não conseguiu o cargo. – disse ele, com o olhar gentil. Senti meus ombros descerem uma distância parecida com trezentos metros. O que eu esperava? Sous-chef é demais! Nunca mais vou ter uma chance de cozinhar em um restaurante como esse na vida! – Mas..! – disse ele, quando eu já estava virando para o salão, sentindo como se não desse para ficar pior.

Olhei pra ele pedindo misericórdia. Não piore meu dia, Marion. Eu ainda gosto de você. Ainda.

–Você vai poder cozinhar três vezes por semana, como um membro da equipe. Martin vai assumir o cargo de Sous-chef, e você vai poder cozinhar. Aqui. – disse com um sorriso cheio de expectativas.

Eu o encarei boquiaberta por uns instantes. Eu não posso acreditar! Meu rosto se encheu de uma esperança que eu não costumo me deixar sentir.

–É verdade? – perguntei com a voz baixa, com medo de acordar do provável sonho no qual estava. Era bom demais para ser verdade! – Quer dizer, eu vou poder cozinhar?

–E vai receber pelos dias na cozinha. – respondeu animado – Senhor Pierre gostou dos seus pratos. – disse baixinho, como um confidente – Vai cozinhar de segunda, terça e quarta-feira, quando temos menos movimento, assim eu poderei te acompanhar. Continuará servindo nos outros dias e continuará tendo uma folga por semana, menos nesses três dias, combinado?

Eu sorri maravilhada. Sim! Claro que sim! Concordei vigorosamente com a cabeça, o que o fez rir. Marion colocou a mão suavemente na minha cabeça, como que fazendo um cafuné.

–Eu disse que daria conta, não disse, mon apprenti*? – e me deixou ali.

Levei alguns minutos para absorver a informação, e então fui para o salão do restaurante. Servi animadamente por horas. Achava que nada poderia estragar meu humor naquela noite, nada mesmo! Não poderia estar mais errada, não é?

Perto das dez, quando o movimento diminuiu, ele entrou no restaurante. Ah, filho de uma cadela manca! O que é que você faz aqui?!?

Estaquei no lugar, sem saber o que fazer. Ele estava com um grupo de colegas do trabalho, lembro-me de reconhecer alguns rostos. Ele pareceu sentir meu olhar perfurando sua nuca, por que não levou nem um instante para me localizar no restaurante.

Ah, e adivinha? Sentou numa das mesas que EU teria de servir. HAHAHAHAHA, NÃO SÉRIO, QUE KÁRMICO. Coloquei o sorriso mais podre do universo no rosto, não que eu conseguisse fazer melhor, peguei um punhado de cardápios e fui até a mesa. O gerente já estava reclamando que eu ainda não havia pegado os pedidos.

Every move you make

(Cada movimento que você fizer)
Every vow you break

(Cada voto que quebrar)
Every smile you fake

(Cada sorriso que forçar)
Every claim you stake

(Cada pedido que fizer)
I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

–Boa noite. – falei com voz de secretária eletrônica – Vou servir vocês hoje. Desejam alguma bebida enquanto decidem o que vão querer? – e sorri novamente, sentido pregos nas bochechas.

Parecia que ele não esperava que fosse eu a servir sua mesa. Notei um olhar perdido no rosto dele, enquanto tentava parecer tranquilo. Relaxa queridinho, não vou cuspir na sua comida. MAS NÃO É POR FALTA DE VONTADE, SEU PUTO! Por que justo este restaurante, em nome de todos os santos que a igreja católica criou?! Ele sabe que trabalho aqui!

Apenas um dos seus colegas pareceu me reconhecer, e franziu o cenho alguns segundos, até perceber quem eu era. A compreensão inundou o rosto do dito-cujo, que não conseguiu segurar o sorriso.

–Mikaela, não é? – disse sorrindo pra mim, me avaliando dos pés à cabeça – Como vai você? – perguntou simpático, fazendo Phelipe abaixar um pouco os olhos.

–Muito bem, obrigada. Vão pedir algo? – Rapaz, é bom que você pare essa gracinha bem aí, que posso resolver que meu emprego não é tão importante assim. Meu sorriso deveria estar sinistro, porque ele pareceu perceber o corte, e voltou os olhos para o cardápio.

Um outro colega pediu duas garrafas de vinho tinto, e pediu um prato italiano que não sei como lembrei o nome na hora de mandar preparar. Os colegas acompanharam o pedido, e eu me retirei para pegar as bebidas.

Quando voltei da adega, notei que ele não estava na mesa. Não sei se devo ficar aliviada ou não, mas segui para o grupo, servindo as taças, inclusive a dele. Dane-se que não está aqui, não quero ter que vir depois! Os rapazes agradeceram, e eu me retirei para trás do balcão, esperando os pratos deles saírem.

Adivinha, não, sério, A-D-I-V-I-N-H-A quem estava ao lado do balcão esperando para falar comigo? Não consegui evitar encarar ele com certo espanto. Depois do nosso último encontro, não achei que fosse querer me ver. Disse algumas coisas para ele, das quais não me arrependo, que pareceram ofendê-lo no dia.

Agora ele me olhava com aqueles olhos azuis absurdamente claros com uma cara meio sem graça, como quem diz “Putz, meu cachorro mijou no seu tapete! Foi mal, ein!”.

–Mika... – começou ele.

Mikaela. – corrigi friamente. Ele notou meu tom, e suavizou a expressão.

–Mikaela, – recomeçou ele, com a voz suave, como se olhasse para uma criança tendo acesso de raiva e achasse aquilo adorável. Cadê seu prato de comida, sério? Você vai ter um tempero especial somente para você! – primeiramente, eu gostaria que soubesse que não fui eu quem escolheu o restaurante. Não queria forçar minha presença a você.

Não consegui segurar e acabei revirando os olhos, o que fez com que ele suspirasse e continuasse a falar.

–E depois, eu me sinto mal pela forma como... como acabou. – conseguiu dizer – Gostaria de pedir desculpas pelas coisas que disse. – acrescentou ele, com um olhar preocupado no rosto. Eu não percebi, mas estava de braços cruzados, olhando para um ponto fixo na parede.

Ele deu a volta e se colocou atrás do balcão, onde ele realmente não deveria estar.

–Olha pra mim, Mikaela. – pediu sério. Teimosamente, continuei encarando a parede. Em algum lugar tive a consciência que um dos colegas dele nos observava. Ele me girou e colocou de frente para ele, levantando meu queixo com uma mão – Não quero que me odeie.

Ah, por que ele fazia isso? Essa cara de arrependimento profundo, de sinceridade. Suspirei, finalmente saindo da carranca.

–Não te odeio Phelipe. Só não estou pronta pra te ver agora. E você não deve entrar aqui. – falei com a voz baixa. Ele suspirou com a resposta, em alívio. Tirei a mão dele do meu queixo – Volta pra sua mesa.

Dei as costas, indo em direção a cozinha indo pegar os pedidos. Respirei fundo, engolindo tudo.

O resto da jornada fora menos emocionante, a não ser pela gorjeta deixada. Sou orgulhosa sim, mas deixaram uma quantia generosa e eu não vou dizer não para dinheiro. Phelipe ganha muito melhor do que naquela empresa de almofadinhas que trabalha.

Estava quase dormindo quando ouvi a buzina de Avalon do lado de fora. Mais essa ainda! Já tinha me esquecido que iria para o bar. Tirei o avental e peguei minha bolsa, saindo para o ar da noite.

–Fala, gata! – disse simpática do banco do motorista. Eileen estava ao seu lado, e me cumprimentou animadamente quando entrei no carro.

–Oi. – disse em resposta, fazendo Eileen olhar para trás. Ava soltou uma risada reprimida em ronco.

–O que é que aconteceu? – perguntou Eileen, ainda com os olhos em mim. Nossa, eu não sabia que era tão óbvio assim. Suspirei.

–Antes eu preciso de uma cerveja. – pedi.

Chegamos ao pub aconchegante mal iluminado, e sentamo-nos a mesa de sempre. O ar estava mais fresco agora de noite, e o pub, um pouco mais cheio que o usual, estava quentinho.

Quando a rodada de bebidas chegou, comecei a contar a sucessão de eventos daquela noite. Elas se empolgaram com a notícia de Marion, o que fez Ava ceder e tomar uma tequila, quando normalmente não bebe dirigindo, para comemorarmos. Mas então expliquei o motivo da minha cara (citando Eileen) de “capivara bicuda”, o que arrancou das garotas algumas frases de apoio, e um bem vindo “Foda-se” de nós três.

–Não achei que fosse ficar tão nervosa ao vê-lo. – comentei – Mas nunca esperei que ele fosse até o restaurante em que trabalho. – apoiei o rosto na mão direita, certa que meu desagrado estava estampado no meu rosto.

–Mika, você não é intangível à sentimentos, sabe? – disse Eileen, sorrindo de maneira doce.

–E de qualquer maneira, uma hora passa. – completou Avalon. Sorri para elas em agradecimento.

–Quer saber? Vou fazer peixe para Sansa e Valentina esse fim de semana; o que acham de aparecerem em casa também? É minha folga. – convidei, um pouco mais animada do que antes.

As duas pareceram adorar a ideia, e se ofereceram para levar bebidas, que aceitei de bom grado. Logo a conversa se tornou animada e escandalosa, e em algum lugar, uma guitarra começou a tocar.

Every breath you take

(Cada inspiração que você der)
Every move you make

(Cada movimento que fizer)
Every bond you break

(Cada laço que quebrar)
Every step you take

(Cada passo que der)

I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

Nossa, “Every Breath You Take”. Que brega! Ouvi por mais alguns minutos, até perceber que haviam algumas modificações no som da música, e que a voz que cantava rouca e atraente.

–Até que ele é bonitinho, não acha? O baterista? – perguntou Eileen, fazendo sua enquete.

–Eu prefiro o careca no baixo. – respondeu Avalon, franzindo o nariz.

–O vocalista também não é de se jogar fora. Não é, Mika? – perguntou Eileen de novo – Mika..., acho que ele está olhando para cá. – acrescentou ela, fazendo com que eu virasse o rosto para ver melhor.

Ah, mas isso é mesmo muita coincidência. O rapaz que cantava realmente olhava para nossa mesa; me encarava com um sorriso torto que tirava suspiros das mais necessitadas que assistiam o pequeno show. Ele pareceu perceber quando o notei, porque seu sorriso abriu ainda mais.

Every single day

(A cada dia)
Every word you say

(Cada palavra que disser)
Every game you play

(Cada jogo que jogar)
Every night you stay

(Cada noite que ficar)

I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

Revirei os olhos. Eileen e Avalon me encaravam com expressões confusas e curiosas nos rostos, e tudo o que eu pude dizer foi.

–É o cara do Mercado. – disse dando de ombros, como quem diz “Fazer o que, né?”. Avalon começou a rir escandalosamente, e Eileen me encarou perplexa.

É sério mesmo? – quis saber. Acenei que sim, tomando um gole da cerveja. Ela começou a rir nervosamente.

–Quando falei de agarrá-lo, - comentou Ava – não sabia que ele tinha essa aparência, Mika. – completou arqueando as sobrancelhas. Revirei os olhos, incrédula.

Sério mesmo? O cara que me chamou de frígida?

Ele agora cantava visivelmente para mim, e eu não achei nenhuma cova ou fosso para enfiar a cara enquanto as mulheres no bar davam gritinhos.

A letra, de uma maneira sádica, me fazia lembrar de Phelipe. E não de uma maneira agradável.

Oh can't you see

(Oh, você não consegue ver?)
You belong to me

(Você pertence a mim)
How my poor heart aches

(Como meu pobre coração dói)
With every step you take

(A cada passo que você da)

Every move you make

(Cada movimento que você fizer)
Every vow you break

(Cada voto que quebrar)
Every smile you fake

(Cada sorriso que fingir)
Every claim you stake

(Cada pedido que fizer)

I'll be watching you

(Estarei observando você)

Gostaria de saber quem é o ser regente do Cosmos do universo, pois nesse momento quero mesmo ter uma palavrinha com ele sobre KARMA.

Ele apontou para nossa mesa, fazendo Avalon levantar os braços e gritar um “UHUL”, e Eileen dar uma risada empolgada enquanto batia palmas. Colocou a mão no peito e continuou:

Since you've gone I've been lost without a trace

(Desde que você partiu, eu estive perdido, sem rastros para seguir)
I dream at night I can only see your face

(Eu sonho a noite, e só posso ver seu rosto)
I look around but it's you I can't replace

(Eu olho envolta, mas é você que eu não posso substituir)
I feel so cold and I long for your embrace

(Eu sinto frio, e desejo seu abraço)
I keep crying baby, baby, please

(Eu continuo chorando, baby, por favor)

Oh can't you see

(Oh, você não pod ever?)
You belong to me

(Você pertence a mim)
How my poor heart aches

(Como meu pobre coração dói)
With every step you take

(A cada passo que você dá)

Meus Deus! Como posso olhar para esse cara, que obviamente estava se divertindo com minha incredulidade, quando a merda da música que ele canta é tão... UGH!

Every move you make

(Cada movimento que você fizer)
Every vow you break

(Cada voto que quebrar)
Every smile you fake

(Cada sorriso que fingir)
Every claim you stake

(Cada pedido que fizer)
I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

Every move you make

(Cada movimento que você fizer)
Every step you take

(Cada passo que der)
I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

A banda terminou a música e saiu para uma pausa. Suspirei de alívio. Não por muito tempo.

Quando virei para falar com as garotas novamente, elas encaravam um ponto fixo ao lado da minha cabeça. Respirei fundo, decidida a ignorar.

–Sabe, tenho quase certeza que é a terceira vez que te vejo essa semana, - disse uma voz muito próxima à minha nuca, o fez uma sensação esquisita percorrer meu estômago – e ainda nem sei seu nome.

Respirei fundo, mais uma vez, e me virei para encarar aqueles olhos cor-de-avelã brincalhões, ele tinha um sorriso torto estampado no rosto. Não tinha como negar, fingir um engano ou achar qualquer outra desculpa. Era mesmo a mesma pessoa do mercado.

–Tenho quase certeza que só te vi uma vez antes de hoje. – respondi a primeira coisa que me veio na cabeça. Ele sorriu ainda mais.

–Bom, eu tenho quase certeza que essa é a terceira vez que te vejo. – disse tentando me deixar curiosa. Eu ri.

–Por favor, que não seja uma cantada sobre como me viu nos seus sonhos; eu não tomei cerveja o suficiente para isso. – eu respondi com um sorriso de desdém, apontando para mesa, que na verdade estava lotada de garrafas.

Ele estreitou os olhos e chegou mais parto, o que me calou o riso na hora.

–Não mandaria uma cantada para alguém que obviamente - e olhou para a roupa que eu usava – não se interessaria.

Levei alguns minutos para entender o que ele queria dizer, o que me fez piscar, incrédula. Voltei a rir, só que com uma pontada de raiva.

–Acha que o único motivo para uma mulher não se interessar por você é se ela for lésbica? – perguntei com as sobrancelhas arqueadas, tirando um riso mal-contido de Avalon – Nossa você tem mesmo uma autoestima alta demais.

Ele riu com minha resposta, e apoiou um braço nas costas da minha cadeira alta, se aproximando mais um pouco. Estou começando a achar que ele não sabe o que é espaço pessoal. Em algum lugar ouvi Eileen dizendo que ia até o bar com Ava.

Ele abriu um sorrisinho simpático antes de falar:

–Acho que te vi passando pela Av. 5 hoje de manhã. – disse simplesmente. Franzi o cenho. Era a avenida da minha casa.

–Como assim me viu? – perguntei genuinamente curiosa. Ele segurou a ponta da minha trança, que agora estava passada pelo ombro direito, e girou pelos dedos.

–A garota estava de cabelo preso, óculos escuro e chinelo. Eu cheguei a gritar, mas...

–Era você?? – perguntei sem me conter, o que tirou um sorriso dele – Eu estava indo para a academia. – expliquei, no impulso. Não tinha de explicar nada para ele, mas na hora não me pareceu mal...

–Ah, isso explica onde tanta cerveja vai parar. – disse com um sorriso malicioso, olhando a região do meu colete. Cruzei os braços instintivamente, o que o fez gargalhar.

Ah-ham. – fez Avalon com a garganta, anunciando que estava de volta. Por que tinham saído mesmo? De repente me lembrei da cena no mercado, o que trouxe parte da minha cara de desprezo de volta – Não vai nos apresentar, Mika?

Eu quase acenei que não com a cabeça, mas ele respondeu antes.

–Ian, prazer. – disse estendendo a mão para as duas.

–Ava e Eileen. – disse a primeira, apontando a si e a outra – A muda aí chama Mikaela. – Eu olhei com olhos assassinos para Avalon. Quem disse que eu quero conhece-lo?

Ele voltou a olhar para mim.

Prazer. – disse com um sorriso ao mesmo tempo simpático e malicioso. Sem querer corei.

Balancei a cabeça para afastar pensamentos bestas. Quando notei, ele já estava sentado na mesa, conversando com as outras duas. Traidoras.

–Acontece que Robb é bartender aqui, sabe? O ruivo? Então conseguimos um acordo com o dono; caso fizéssemos sucesso hoje, poderíamos tocar duas vezes por semana, recebendo cachê. – disse animadamente. Elas pareciam ter gostado dele.

Meu Deus, traidoras.

–Que legal! – afirmou Ava, empolgada. Eileen concordou com um aceno de cabeça e um sorriso simpático – Toca a quanto tempo?

Eles continuaram assim por mais dois ou três minutos, nos quais eu recebi chutinhos embaixo da mesa para que demonstrasse alguma coisa. “O que é?!” gesticulei para Eileen, que revirou os olhos.

–Preciso voltar, vamos continuar tocando. – anunciou por fim. Amém! – Legal conhecê-las. Você também. – adicionou, voltando-se para mim, levantando-se da mesa.

Dei um sorrisinho amarelo, quando ele se virava para sair, mas Ava interrompeu a gloriosa e esperada saída dele, chamando-o.

–O que vai fazer nesse sábado? – perguntou felizmente. Mas o quê? O que ela vai...

–Nada planejado ainda. Não toco em lugar nenhum no sábado.

–O que acha de jantar conosco? – AVALON JURO POR DEUS QUE UM DIA AINDA ARRANCO SUA LÍNGUA – Mais umas colegas vão estar lá, e vai ser legal. Pode levar seus amigos se quiser.

Eu encarei ela com olhos incrédulos. Ela o convidou pra ir À MINHA CASA mesmo? Sério? Quão grande será o desejo de morte dela?

–Claro, seria ótimo! – concordou sorrindo. Ah não, mas eu não vou ficar quieta.

–Avalon, nós nem conhecemos ele. – disse como se fosse óbvio, então eles viraram para mim, lembrando-se da minha presença – Não devia sair convidando pessoas que acabou de conhecer para ir para minha casa, sabe?

Ele pareceu ponderar, enquanto ela me olhava de cara feia. “MAS O QUE É?!”, gesticulei. Ela revirou os olhos.

–Verdade, seria estranho. – disse por fim. Aleluia! – Podemos sair amanhã, e então pode me conhecer e dizer se sou ou não um assassino completo. – disse sorrindo.

Meu breve alívio caiu do meu rosto, substituído por uma cara cética. Como assim, gente? Eu não conseguia achar as palavras certas para dizer que não, não quero você na minha casa nem se você fosse papa, mas Eileen pareceu achar algo “melhor” para dizer.

–Ela adoraria. – ele sorriu para mim, satisfeito.

–Pode ser na praça da Av. 5? Podemos almoçar e depois conversar. – sugeriu ele, com um olhar demasiadamente inocente. Eu estreitei os olhos. Você não vai ganhar essa guerra, amiguinho.

–Tudo bem. – suspirei por fim – Por que não? Está obviamente sonhando em sair comigo desde o meio da semana, não está? – disse alfinetando. Ele gargalhou gostosamente.

–É, pode até ser, mas não sou eu que preciso de alguém pra dar uma esquentada na minha alma, não é? – respondeu com o rosto próximo, segurando meu queixo. Trinquei os dentes. “Calma, não cuspa nele!”, disse a mim mesma.

Ele deixou a mesa, voltando para o palco, tirando gritinhos de algumas desesperadas.

Eileen e Avalon me observavam com rostos de expectativa meio cômica, o que me deixou meio nervosa.

–Vocês são umas... umas corninhas! – disse em fim, bufando – Me leva pra casa Avalon! Que hoje eu não estou boa!

Elas me deixaram na porta do prédio, ainda dando risada da minha cara.

–É só um encontro, Mika. – dissera Avalon – E assim você pode conhecer ele melhor... E você bem que poderia usar da companhia, sabe..? – completara com um sorriso malicioso que quase fez com que eu batesse nela na hora.

Mas elas veriam! Eu sabia que ele seria um completo babaca, então eu prestaria atenção. Observaria atentamente, não que fosse exigido, mas não deixaria um detalhe daquela personalidade irritante passar, e elas teriam de engolir meus socos e admitir que NÃO, EU NÃO ESTOU PRECISANDO DE HOMEM NENHUM.

Every move you make

(Cada movimento que você fizer)
Every step you take

(Cada passo que der)
I'll be watching you

(Eu estarei te observando)

*Minha aprendiz


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Notas finais do capítulo

UFA!
Espero que tenham gostado!
Deixem um review com todos seu amor



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