Printemps escrita por Hanna Martins


Capítulo 1
Não quero esquecer


Notas iniciais do capítulo

Quando leio aquela frase, "Peeta e eu voltamos a conviver", sempre me pergunto como isso aconteceu. Pensando nisso resolvi criar esta fic, espero que gostem ;)



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A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.

(Cecília Meireles).

Cai sobre a floresta um silêncio profundo, consigo ouvir quase a minha respiração. O sol ainda não apareceu. A floresta está ainda um pouco escura, mas dá para ver perfeitamente. Uma bela corça bebe água calmamente no riacho. Perfeito, o animal não me viu e a distância entre nós é adequada para lhe dar um tiro certeiro. A flecha no meu arco já está preparada, basta atirar. No momento, em que minha flecha acerta a corça, ela se transforma. Não é mais a corça que tenho diante de mim, mas Prim.

Tento gritar, porém nenhum som é emitido por meus lábios. Me sinto sufocada. Paralisada. O medo me paralisa.

A floresta se tornou um lugar obscuro.

Uma gargalhada sonora corta o ar. Me viro em direção ao som, é Snow que ri, tento acertá-lo com minha flecha, mas ele já não é o presidente Snow, é Coin.

― Não! ― sou acordada por meus próprios gritos.

Demora alguns minutos para me certificar que tudo não passou de um pesadelo. Respirar tornou-se uma tarefa um tanto difícil.

Vou para o banheiro e me atiro debaixo da água gelada. O frio me faz tremer, mas também me ajuda a voltar para a realidade e constatar que tudo não passou de um pesadelo.

Meu nome é Katniss Everdeen. Moro no Distrito 12. Fui a dois Jogos Vorazes e sobrevivi. Fui o Tordo. Minha irmã está morta. Coin e Snow estão mortos. Eu matei Coin. Peeta está aqui no Distrito 12...

Tento utilizar o método que os médicos me ensinaram para situações assim. No entanto, ele não adianta muito.

Saio debaixo do chuveiro. Troco de roupa e desço até o andar de baixo. Vou até a cozinha e faço um chá. Me instalo no sofá. Sei que terei outra noite de insônia. Mais uma entre tantas. Se ao menos... Peeta estivesse aqui. Era ele o responsável por sempre me acalmar dos pesadelos. Mas nosso relacionamento, seja ele qual for, está estranho. Já faz quinze dias que Peeta retornou da Capital. Ele passa os dias fazendo pão. De manhã sempre há um pão quentinho para mim, me esperando na cozinha. Isso sempre me lembra do pão que ele me deu quando nos tínhamos onze anos. Retribuo seus pães com minhas caças. Passo os dias caçando. Na verdade, estou mais no piloto automático. Na maioria das vezes, passo os dias apenas vagando pela floresta e quando alguma caça atravessa o meu caminho tento a abater com minhas flechas. Às vezes, funciona, outra vezes não. Estou tentando seguir o conselho do dr. Aurelius, simplesmente agir sem nenhum entusiasmo especial. Meu relacionamento com Peeta se baseia nisso, ele me faz pão e eu lhe dou alguma caça.

Buttercup se instala em meu colo. Nos aproximamos muito nestes últimos dias. Nós dois nos consolamos sobre Prim.

― Prim iria adorar a primavera, não? ― falo, passando a mão por seus pelos.

Buttercup me responde com um miado. Me lembrar de Prim provoca lágrimas em mim. Eu não consigo me acostumar com a ideia de quando eu acordar não a encontrarei, não ouvirei mais sua voz, sua risada. Prim tinha sonhos, iria se tornar uma médica. Ela era alguém cheia de sonhos e tão jovem. A doce, inocente e forte Prim, que precisou crescer rapidamente. Aperto Buttercup em meus braços, ele não reclama. Ficamos os dois assim por um longo tempo. Minhas lágrimas banham o pelo do gato.

Não sei quanto tempo passou, mas os primeiros raios de sol me apanham agarrada a Buttercup.

― Katniss? ― olho em direção a Peeta, que se aproxima cautelosamente de mim.

Ele tem um pão em uma das mãos. Seus olhos azuis me fitam. Por um segundo, é como se estivesse diante do antigo Peeta. Entretanto, sei que não é assim. Ele já não é o mesmo, assim como eu não sou a antiga Katniss. Eu mudei, ele mudou, todos mudaram. A guerra nos transformou.

― Eu... acabei tendo alguns pesadelos ― explico, não sei por que, mas sinto a necessidade de dar alguma explicação a ele.

Peeta balança a cabeça.

― Trouxe um pão... para o café.

Assinto com a cabeça. Ter um diálogo com Peeta é um tanto complicado.

― Você viu que as prímulas estão cada dia mais bonitas? ― indaga, enquanto vai em direção à cozinha.

Peeta plantou prímulas noturnas ao longo da lateral da minha casa. Foi seu primeiro gesto quando retornou ao Distrito 12.

― Sim, é primavera... logo elas florescerão... ― falo seguindo Peeta.

Buttercup me segue, vem miando atrás de mim, deve estar com fome. Peeta corta uma fatia de pão e dá para ele.

Greasy Sae ainda não chegou. Ela é a responsável por cozinhar para mim.

Me sento na mesa. Peeta começa a fazer chocolate quente para nós dois.

― Você tem visto... Haymitch? ― pergunto.

Desde que retornei para o Distrito 12 não mais vi meu antigo mentor.

― Toda manhã levo um pão para ele ― contesta Peeta de costas para mim, enquanto trata de fazer nosso chocolate quente.

― E como ele está?

― Se você considerar que ele retornou a beber sem parar... ele voltou a sua antiga rotina. Ontem, Haymitch me disse que estava pensando em criar gansos.

― Gansos? ― não posso evitar minha surpresa.

― É, ele disse que precisava de algo em que investir seu tempo.

A ideia de ver Haymitch cuidando de algo me parece divertida.

― Espero que os gansos não gostem de álcool ― falo.

― Haymitch teria muita concorrência! ― responde Peeta, voltando-se para mim.

Ele me entrega uma xícara de chocolate de quente e uma fatia de pão. É o mesmo pão que ele me deu quando tínhamos onze anos, recheado com passas e nozes.

― Você recorda?

Ele assente.

― Foi o pão que eu te dei. Verdadeiro ou falso?

― Verdadeiro ― respondo. ― Os pães estavam quentes. Você salvou a minha vida ao me dar aqueles pães...

Seus penetrantes olhos azuis me olham. Desvio meus olhos de Peeta.

― Já está na hora de eu ir caçar... ― falo apenas por ter algo o que falar, fitando a xícara de chocolate quente.

― Você nem tomou seu café da manhã direito ― diz olhando para a fatia de pão que permanece intacta em minha mão.

Automaticamente como o pão e bebo o chocolate quente o mais rápido que posso.

― Já vou! ― saio da mesa, sem olhar para ele.

Quase atropelo Greasy Sae no caminho.

― Katniss! ― grita.

― Vou caçar! ― digo.

― E o seu café da manhã?

― Já tomei! ― respondo rapidamente.

Greasy Sae me olha incrédula, mas não me impede de prosseguir. Pego minhas coisas e vou para a floresta.

Passo um bom tempo por lá. Desta vez, não caço nada. Vago pela floresta sem um destino. A vida está voltando à floresta. O inverno já se foi, e a primavera começa a se instalar lentamente. Se eu fosse a antiga Katniss, estaria caçando por aí. Mas eu não sou.

Após me cansar de andar, volto para minha casa. O fosso que foi aberto na campina para servir de sepultura para os mortos de nosso distrito, ainda está aberto. O número de carroças que recolhe os mortos de meu distrito diminuiu um pouco, noto. No entanto, elas ainda estão por aí recolhendo os mortos. O meu povo. O povo que eu ajudei a matar.

A primeira coisa que faço ao chegar em casa é ligar para o dr.Aurelius. Nossas conversas não são lá muito interessantes, na maioria das vezes, fico em silêncio. Acredito que ele até aproveita estes momentos para tirar um cochilo. Entretanto, ninguém pode me acusar de que eu não esteja tentando. Dói tanto, mas mesmo assim preciso continuar a respirar. Talvez, algum dia eu encontre algum sentido para tudo isso.

Hoje, eu digo algumas coisas, não muito. Meu médico quer que eu fale sobre meus sentimentos. Eu nunca fui boa em falar para alguém sobre eles. Isso me aterroriza. De qualquer forma, estou fazendo um esforço.

Pego um regador e vou regar as prímulas. Começo a aparar alguns galhos. Gasto um bom tempo nisso. Faço tudo com certa lentidão.

― Precisa de ajuda? ― indaga Peeta.

Não havia notado sua presença.

― Há quanto tempo está aí?

― Não muito ― responde pegando o regador. ― Haymitch perguntou por você.

―Então, nosso mentor anda preocupado com sua pupila?

― Algo assim ― diz, regando uma das plantas. ― Você deveria fazer uma visita a ele ― sugere simplesmente.

Ver Haymitch é algo que tenho tentado não pensar. Passamos por muita coisa juntos. Ainda dói pensar em certas coisas.

― Talvez ― dou de ombros.

Peeta continua a regar as plantas, enquanto eu aparo as folhas.

― Voltei a pintar ― fala repentinamente. Tão repentinamente que não posso evitar lançar um olhar de surpresa em sua direção. ― Eles disseram que seria bom para mim, expor minhas emoções por meio da pintura...

Os desenhos dele sempre me causaram certo sentimento.

― Eles também me disseram para expor minhas emoções por meio de algo. Mas eu não sei pintar como você, nem nada. A única coisa que sou boa é em caçar.

― Pense em algo que você quer... ― sugere.

― O que eu quero? ― murmuro para mim mesma.

O que eu quero é não me esquecer de tudo o que vive. Sim, eu não quero esquecer. Por mais que as lembranças sejam dolorosas, elas fazem parte de mim. Definem quem eu sou. Eu não posso apagar minhas memórias e nem desejo que elas sejam apagadas.

Peeta termina de regar as plantas e vai embora. Ainda fico cuidando das prímulas por um bom tempo. Como se elas pudessem me dar algumas respostas. E de repente elas me dão.

Me lembro do velho livro de plantas da família. Corro até o estúdio, onde deixei as coisas que me enviaram. Meu pequeno tesouro, tudo o que me restou por um longo tempo. Tudo está intocado, como da última vez que eu os vi. A foto de casamento de meus pais, a cavilha que Haymitch me enviou na arena, o medalhão em formato de caixinha que Peeta me deu na arena e o livro de plantas. Apanho o livro de plantas e o folheio por um bom tempo.

Já sei o que eu farei, um livro com todas as minhas memórias. Minhas memórias não serão esquecidas. A guerra não me roubara mais nada. E pela primeira vez, em muito tempo, algo vagamente parecido com um sorriso surge em meu rosto.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Deixem seu comentários me falando! Esta fic provavelmente não será muito longa, acredito que terá no máximo uns 10 capítulos. Porém, ainda não decidi sobre isso, posso mudar de ideia.