O Tempo que Leva escrita por Bruna Guissi


Capítulo 1
Dormir e Acordar


Notas iniciais do capítulo

Esta vai para o Desafio Songfic de fevereiro!Cruzem os dedos, espero que eu consiga acompanhar!Uma abraço, e boa leitura!
Pro dia nascer feliz – Barão Vermelho



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Todo dia a insônia
Me convence que o céu
Faz tudo ficar infinito
E que a solidão
É pretensão de quem fica
Escondido, fazendo fita

Havia alguma coisa errada com meu rádio relógio, sério.

Ironicamente, depois de um dia horroroso e uma noite mal dormida, ser acordada ouvindo uma música tão otimista parecia uma pequena piada do universo. Eu até cheguei a rir.

Meu pai diria, como sempre, que eu estava sendo dramática, pessimista. Talvez até depressiva. E eu estava mesmo. Eu estava tentando, pelo menos.

Todo dia tem a hora da sessão coruja
Só entende quem namora
Agora vam'bora
Estamos, meu bem, por um triz
Pro dia nascer feliz
Pro dia nascer feliz

Odeio a alegria alheia quando eu mesma me sinto um caco. Pro dia nascer feliz, é? Poupe-me! Gostaria de estourar os miolos de pessoas felizes, nesse momento. Cazuza mal sabia que um dia ia ser o responsável por um massacre egoísta.

Ironicamente, continuei deitada, prestando atenção à letra da música. O sol entrava alto pela janela; podia ser meio-dia, uma hora talvez.

O bom dessa época eram as férias da faculdade. Sim, eu ainda estou de férias, graças aos Deuses. Ou a Buda, quem quer que seja.

Pro dia nascer feliz
O mundo acordar
E a gente dormir
Pro dia nascer feliz
Essa é a vida que eu quis
O mundo inteiro acordar
E a gente dormir

Mas não tinha o pique necessário para sair da cama, e sambar alegria como muitos dos meus amigos estavam fazendo. Não consegui segurar o suspiro pesado. Eu estava realmente chateada. Chorei a noite toda, passei mal até. Mas agora não.

Agora eu tinha o vazio.

Aquele nada que a gente sente quando não sabe ao certo o que sentir. Quando já botou tudo pra fora, e o que sobrava era uma casca meio rabugenta e cansada, mas relativamente indiferente, que quando se olhava no espelho lembrava a sombra da pessoa que você achava ser.

Estava chateada porque, no final das contas, eu não ligava. Cansei de ligar.

Estava solitária, sim, mas aliviada, de certo modo, para minha surpresa. Levantei da cama, deixando a música tocar. Andei até o espelho, e notei os olhos inchados. Fora isso, não parecia haver lembranças físicas do dia anterior.

Todo dia é dia
E tudo em nome do amor
Essa é a vida que eu quis
Procurando vaga
Uma hora aqui, outra ali
No vai-e-vem dos teus quadris

É por isso que não me apaixono. Foi por isso que brigamos e ele resolveu terminar. Você é muito indiferente, dissera.

Nadando contra a corrente
Só pra exercitar
Todo o músculo que sente
Me dê de presente o teu bis
Pro dia nascer feliz
Pro dia nascer feliz
O mundo inteiro acordar
E a gente dormir, dormir

Bufei impacientemente.

Fui até o banheiro lavar o rosto, e quando voltei havia recebido uma mensagem no celular. A música em algum lugar acabava quando comecei a arrumar o quarto, lendo o pequeno texto.

“Mika, vamos sair hoje, beber! Não estou pedindo, sabe disso. Beijos – Ava.”

Eu abri um pequeno sorriso. Ela é doida. Digitei de volta:

“Eu estou bem. E hoje é quarta; você não trabalha amanhã cedo? – Mika.”

Troquei os lençóis brancos por verdes, e coloquei cobertas marrons na cama. Voltei ao banheiro e tomei um banho. Vesti algo confortável, e fui fazer algo para comer.

O celular vibrou novamente.

“Passamos no restaurante quando seu turno acabar. Não tem como fugir. – Ava.”

Dei de ombros. Difícil ganhar uma discussão com a Avalon. A insistência da amiga, no entanto, era reconfortante.

Uma pequena dor de cabeça me incomodava. Odeio chorar.

Decidi que cansei de pensar no assunto de ontem. Já deu.

Comi, lavei os pratos e decidi ir ao mercado. Peguei minha bolsa no quarto, prendi o cabelo e coloquei um tênis velho, meu favorito.

O metrô estava lotado, como sempre. Eu adoro o bairro que moro, e ele costuma ter tudo por perto, mas o Mercado da Cidade era muito mais interessante. Tinham uns temperos que queria comprar, e eu sempre voltava com mais ingredientes do que a lista que levava.

O lugar parecia um enorme e limpo barracão, com metros e metros de fileiras de estantes, dispostas como corredores. Havia milhares de opções, para tudo, e de ótima qualidade. E nem era tão caro assim.

Eu adoro passar as tardes assim, sentindo o cheiro da sessão de especiarias, com a cesta na mão. Açafrão, alecrim, alho, coentro, folha de louro e manjerona. Páprica eu tinha em casa uma boa porção, e canela também. Faltava ainda baunilha, erva-doce, gengibre e hortelã. Achei!

Fui para a sessão de vinhos. A cesta já transbordava com delícias; coloquei algumas porções boas de carne e salmão (que Valentina (minha prima) e Sansa tanto gostavam quando eu preparava), farinhas e creme de leite fresco.

Só faltam algumas garrafas de vinho e cerveja, e estaria perfeito! Meu Chef (sim Chef, e não chefe) iria aprovar esse cesto de compras. Aprendi muito bem sendo sua aprendiza, e costumamos fazer as compras do restaurante aqui. Infelizmente eu era apenas uma garçonete, mas ele vivia me iludindo; dizia que eu tinha o que era necessário para assumir um restaurante por minha conta, se quisesse.

Só faltava o dinheiro, claro.

Vinho branco e tinto seco. Para os dois tipos de carnes. Agora a cerveja preta, que eu raramente passava sem. Havia um último engradado apenas, e, quando cheguei nele, tinha concorrência.

Coloquei a mão em uma das alças e senti a outra ser puxada. Olhei para cima, exigindo saber o que este homem queria com a minha cerveja.

O rapaz devia ter por volta da minha idade, uns vinte e tantos. Era mais alto do que eu, o que era um pouco difícil; eu tinha um pouco menos de um e oitenta. Ele sustentou meu olhar, como se perguntasse exatamente a mesma coisa pra mim. Você não me intimida, moço.

–Com licença, será que posso pegar? – perguntou ele, com a voz simpática. Eu franzi os lábios. Não. Ele pareceu compreender.

Abriu um sorriso irônico, olhando para minha cesta.

–Sabe, já tem mais bebida que uma única mulher possa aguentar aí. – disse me alfinetando. AH, É MESMO?

–E como sabe? O que esconde dentro dessa calça pra saber o que uma mulher pode ou não aguentar? – perguntei estreitando os olhos. Ele ainda não tinha largado o engradado. Nem eu.

Para minha surpresa, ele riu.

–Tudo bem, é sua. – disse soltando a outra alça. Eu sorri em vitória.

Obrigada. – respondi de maneira afetada. Já colocava as bebidas no cesto lotado quando ele sorriu novamente. O que é que ele tem? Alguma coisa prendia suas bochechas, por acaso?

–Mas vai ter de me compensar; cerveja preta é a minha favorita, sabe? – disse com o que parecia um misto de pesar e inocência. Ah, por favor.

–Hmm, eu não acho. – respondi, meio que com um pouco de desprezo – Também é minha favorita, sabe? – adicionei.

Ele me encarou de volta, ainda com aquele sorriso meio torto. Ah, se ele soubesse como não estou no humor. Seus olhos eram cor de avelã e brincalhões, e os cabelos, um pouco mais escuros que estes, caiam um pouco acima dos olhos. Em algum lugar tive a consciência de que era bonito.

Dei de ombros, e me virei em direção aos caixas, o que exigia uma pequena caminhada. O abençoado resolveu me acompanhar. Suspirei audivelmente, o que pareceu engraçado, de um modo irritante, para ele.

Felizmente, permaneceu em silêncio todo o trajeto, colocando suas compras no caixa ao lado. Quando pagou (um pouco antes de mim), o vi seguindo para a saída. Balancei a cabeça. Nunca vou entendê-los, sério.

Mas quando achava que estaria livre para ir para minha casa, o mais-nem-tão-abençoado-assim esperava pela porta, como quem não quer nada. Uma ova que não quer nada. Quer me irritar, isso sim! Passei reto, fingindo que não havia notado sua presença. Ele resolveu me seguir apressadamente.

Quando ele foi abrir a boca para falar, virei mal humorada.

–Para com isso! – disse frustrada – Eu nem te conheço, cara! E eu não tive uma semana boa, então, por favor... – mas fui interrompida.

–Não seja frígida. – disse com uma das sobrancelhas arqueadas - Devia saber aceitar o interesse de alguém quando ele demonstra. – O QUÊ?! Eu fiquei estática, encarando por alguns segundos. Comecei a me irritar verdadeiramente com ele.

–Não seja atrevido, - respondi em tom de escárnio – devia saber aceitar uma rejeição quando recebe uma.

E saí dali.

Segui meio que indignada, meio que irritada para o metrô. Meio não.

UGH! QUE INSUPORTÁVEL! UGH, UGH, UGH!

Parecia que eu discutia em alto e bom som comigo mesma, pois as pessoas em volta de mim no vagão tomaram alguma distância.

Respirei fundo. Impossível acreditar. Acabei soltando uma risada nervosa. Dá pra acreditar?!

Quando cheguei em casa e já era perto das cinco da tarde. Tinha de arrumar as compras e me preparar para ir trabalhar, e não tinha tanto tempo assim.

Tomei um novo banho após arrumar milimetricamente os itens adquiridos na despensa. Prendi o cabelo em uma trança comprida lateral. Por mais que quisesse ser Chef, não podia deixar de gostar das roupas de garçonete. Eram elegantes, naquele preto e branco clássico.

Peguei as chaves do apartamento e uma garrafa de cerveja que coloquei na geladeira mais cedo. Engula essa, seu merdinha! Saúde!

O trabalho era sempre agitado, por mais que achasse aquilo relaxante. Eu sei, é controverso. Adoro lidar com as manias do restaurante em que trabalho; um quatro estrelas, muitíssimo bem criticado. Sabia que lá aprenderia muito mais do que ando aprendendo na faculdade de Gastronomia, a parte prática e burocrática da coisa. Aquilo era muito mais real.

Avalon veio assim que deu meia-noite, acompanhada por Eileen, outro amor da minha vida.

Vivo cheia de amores, apesar de dizerem que não demonstro. Avalon, Eileen, Valentina e Sansa eram esses amores que eu não podia viver sem. Cresci a vida com Valentina, e Sansa veio como uma intrusa adorável trazida pela outra, ao longo dos anos. Já as outras duas eu conheci na faculdade, e de imediato me apaixonei por Eileen. Não desse jeito romântico; ela é um doce, e uma das pessoas mais engraçadas que já conheci; quase um filhota desajeitada. E Avalon também; sempre simpatizei com o jeito desprendido dela. Foi natural tornarmo-nos próximas.

A solidão do dia anterior não era nada quando eu estava com elas. Avalon nos levou até o pub irlandês do centro, o nosso favorito. Era impossível passar um minuto que fosse sem rir das caretas de Eileen, ou das histórias de Avalon.

–Por que não agarrou o cara? – perguntou Avalon, fazendo com que eu revirasse os olhos.

Avalon! – reclamei. Eileen gargalhara gostosamente. Avalon começara a rir também.

–Ué, você poderia tanto passar uma chave de braço quanto tascar um beijo nele. Aí depende da sua vontade. – disse dando de ombros, conseguindo arrancar uma risada incrédula de mim.

–Você é inacreditável! – Pedi mais uma rodada de cerveja, ainda rindo.

Eram nesses momentos que eu sabia que tinha feito as escolhas certas.

Eu queria estar ali com as garotas, e, apesar de ser um ramo difícil, eu queria ser Chef. E apesar de ter de trabalhar a noite, seis dias por semana, eu sabia que gostava daquilo que fazia. Eu sempre gostei de um desafio. E por mais cansada que ficasse, ou deprimida ou estressada, sempre haveria um desses amores para me ajudar a superar, a rir ou xingar.

Era o que eu queria. E essas tristezas idiotas não iriam atrapalhar.

Pro dia nascer feliz
Essa é a vida que eu quis
O mundo inteiro acordar
E a gente dormir


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Notas finais do capítulo

Ah, espero que tenham gostado!É a primeira vez que escrevo em primeira pessoa completamente, quis experimentar esse ponto de vista, me sentir dentro da história.Espero que tenham gostado!Deixem um review, um amor ou erros de digitação!Toda crítica é bem vinda!Uma abraço e cheiro!



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