Talvez fosse isso mesmo que estava sentindo. Uma bagunça completa de sentimentos. Nunca foi acostumada com incertezas e as dúvidas que lhe rondavam mais pareciam assombração do que simples indagações juvenis.

Queria sentir a paz de ser ela mesma como antes pensava ser e não essa preocupação eterna de não esquecer nunca de quem realmente era.

Olhou mais uma vez ao redor. Identificou que o contraste não estava apenas na sua cabeça, como também na nova arrumação do quarto. As luvas repousavam ao lado da pelúcia verde e ela não sabia ao certo o porque tudo parecia tão correto.

Era verdade que não era uma pessoa de palavras soltas e sim de pensamentos esvoaçantes. Preferia a quietude do silêncio já que sua mente era por demais em polvorosa . Sempre que ia falar media cuidadosamente e milimetricamente cada silaba dita. A não ser que estivesse com mais raiva do que a consciência lhe permitia ter.

Fechou os olhos e respirou cada gole de ar misturado a lembranças de provocações venenosas. Prendeu tudo por segundos inteiros e tentou apagar cada frase mesquinha dita por pessoas irrelevantes. Sentiu o peito arder e associou a dor às memórias e não a respiração presa. Só liberou a circulação em seus pulmões quando viu cada ponto do quarto tornar-se escuro e cada ofensa desaparecer dos cantos presos do cérebro.

Voltou, ofegante, a realidade do quarto a meia luz e da irmã dormindo silenciosamente na cama ao lado. Revirou –se pela milésima vez no colchão e decidiu que hoje venceria a batalha que travava toda noite com a insônia. Apertou os olhos novamente porém dessa vez sem provocar mudanças abruptas nas vias aéreas. Lançou- se em recordações felizes a procura de um sonho e encontrou novamente o pesadelo de vê-lo nos braços dela.

Acordou no sobressalto do quase beijo entre o namorado e a grande inimiga. Algumas frases ditas por ela ainda ecoavam e a perturbavam de um jeito assustador.

-Ka?- a voz doce da moça de cabelos castanhos a chamava como se tentasse acordar um sonambulo de uma crise.

-Oi Bi...

-Irmã...você tá bem?

Não deixaria mais um sonho bobo revelar suas inseguranças e decidiu que a evasão seria a escolha certa.

-Ah...tô sim...eu só to atrasada pro treino...eu vou correr logo pra me arrumar...depois a gente se fala.

Não deixou a irmã responder, carregou as luvas, a toalha e as roupas como quem ja estava preparada para a saída de emergência. Precisava fugir dos outros...mas não sabia como fugir de si mesma.

*

Mais uma bola de papel se acumulava no mar que agora inundava o chão do quarto. Pedro sabia que amava música e que, quando a inspiração surgia, a fluidez era certa. No entanto, as preocupações do dia a dia o deixavam cada vez mais estressado e cansado, pensava que a fuga seria nos braços da namorada porém acabava encontrando mais desassossego a cada recusa dela ou irritação feita pela segunda vocalista da própria banda. As letras certas e fáceis que antes vinham apenas com a lembrança do sorriso da musa da sua vida, agora eram acompanhadas de remorso, dúvidas e frustrações.

Precisava se livrar de toda a culpa que sentia, não pretendia ter o destino do pai. Mesmo que nunca tivesse coragem de falar o que quer que fosse, morreria defendendo a única verdade que era resultado de tudo aquilo: A amava. Como nunca pensou que seria possível na vida.

Suspirou alto e jogou o caderno na mochila. Desistiu da criatividade. Aquele, definitivamente, não era o seu dia.

Colocou o mais sincero e belo sorriso nos lábios quando pensou que logo mais a teria em seus braços e partiu para mais uma aula irritante de balé.

*

O clima da elegante sala de dança era de descontração, como qualquer manhã normal. O melhor aluno da professora Lucrécia conversava animadamente com a namorada pelo Skype enquanto os amigos passavam de vez em quando para um aceno simpático, uma pergunta preocupada ou , até mesmo, uma sessão de piadas ruins.

A estudante exemplar e filha da senhora da sala tentava uma conversa civilizada com o aspirante a modelo e tentava fazer com que ele entendesse que tirar a camisa não era solução. Bianca, a filha de uma das atrizes mais importantes da instituição, tentava desabafar suas dúvidas com a amiga ruiva que emprestava seu ouvido para mais uma sessão de terapia com direito a muitos: “Duca, Paulista e não sei o que faço”.

A sala ficou em completo silêncio quando os estalos do sapato da professora ressoaram pelo corredor. Nunca foram alunos exemplares, porém com a descoberta da situação delicada de Lucrécia, cada um vazia a sua parte para que o estresse nunca a alcançasse.

- Atenção, atenção! Meus queridos alunos! Hoje teremos mais um grande talento se juntando a turma da Ribalta...apresento a vocês a nossa nova aluna : Vicky.

A garota foi recepcionada em meio a suspiros apaixonados, reviradas de olhos e reclamações evidentes por parte das garotas do local. Todos sabiam que a fama da menina era nada menos do que : vigarista.

*

Mais um chute significaria mais uma série acabada. A garota concentrou no saco de areia e viu ali a cara que tanto queria espancar. Um chute certeiro e violento, daqueles que o pai fez questão de elogiar em alto e bom som para todos na academia.

- Muito bom Karina! Eu não queria ser essa pessoa que você tá querendo matar.

-Ué pai...como você sabe que eu tava pensando em alguém?

-Uma pessoa que dá um chute desses tão forte e tão cheio de raiva como esse só pode estar imaginando o próprio capiroto no lugar do saco de areia.

A moça riu da verdade por entre a piada do pai e decidiu que merecia um copo d’água.

Enquanto sentia o liquido esfriar o corpo apenas pela satisfação da extinção da própria sede, lembrou-se que não havia visto o namorado aquela manhã. Na certa ele tinha se atrasado novamente e agora estava correndo para aprender todos os passos de dança com o paciente Jeff. Sorriu ao imaginar a cena e voltou a pensar na nova sequência de movimentos que realizaria.

*

-Desculpa prof! Atrasei mas cheguei!

-Que bom que resolveu nos dar a honra da sua presença guitarrista...mas da próxima vez que se atrasar....fique em casa.

-Ok...ok...foi mal ai...minha culpa...

-Tudo bem. Sem desculpas. Vamos que já começamos os passos do dueto. Você pode fazer par com a novata.

Pedro viu em câmera lenta o dedo da professora apontar na direção da razão de seus pesadelos. A bela vocalista que o atiçava e brincava com sua razão. Ele engoliu em seco e viu a cunhada se dispor para trocar de par.

-Não Bianca ! Quem chegou atrasada foi o guitarrista. Vamos logo rapaz que eu vou colocar a música novamente.

O rapaz se colocou ao lado da adversária e ela o lembrou que não estava em um campo de batalha.

-Olá cabeludinho...parece que hoje nos vamos dançar juntinhos.

-É...parece que eu não tenho escolha.

Ela sorriu satisfeita e esperou a música inundar a sala para que pudesse se jogar nos braços dele portando consigo as desculpas necessárias para todos os apertos e mãos bobas.

*

-Mestre! Mestre!- o cozinheiro do restaurante vizinho à academia apareceu correndo no meio do treino.

-Lincon...fale..o que aconteceu homem?

-Eu...- o senhor puxou o ar que lhe faltava e desembuchou tudo o que precisava ser dito.- O meu neto...ta nascendo! Eu...eu preciso avisar o Jeff...eu...- o ato de respirar se confundia com a fala e o cozinheiro parecia ter perdido qualquer capacidade de cognição.

-Io! Karina! Sobe la na Ribalta e chama o Jeff ! Meninas tragam uma água aqui pro Lincon!

A lutadora estava tão surpresa que não questionou e apenas seguiu as ordens do pai. A mente trabalhou rápido a medida que subia as escadas. Se Lincon sabia e Jeff não...na certa ainda estaria na aula da dança. Era o único momento em que o rapaz desgrudava do celular.

Entrou como um furacão na aula e deixou o queixo cair com a cena que testemunhou. De repente a sala esvaziou e o pesadelo tornou-se real. Tentou a técnica da respiração que funcionou tão bem na noite passada mas descobriu que a mesma não era tão eficaz quando se tratava da realidade.