Garota Camaleão escrita por Aurora


Capítulo 17
Pureza


Notas iniciais do capítulo

Lúcia tinha um dos corações mais puros do mundo, mas ela não sabia disso, e vejam só que ironia: entregou seu coração para um dos corações mais acabados desse mundo.



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Alison,

Se você olhar bem, de verdade mesmo, procurar por, em cada canto irá achar pureza. Existe pureza em mim, por mais que eu esteja meio tomada por milhões de questões intermináveis, ainda existe pureza. Existe pureza em você, onde quer que esteja. A pureza é bela, uma das coisas mais belas que podemos encontrar, pois é forte e nunca foi modificada, é algo simplesmente natural. Eu, a garota indecisa-depressiva-solitária-chata-entediante, tenho pureza. Você, a garota divertida-bonita-explosiva-errada-poderosa- manipuladora-camaleão, tem pureza. E nós, juntas, já tivemos pureza.

Aquela nossa dança cheia de passos incertos foi pura.

Foi uma dança que aconteceu mesmo por causa do universo que estava entediado e colocou os dois corpos e mentes para dançar, era uma música meio lenta que só passava na cabeça de cada uma, coincidência ter sido a mesma para as duas. Quem puxou o primeiro balanço foi você, era noite e não chovia, mas o vento soprava a nuca de leve, o cenário foi a cálida rua de trás da minha casa. Tinha muita coisa numa simples dança que nem fora coreografada, existiam muitos sentimentos mal compreendidos e palavras pela metade. Sempre existiu.

Eu queria mesmo era ter deitado minha cabeça em seu ombro como se fosse num baile de debutantes, e você seria a minha princesa e logo nos tornaríamos rainhas, mas existia um mundo em nossa volta e infelizmente não podíamos ignorá-lo para sempre. Dançamos então, foi uma dança arranjada com muitos baixos e altos, quem comandava eram nossos pés, porque nenhuma das duas pensava muito bem, só estava acontecendo. Eu quis te falar infinitas coisas. Queria te perguntar o que estava acontecendo entre nós, porque você tinha escolhido justamente eu dentre tantos outros, queria saber sobre seu passado e ajudar-te em tuas fraquezas, mas fui covarde demais e perdi todas as oportunidades que tive de abrir minha boca, a dança se tornava mais articulada e minhas questões também.

E quem virasse a esquina lá da lua era capaz de ver nossos sorrisos naquela noite tão silenciosa. Porque foi um momento puro e feliz, não devíamos nada a ninguém e o momento era só nosso. Nós girávamos, balançávamos, caiamos, levantávamos os braços, mexíamos as pernas de forma constante e o melhor: nós gostávamos de tudo aquilo. Éramos pura dança naquele momento. Eu fechei os olhos e me entreguei, intensifiquei tudo aquilo para combinar com minha mente, e nossa afeição. Usei pés firmes e rosto sereno, delirei.

E então éramos dois corpos cuspidos no mundo direto naquela rua tão caótica, balançávamos no ritmo de nossas próprias músicas e tudo que tínhamos era aquela dança. Depois de um tempo eu sentia as solas dos meus pés arderem e os meus dedos das mãos afrouxarem em seus ombros, mas não parei, pois naquele momento éramos só dança, as questões tão intermináveis tinham espairecido e todo o nó parecia ter se desembaraçado só para poder ver com mais clareza aquela singela e nada preparada dança. Eu podia sentir cada centímetro do meu corpo se esticar e cada fio de cabelo balançar, fomos dança demais naquele dia.

E quando eu reparei já não tinha mais volta, o jeito era continuar dançando. E meu corpo doeu, eu sempre fui pequena demais para aguentar alguma coisa por muito tempo, eu estava doída, sentia meu corpo implorar para o fim da dança e ao mesmo tempo se recusar de parar. Eu fui uma dança dividida, mas não ligava mais, apenas dançava. E você, Alison, me fez virar o corpo inteiro para baixo me segurando apenas pela cintura, e então eu senti o primeiro rompimento, no pescoço. Era sangue, sim, sangue, acho que você não viu, estava concentrada demais em seu próprio delírio para notar o meu. O sangue escorreu pelo meu pescoço e abriu outras feridas, não era um sangue vermelho e não o podia ver, mas sabia que era sangue. Aquele sangue carregou todo o peso da dança, dúvidas, divisões, mágoas, dores, o sangue invisível levou tudo que me atracava e eu me senti leve, pura e livre para dançar até quando quisesse.

O sangue escorria para todo lado, espichava, mas não manchava nada, não me fez parar um segundo sequer, não tive necessidade de limpar ou de procurar saber o motivo, estava bom para mim, meu pequeno conforto naqueles passos puros e giros zombeteiros. De olhos fechados e mente limpa eu continuei, sangrando tudo aquilo que um dia me impediu, deixando de ser parte daquela decoração mal feita da rua solitária e virando alguém. Graças a você. Eu estava me tornando viva, não só aquela pequena semente que nunca se regava, só se mantinha quieta dentro daquela estufa de terra, minhas flores ansiavam para se abrir e você foi a estação perfeita. Você me deu sua primavera. Deixou minhas folhas verdes e foi o sustento de meu caule, e quando a flor surgiu por inteiro naquela noite você me beijou. Um beijo cheio de sangue, mas puro, foi o primeiro beijo que demos e tão bom quanto qualquer outro, foi um beijo marcante, bonito.

E não paramos de dançar nem enquanto o beijo acontecia e aquilo o intensificou, era um desafio manter tudo em harmonia, mas conseguimos, as duas confusões balançadas conseguiram por algum milagre por uma vez sequer deixar tudo em perfeita ordem. A dança, o beijo e as mentes. Era tudo combinando, até a rua tinha mais brilho, tudo aquecia e não queimava, era um poder de sangue. Foi a noite mais intensa que tive, e a mais pura também, uma intensidade e pureza que combinaram, veja só, tudo acabou reluzindo no final.

Naquela noite eu floresci por sua causa e te agradeço, e imploro por ter esse sentimento maravilhoso mais uma vez, eu preciso da sua primavera, Alison, não consigo mais viver nesse frio do inverno, não sou forte como você, nunca fui, o caule de minha flor se quebra em pedacinhos a cada dia que passa sem eu te ver. E naquela noite, eu estava encharcada daquele sangue invisível, mas me sentia mais limpa e pura do que nunca.

Com saudades, dúvidas, confusão, leveza, mais saudades, felicidade, amor, descobertas, dor, desespero, tentativas, muitas saudades, promessas, arrependimento, marcas, medo e pureza,

Lúcia.


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Notas finais do capítulo

Prometo que a história vai andar, talvez vocês estejam já cansados e tal, mas eu tenho tudo bem pensado. Beijos.



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