Tempestuoso escrita por babsi


Capítulo 25
Capítulo 25: O anjo e o demônio


Notas iniciais do capítulo

Nada melhor que um capítulo pós sexo selvagem/doméstico e uma manutençãozinha eterna em nosso querido servidor, não é mesmo?
FALANDO EM MANUTENÇÃO: WTF foi isso, Nyah!? Como assim vocês ficaram dias em manutenção e não colocaram a porcaria da possibilidade de um emoticon nas NC e NF? EIN?
Espero que gostem do capítulo (coração)



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POV THEA:

A luz da vela bruxeando do outro lado da cama me acorda. Recobro a consciência, tateando o espaço vazio ao meu lado a procura de Daryl, o lençol frio me dizendo que ele havia saído da cama há algum tempo.

Me espreguiço um pouco, constatando que estava só de calcinha por debaixo do lençol. Mordo os lábios, segurando a vontade de rir de alguma ideia absurda que passa pela minha cabeça.

Cubro o entorno da cama com os olhos, o colete de asas saltando a minha vista, e me estico um pouco para alcançá-lo, vestindo-o logo em seguida, o cheiro masculino tomando meu olfato, substituindo todo aquele fedor de tabaco velho e álcool barato que tomava conta do ambiente.

Encontro Daryl parado do outro lado da cabana, de costas para mim, parecendo alheio a tudo, enquanto olha fixamente para a poltrona puída a sua frente.

Uma sensação quente parece se alojar em meu peito, como brasas, subindo pela minha garganta e se despejando em meus lábios a forma de um sorriso clichê.

"Amo."

Suas palavras voltam em meus ouvidos e aquelas brasas parecem flamejar, tomando todo meu corpo. Aperto o colete contra minha barriga, naquele gesto inconsciente que eu sempre tinha quando me sentia frágil demais.

Não era uma fragilidade ruim, longe disso, mas também não era confortável, e aquela veste de couro preto e asas nas costas parecia ser o mais perto de segurança que eu teria enquanto estava sentada sobre aqueles lençóis frios.

"Amo."

Penso mais uma vez, e aquilo flamejando por todo meu corpo parece que nunca vai virar cinzas. Aspiro o cheiro do colete, fechando os olhos em seguida. Daryl Dixon me amava, e aquela afirmação era a maior segurança que eu poderia ter.

Simples e leve, pois nada poderia ser mais pesado que a zumbilândia a nossa volta. Ninguém conseguiria lidar com mais peso do que toda aquela morte do mundo em que vivíamos.

"Amo." Uma afirmação e eu parecia incendiar. Eu não apostaria nessa alternativa nem que me prometessem de joelhos que ela era verdade.

Volto o olhar para Daryl, que ainda não tinha tomado consciência de que eu estava o observando. As costas nuas, as mãos dentro do bolso daquela calça jeans surrada que parecia ser uma extensão de seu corpo. Ele ainda olhava para poltrona, como se ela fosse a coisa mais importante ali, como se ela abrigasse todos os fantasmas que ele queria queimar.

Daryl Dixon tinha um peso em suas costas, um peso de coisas que ele nunca conseguiria se livrar sozinho, que ele nunca deixaria de lado se não visse a verdade por de trás de toda aquela culpa que ele carregava. Uma culpa que não era dele, nunca seria, porque Daryl era um cara bom, tão bom quanto eu conseguiria explicar. Tão bom quanto ele imaginava ser.

Foi baixo usar meus sentimentos para provar o quão covarde ele era ao fugir de algo que deveria enfrentar, mas eu não podia me omitir. Ver aquela dor em seus olhos toda vez que ele tivesse que confrontar a realidade era demais para mim, e eu não iria simplesmente ficar de braços cruzados fingindo que aquilo não me afetava tanto quanto a ele.

O passado de Daryl havia queimado, e ele não tinha mais que viver as sombras de toda aquela bagunça. Da bagunça de seus pais e de seu irmão. Ele era bom o suficiente para poder deixar as cinzas onde elas deveriam ficar: jogadas numa urna funerária, em algum armário, numa casa qualquer.

Em pé só havia Daryl, o mais forte deles. O único com caráter suficiente para isso. Ele era bom. O último homem em pé.

Daryl sibila alguma coisa, chamando minha atenção, e sua postura rígida me atinge em cheio, como se ele não conseguisse lidar com todas aquelas lembranças. Sinto meu peito se comprimir, e envolvo mais o colete em meu corpo, como se aquele gesto fosse o suficiente para me manter inteira enquanto Daryl parecia em ruínas. Ele não deixaria o passado para trás até que a poltrona estivesse em pedaços e a cama deixasse de cheirar a cigarro e bebida velha.

A luz da vela oscila, iluminando o homem de pé a minha frente, como uma miragem. Suas costas nuas me chamam atenção, largas e fortes, assim como as cicatrizes arroxeadas cobrindo-a, e as duas tatuagens disformes que me fazem sorrir. Um anjo e um demônio, como os pensamentos que ele lutava todos os dias. Tão Daryl.

– Se eu soubesse dessas tatuagens, posso te garantir que nós teríamos nos agarrado antes, Daryl Dixon. - provoco, chamando sua atenção para mim.

Ele se vira rapidamente, como se a ideia de eu estar observando-o tão exposto, lhe corroesse. Isso me chateia mais do que eu poderia permitir.

Eu não tinha o direito de pedir mais do que ele poderia oferecer. Me amar já era peso demais em suas costas e eu não queria dar a impressão de que as coisas eram mais densas do que pareciam.

Nós não tínhamos um compromisso, não iríamos namorar e jurar amor eterno um ao outro. Eu não queria isso, e sabia que ele também não. Esse tipo de relacionamento era pesado demais para toda fragilidade de um mundo morto, e um peso tão definitivo quanto esse era demais para carregar enquanto toda estabilidade só precisava de uma simples mordida para ruir. Um relacionamento era um peso que nenhum de nós dois estava preparado para carregar.

Mas mesmo assim eu me levanto, caminhando em sua direção. Eu queria Daryl por inteiro, sem meios termos, até atingir nosso limite.

– A gente não se agarrou, Thea. Eu te fodi. É uma coisa bem diferente. - ele provoca, aquela voz rouca me fazendo arrepiar de cima a baixo, e não consigo conter uma gargalhada.

– Fodeu? - arqueio uma sobrancelha, divertida. - Você é tão romântico, Daryl Dixon... Sua delicadeza chega a me assustar!

Ele me olha sério, os olhos azuis tão quentes que deixam minhas pernas bambas.

– Eu não sou um cara romântico, Thea. – diz, a voz tão rouca quanto antes. Sua mão se fecha em meus cabelos, puxando minha cabeça para trás e me trazendo para mais perto, sem muita delicadeza. Sinto minha respiração parar no peito em excitação. – Nem carinhoso ou delicado. – continua, com um sorriso malicioso. - Eu não falo coisa bonita, eu falo putaria. Eu não te agarro. Eu te fodo. Sacou?

Sorrio, um tanto excitada com sua atitude. Daryl era sexy, quente, e tudo parecia em erupção. E eu amava isso. Amava toda a brutalidade, a violência branda, a preocupação delicada e todos os excessos. Amava as explosões e a segurança. Amava as brigas e a pele áspera de encontro a minha. Eu amava de Daryl Dixon, no final das contas.

– Não. – digo falsamente confusa, apesar do sorriso malicioso. Minha voz saindo mais fraca do que eu realmente esperava. – Eu realmente não saquei, Daryl. Acho que você vai ter que exemplificar.

– Isso é um convite? – provoca, arqueando uma sobrancelha e soltando a mão de meus cabelos, que caem em cascatas sobre minhas costas.

– Por que? Você precisa de um? – respondo, me afastando um passo, me fazendo de rogada.

Ele estreita os olhos em minha direção, passando as fendas azuis pelo meu corpo, parando nos seios cobertos pelo colete de couro.

– Ficou bom em mim, não ficou? – dou uma voltinha, vendo seu olhar seguir o movimento. - Acho que por causa dos meus peitos, sabe? Deu um volume bem legal.

– Lá vem você com seus absurdos. – ele responde, balançando a cabeça e afastando o tecido com a mão áspera e forte. Seus olhos percorrem meu colo, descendo em direção ao seio e depois a barriga. Eles param ali, encarando as cicatrizes. Me encolho um pouco, fechando o colete sobre mim, e cruzando o braço sobre o peito, como se aquele gesto pudesse apagar todas aquelas marcas.

Daryl franze o cenho, como se não quisesse aquela reação. Sua mão afasta meus braços, deixando meu dorso exposto novamente, enquanto os dedos ásperos contornam cada marca, fazendo um arrepio percorrer minha espinha e se acomodar em minha pele. Meu peito se aquece, à medida que minha respiração oscila. Ele não iria pedir, mas merecia saber.

Engulo em seco, tentando controlar o fluxo de oxigênio, enquanto pensava em como botar para fora tudo aquilo que eu sempre quis esconder. Talvez fosse só falar, eu era boa nisso, mas o bolo na garganta parecia discordar. Eu só conseguia me concentrar no toque quente em minha pele fria e, pela primeira vez, o silêncio se mostrava confortável.

Travo o maxilar, me sentindo tão hipócrita quanto poderia justificar. Todos nós tínhamos cicatrizes, algumas compartilhadas, mas o motivo era único e exclusivamente de cada um. Era algo íntimo, mais do que isso, até. Daryl havia compartilhado o motivo: um pai abusivo e uma família de merda. Talvez eu devesse ser menos egoísta, dar mais do que pedir. Talvez Daryl merecesse aquilo, talvez fosse o justo. Ele merecia saber, e eu merecia sentir aquele peso sair de meus ombros.

– Eu... – começo, sem conseguir encontrar palavras. Daryl me olha, e continuo sem conseguir decifrar a expressão por trás dos olhos azuis. – Eu não sei falar sobre isso, Daryl. Eu nunca falei sobre isso. – digo, após abrir e fechar a boca várias vezes.

Ele não me responde, com aquela expressão indecifrável que eu não conseguia entender. Daryl havia contado, lutado contra todo o desconforto para me dar uma justificativa, e merecia que eu fizesse o mesmo esforço.

– Quando aqueles homens tomaram o acampamento... - balanço a cabeça, tentando não lutar contra as palavras, enquanto os pensamentos voavam em direção àquele dia e se dispersavam em minha mente, me fazendo julgar qual o melhor jeito de contar tudo aquilo.

Daryl espera, os olhos fixos em mim, como se tivesse todo o tempo do mundo. Ele não tinha todo o tempo do mundo, ninguém tinha. O mundo já tinha muito tempo e talvez não me desse outra oportunidade. Era só Daryl na minha frente. O último homem em pé. Talvez o único que pudesse tirar aqueles dias de minha mente.

– Quando eles tomaram o acampamento... – continuo. - Eu disse a vocês que havia fugido com Red, mas não foi bem isso que aconteceu. Quer dizer, eu fugi, mas... – suspiro, irritada com toda a enrolação. Eu não era dois pesos e duas medidas, e eu odiava delongas.

Ele continua me olhando, estreitando minimamente os olhos para a confusão de palavras, mas sem parecer ter alguma reação além daqueles olhos azuis em fendas. Daryl era extremamente difícil de decifrar.

– Quando eles chegaram, nós lutamos. Foi à toa, você sabe disso. Tínhamos poucas pessoas e menos ainda de munição. Foi um massacre. Quando resolvemos abandonar o Santuário, já era tarde. Alguns conseguiram, outros não. Eu consegui, mas não foi tão simples assim. – engulo em seco, e vejo um brilho de compreensão atingir seu olhar. Ele, mais do que ninguém, sabia que nada nesse mundo comido pelos mortos era simples, e sua família era a prova viva disso. Abano com a cabeça, buscando um modo de continuar. – Minha família não conseguiu escapar. E aqueles caras que invadiram... eles eram espertos, Daryl. – sorrio irônica. - Não era a primeira vez que faziam aquilo, entende? Eles nos observaram antes, sabiam sobre nós, quem éramos, quais os vínculos, quem havia fundado o Santuário. Então, quando eu e Red conseguimos fugir, eles não gostaram nada. Porque sabiam que, se ficássemos lá fora, haveria uma pequena chance de nos organizarmos para tomar o acampamento de volta. E eles não queriam chances. Mas, não poderiam simplesmente sair atrás de nós numa busca cega, deixando o acampamento exposto.

Paro um momento, tentando organizar os pensamentos. O rosto de Tygger atingindo em cheio minha mente, fazendo meus olhos arderem em raiva, enquanto as cicatrizes pareciam pegar fogo sob a pele.

– Tygger, o líder, tentou um acordo, porque sabia que Red não iria se entregar pela minha família, e sabia que, se eu ficasse de refém, ele não arriscaria tomar o acampamento. Então, se eu me entregasse, ninguém se machucaria. – digo, sentindo a voz sair como um veneno de minha língua, enquanto meus olhos começavam a arder. Daryl enrijece, e sinto minhas pernas tremularem. – Eu fiquei com medo. Pensei em meus primos, em minha tia, mas eu não podia me entregar, entende? E então, eles pegaram Amber...

Fico em silêncio, fechando os olhos com força, como se isso pudesse impedir a imagem daqueles dias passarem por minha cabeça. Uma das piores memórias de toda essa merda de mortos vivos, talvez a única que eu quisesse realmente esquecer.

– Ela tinha quinze anos, Daryl. – minha voz sai num fio, sufocada por um soluço que eu tentava impedir. - Quinze anos.

Prendo a respiração, sem conseguir continuar. Daryl continua parado, os músculos sob a pele rígidos como uma massa, como se a qualquer minuto pudessem saltar para fora.

– E eu fiz eles estuprarem uma menina de quinze anos. – digo, sentindo as lágrimas escaparem com força, sem permissão, caindo como navalhas no piso de madeira, enquanto o soluço sufocado saia alto e agoniado.

Daryl fica em silêncio, os olhos azuis tão profundos que sufocavam minha respiração dentro do peito, me deixando tonta. Desvio o olhar, com medo de ver uma centelha de repreensão, ou qualquer coisa que indicasse minha culpa. O silêncio permanece, e sinto todo meu corpo tenso. Eu odiava silêncio, e não ter uma reação de Daryl era bem pior do que a rejeição total, mas me obrigo a continuar.

– Ela gritava todas as vezes, tão alto... – coloco as mãos nos ouvidos, como se isso pudesse impedir os gritos em minha mente. - E então eu me entreguei. Fiz um acordo com Tygger: se eles soltassem Amber, eu ficaria de refém e delatava o acampamento. Eles jogaram Amber num lugar fora de Terminus, e me colocaram no mesmo container que minha família. Aí chegou a hora de abrir o bico, e eu não o fiz.

Sinto as marcas arderem, e me encolho um pouco mais dentro do colete de asas, buscando um pouco força, ou talvez só me esconder do olhar rígido de Daryl.

– Eles torturaram Alex. – continuo, sem conseguir conter outro soluço e as lágrimas que não paravam de vir - Ele me fez prometer que não ia falar nada. Obrigou Gareth e minha tia a não me fazerem falar. Tygger ficou puto, acho que nunca o vi tão irritado. – engulo em seco, lembrando dos socos desferidos em meu primo e nas paredes de metal do container. – Então ele matou Alex. Na frente de Mary. – mais um soluço, e o choro começa a ficar mais forte. – Ele estuprou a mãe sobre o sangue do próprio filho, enquanto obrigava o outro a assistir. Mary implorou para que não falássemos, e Tygger mudou de estratégia. - mordo o lábio inferior com força, como se meu subconsciente tentasse evitar falar sobre o que havia acontecido.

Meus olhos cruzam com o de Daryl por uma fração de segundo, e vejo toda raiva estampada ali atingir meu rosto como uma bofetada. Mais lágrimas descem, e parecem mais dolorosas que as anteriores. Como se as navalhas penetrassem o rosto, rasgando a carne por onde passavam.

– Os homens me acorrentaram na frente do errante de Alex, em outro container, evitando que qualquer coisa dita por Mary e Gareth me afetasse, e começaram a me cortar. - passo a mão pela barriga, como se tentasse limpar toda aquela sujeira.

Daryl caminha de um lado para o outro, as mãos em punho, os músculos saltando sob a pele, como se quisesse socar alguma coisa. Sinto minha garganta se fechar, e a voz parece mais esganiçada a cada palavra.

– Eu apagava uma vez atrás da outra, e eles me acordavam jogando álcool nos ferimentos. – fecho os olhos com força, ouvindo a risada sádica de Tygger em minha mente, enquanto despejava uma garrafa de vodka barata em minhas costas, após ter ficado longos segundos trabalhando num corte que ia do ombro a meu quadril. – No final das contas, eu mal conseguia ficar acordada por conta da dor, quem dirá falar qualquer coisa que eles quisessem ouvir... – balanço a cabeça, tentando dissipar as memórias, transformar aqueles dias num pesadelo qualquer, morto em algum canto no fundo de minha mente. – Tygger apareceu algumas noites depois com antibióticos e um sorriso irônico, dizendo que queria se retratar. Ele me costurou de cima a baixo, me deu remédios para dor e eu acordei dias mais tarde, no container com Mary e Gareth. Ninguém nos perturbou por semanas, e esse tempo foi o suficiente... – assinto, lembrando como as coisas tinham sido fáceis depois desses dias. – Os homens em Terminus iam ficando sem mantimentos, vivendo meses com a ameaça de uma retaliação vinda de Red e as pessoas que conseguiram fugir. Eles ficaram fracos, e nós cada vez mais fortes. Eles evitaram ao máximo, mas foram obrigados a se dividirem em grupos de busca, para encontrar comida e água, deixando Terminus exposta. Numa noite, quando um dos vigias foi nos levar comida, Gareth o enforcou com a corrente da algema. Nós roubamos as chaves e corremos como o inferno. – sufoco um sorriso, lembrando da sensação de correr após todos aquelas semanas trancada em um container sujo. - Nos juntamos à Red no mesmo dia, e começamos a fazer pequenas invasões para recuperar os nossos e roubar armas, além de recrutar poucas pessoas para nos ajudar a tomar o acampamento de volta. Conseguimos recuperá-lo numa noite, após metade dos homens saírem em missão, e tomamos o que era nosso por direito. Mas, a partir daí, os dias não foram mais tão fáceis. – suspiro, lembrando que nada era tão simples. - Nós ainda tínhamos fome, e éramos obrigados a conviver com todas aquelas lembranças e containers... Amber se suicidou logo em seguida, e eu nunca tive coragem de contar a ninguém sobre o que aconteceu nos dias que fiquei desaparecida. Red nunca soube, assim como Gareth. Eu não achei justo falar. Amber estava morta, eu estava viva. Não era como se eu pudesse reclamar de algo. Logo após a morte de minha prima, Gareth pirou, me acusou de matá-la e me expulsou do acampamento. Por mais raiva que eu tivesse de Gareth, eu nunca consegui discordar totalmente de suas acusações. Talvez, se eu tivesse me entregado antes, Amber ainda estivesse viva, Gareth não tivesse pirado e Terminus ainda fosse um bom lugar para passar o inverno. – termino, sentindo minha cabeça pesar e a culpa escorrer pela minha língua como um veneno forte na corrente sanguínea.

Terminus havia queimado, assim como as pessoas e o passado, mas as memórias insistiam em resistir, em me perturbar dia após dia, confrontando qualquer bom sentimento, como se eu não fosse digna de tê-los, como se eu não os merecesse.

Talvez eu realmente não merecesse, talvez eu fosse realmente culpada, mas eu não podia continuar em frente carregando o prédio em chamas de Términos e as cinzas da promessa de um Santuário. Era pesado demais para toda fragilidade do mundo morto. Tudo parecia pesado demais para essa fragilidade. E eu estava cansada de peso desnecessário.

Talvez eu devesse seguir em frente, fechar os olhos e fingir que aquilo não me afetava. Tampar o sol com a peneira e torcer para tudo dar certo.

Olho para Daryl, esperando que ele tivesse a resposta.

Silêncio.

Ele não diz uma palavra, só continua me encarando, os olhos azuis tão pesados quanto o medo apertando meu peito.

Talvez ele não a tivesse. Por que teria?

Engulo em seco, sentindo uma lágrima descer por meu rosto, enquanto sinto seu olhar sobre mim. Me encolho dentro do colete, buscando um pouco de conforto. Era só isso que eu precisava ouvir.

Eu não queria aquele olhar frio e raivoso, não queria piedade ou frases tirando minha culpa. Eu só queria conforto. Queria respostas. Alguém que me dissesse que tudo ficaria bem e que eu não deveria me preocupar mais com os mortos. Os definitivamente mortos, pelo menos.

Mas Daryl não diz nada, só continua parado, os músculos tensos como se pudesse explodir a qualquer tempo, como se o peso fosse dele.

Toda segurança que ele emanava parece desaparecer e, pela primeira vez em muito tempo, eu sinto uma raiva que me encolhe o peito, sufocando a respiração na garganta e cegando a visão.

Ele continua em silêncio, como se não tivesse nada a dizer. Seguro uma risada irônica, um grito de ódio preso no peito, apertando o diafragma, ofendida o suficiente para mandá-lo para o inferno com minhas próprias mãos.

Um gemido baixo do lado de fora da cabana parece ser o estopim. Suspiro alto, puxando os cabelos, tentando me controlar. Daryl estreita os olhos, ainda em silêncio, e isso me tira o sério. O saco de carne geme mais alto, batendo com o corpo na porta da cabana, as unhas apodrecidas arranhando a madeira num barulho agoniante, que revirava a boca do estômago.

Respiro fundo, e Daryl parece cada vez mais irritado. Nossos olhares se cruzam, e aqueles azuis frios parecem ainda mais indiferentes. O errante se debate e minha paciência vai para o espaço, junto com a de Daryl.

Ele soca alguma coisa, que cai no chão com um estrondo alto.

– Qual a porra do seu problema? – grito, empurrando o homem a minha frente com força. Ele estreita os olhos em repreensão, a boca numa linha fina, como se a qualquer momento pudesse me mandar à merda.

– Meu problema? – grita de volta, começando a andar de um lado para o outro.

O gemido parece aumentar, e é como se vários errantes tivessem se aglomerando ao redor da cabana. Coloco a mão nos ouvidos, o barulho me tirando o sério mais do que qualquer pensamento sobre Terminus e o homem a minha frente.

Daryl olha em volta, parecendo tão irritado quanto eu, por conta do barulho, como se os gemidos interrompessem algo muito importante a ser falado.

Ele abre a boca para falar algo, os olhos brilhando com raiva e escurecendo conforme o errante se debate. O saco de carne podre se joga contra a porta, e essa parece que poderia ceder a qualquer minuto, mesmo com as tábuas de madeira protegendo a passagem.

Daryl xinga alguma coisa, chutando a parede e me fazendo sobressaltar. Num rompante, ele pega a besta encostada aos pés da poltrona. Com a coronha, ele retira as tábuas de reforço na porta. As cicatrizes nas costas se movimentando conforme os músculos eram forçados. E o demônio parece mais vivo a cada instante.

A porta se abre com um estrondo, e quatro errantes saltam em sua direção. Fico parada onde estou, chocada demais para me mover. Ou talvez toda aquela raiva me deixasse tão letárgica quanto os mortos.

Um chute faz o primeiro errante sair do caminho, enquanto uma flecha explode o crânio do segundo. O terceiro se estica na direção de Daryl lentamente, com um braço pendurado por um fio de pele e o outro a frente do corpo, como se pudesse alcançar a carne do homem com a besta. A coronha faz o trabalho de esmagar a cabeça desse, enquanto uma flecha entra pelo olho do quarto mordedor, saindo do outro lado do crânio.

O primeiro errante continua no chão, tentando levantar sem muito sucesso, por lhe faltar de uma perna. Seria uma cena engraçada se eu não estivesse paralisada no lugar, sentindo meus batimentos em minha testa e o maxilar travado.

Daryl pega uma corda ao lado da poltrona, levanta o errante pela roupa e o arrasta para fora de minha vista. Continuo parada, sem nenhuma reação a não ser começar a tremer por conta do vento gélido que entrava pela porta arreganhada da cabana. Ainda era de madrugada, talvez umas cinco horas da manhã. O inverno estava cada dia mais próximo, e nós ainda não tínhamos um lugar. É só o consigo pensar, tentando acalmar os pensamentos raivosos.

Daryl aparece na porta, o maxilar tão travado que saltava sob a pele. Ele pega minha machete ao lado da poltrona, e caminha em minha direção a passos pesados, ainda sem dizer uma palavra.

– Daryl? - chamo, um pouco mais calma, sentindo os dentes baterem um contra o outro por causa do frio. Ele não me olha, somente envolve meus braços com a mão e me arrasta para fora da cabana.

O vento bate forte em minha pele desnuda, e sinto todos meus músculos enrijecerem. Abro a boca para perguntar o que ele estava pretendendo, mas minha voz trava na garganta quando vejo o errante amarrado numa árvore logo atrás da cabana.

– Você disse que queria aprender a usar. - ele me empurra a machete, com o olhar tão frio quanto o tempo.

Seguro a faca por reflexo, tão assustada quanto podia transparecer. Não movo um músculo, sentindo meus ossos começarem a doer por conta do vento gelado.

– Vai! - ele rosna, me empurrando na direção do errante. O mordedor geme em meu rosto, as mãos amarradas tentando me alcançar. Continuo parada sem reação, sem conseguir formular algo que não fossem gemidos de frio.

Daryl pega meu braço com força, me chacoalhando sem delicadeza. Não era de um jeito Daryl, só era doloroso, como se ele não tivesse consciência do que fazia.

– Eu cansei de pensar em você machucada, Thea. Cansei de imaginar você tendo que correr de tudo, se escondendo no meio do mato e sendo torturada por um bando de filhos da puta. Você disse que queria aprender a usar a machete, agora você vai aprender. - diz, com a voz sem emoção. - Vamos... Segura isso direito. Quem sabe se você aprender a ser útil, você deixa de se culpar pelas idiotices de outras pessoas. - ele puxa meu braço para cima, colocando-o em posição. Não consigo mantê-lo firme, e ele cai molenga ao lado do corpo.

Daryl se irrita, pegando meu braço mais uma vez e me puxando para trás.

– Vai, Thea! Se vira! - grita, me fazendo engolir um soluço.

Travo o maxilar, a raiva voltando com tudo ao conseguir assimilar suas palavras.

“Quem sabe se você aprender a ser útil...” é só isso que preciso ouvir. É só o que soa em minha mente, repetidas vezes, como um soco na boca do estômago, ou uma bofetada na cara.

Eu não era a porra de um peso morto, eu era útil. Tão útil quanto Daryl e aquela besta idiota que ele carregava para todo o lado como se fosse sua puta.

O errante grunhi, se debatendo em meio as cordas. Respiro o fundo, sentindo a raiva percorrer minhas veias de forma ardente. Como um veneno na corrente sanguínea, corroendo toda a segurança e a beleza das horas anteriores, quando o homem ao meu lado prometia coisas que parecia não estar disposto a cumprir.

Daryl rosna mais alguma coisa, e eu levanto os braços num rompante, cansada de suas palavras, jogando todo o peso de meu corpo sobre a machete, que trava na cabeça do errante. O grunhido para, e eu sinto todos meus músculos doerem.

Daryl agarra meu braço, falando alguma coisa sobre tirar a machete da cabeça do mordedor. Não respondo, o olhar fixo no walker a minha frente. Daryl aperta meu braço com um pouco mais de força, como para chamar minha atenção.

– Você está me machucando! - grito, tentando me soltar.

Sua mão para o aperto instantaneamente, como se ele tomasse consciência do que fazia. Seus olhos parecem derreter, enquanto começo a sentir aquelas lágrimas idiotas se formando em meus olhos.

Ele abre a boca para falar alguma coisa, mas o impeço. Minhas mãos vão para seu peito, e o empurro com toda minha força. Daryl dá um passo para trás, tão chocado quanto eu, e começo a me descontrolar. Meus punhos se fecham, chocando-se contra seu peito desnudo. Ele continua parado, como se não sentisse nada, e aquilo me irrita mais que qualquer outra coisa. Eu soco sem parar, sentindo as lágrimas descerem por meu rosto, enquanto grunho palavras desconexas.

Daryl segura meus punhos, me puxando para perto, me envolvendo em seus braços fortes. Afundo minha cabeça em seu peito, sentindo as lágrimas saírem quentes e escorrerem sobre meu rosto frio. A raiva ainda fervendo em minha cabeça.

– O que você quer de mim, Dixon? - repito suas palavras, me desvencilhando de seus braços.

Olho para a machete de Red na cabeça do errante, e tudo que consigo sentir é raiva. Mais raiva.

Toda vez que eu olhava, era como uma facada que me fazia lembrar de toda aquela merda que devia ter ido embora quando Terminus queimou.

Daryl não me responde, só continua me olhando, aqueles olhos azuis tão fundos que eu poderia mergulhar dentro deles. Ele abaixa o olhar para meu corpo. Calcinha e colete. Engulo em seco, me sentindo exposta. O vento gelado bate com força em meu corpo, me fazendo tremer. Daryl dá um passo em minha direção, mas me afasto.

– O que você quer de mim, Daryl? - repito mais uma vez, me virando de costas e voltando para o barracão.


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Notas finais do capítulo

o que ele quer dela eu não sei, mas o que eu quero dele...



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