CAPÍTULO VI

Minha surpresa vem quando acordo e não vejo Haymitch ao meu lado. Então consigo ter exatamente a mesma sensação que ele teve nas últimas noites. Quando olho para o relógio, ainda são um pouco mais de seis da manhã e fico me perguntando se ele de fato dormiu. Começo a imaginar a causa dele ter saído cedo e acabo rindo baixo.

Quando me reúno aos demais na mesa da sala de jantar, pouco mais de uma hora após acordar, quase não trocamos palavra alguma, apesar das perguntas intermináveis que sei que estão surgindo na cabeça de cada um presente. Mas ninguém se pronuncia, pois todos entendemos que tudo que Katniss e Peeta querem no momento é tranquilidade.

O trem estava marcado para sair às dez horas em ponto, então tratamos de sair do centro de treinamento assim que terminamos de comer. Durante o percurso, não chego a falar com Haymitch por causa dos demais, então só acabamos tendo essa privacidade quando chegamos a plataforma. Mas o ar brincalhão que ele carrega desde a hora em que estávamos à mesa me faz pensar que sua saída mais cedo foi proposital.

Paro ao lado de Haymitch e cruzo os braços, olhando para o casal desafortunado, ambos parecem estar felizes e assustados ao mesmo tempo.

– Saiu mais cedo para me dar o troco, queridinho? - indago.

Haymitch me olha de lado rapidamente e abafa uma risada.

– Queria dizer que estou totalmente chateada com o que fez - digo da forma mais teatral possível e acredito que meu sotaque ajudou bastante.

Haymitch me lança mais um olhar antes de responder.

– Só achei que iria gostar.

– E acertou! - digo e Haymitch me fita estupefato, o que acaba me fazendo rir. Isso chama a atenção dos demais e então volto a tomar postura.

Um som conhecido me faz olhar para trás e é então que vejo o trem se aproximar. Quando finalmente para na plataforma, Katniss e Peeta se apressam em se levantar do banco com um brilho cheio de expectativa no olhar. Me despeço de cada um, dizendo-lhes palavras de apoio, parabenizando-os por tudo.

– Nos veremos na turnê da vitória - digo para Peeta que sorri gentilmente.

– Claro, Effie.

– Vai se despedir de mim não, queridinha? - ouço a voz de Haymitch vindo de trás. Viro-me e sorrio, aproximando-me dele.

– Isso não é um adeus, Haymitch - digo. - Vamos passar mais tempos juntos do que imagina.

– Na verdade eu imagino, sim - ele diz. - Já passei por isso quando venci os jogos.

– Tem razão - concordo e me aproximo um pouco mais, até perceber que os garotos ainda estão olhando para nós. Pigarreio e estico o braço para apertar a mão de Haymitch, que também notou o casal nos observando. - Nos vemos na turnê, então.

– Nos vemos na turnê - ele diz formalmente.

Acabei acatando sua ideia de abafar o que estava acontecendo entre nós. Mas então é que eu começo a me questionar que realmente está acontecendo algo. Acompanho-o com o olhar até ele entrar no trem e quando este dá a partida, me assusto quando Cinna começa a falar ao meu lado.

– Parece que essa turnê da vitória vai ser mais divertida do que eu pensava.

Olho para Cinna e ele começa a rir. Portia levanta uma sobrancelha e isso me faz chegar a conclusão de que ela também já sabe. Provavelmente Cinna contou tudo para ela.

Abro um meio sorriso e olho de um para o outro.

– Com certeza será.

~*~

Em poucos dias me vejo dentro do trem em direção ao Distrito 12. Em breve começaremos a maratona de preparação para a turnê da vitória e perfeição é pouco para o que eu quero ver de Katniss e Peeta. Em alguns momento paro para pensar no que está acontecendo e não consigo acreditar que finalmente estou presenciando uma vitória do Distrito 12, e melhor: uma vitória dupla!

Sento-me à mesa, mesmo ainda sem sentir fome, e observo Cinna finalizar seu almoço. Não tínhamos ainda trocado tantas palavras até então. Nossa euforia era sem tamanho. Quando parávamos para conversar era sempre sobre o que faríamos com o visual dos garotos durante a turnê e o que eles teriam que falar - sendo esta última sob minha responsabilidade.

Concentro-me nas minhas unhas e começo a mexer nelas.

– Nervosa? - Cinna indaga ao me ver assim.

Levanto o olhar e o vejo ainda me encarando, esperando uma resposta.

– Talvez - respondo.

– Sei que é muita coisa de uma vez só - ele diz. - E ainda tem o... - ele faz um aceno com a mão e percebo que está falando de Haymitch.

Suspiro e baixo meu olhar para as unhas novamente.

– Acha que estou fazendo a coisa certa? - pergunto e quando olho para Cinna, vejo-o me fitar com certa dúvida. - Sobre Haymitch...

– Bom - ele começa a dizer, juntando as mãos em cima da mesa. - Isso quem tem que decidir é você, Effie. Se acha que deve levar isso adiante...

Olho nos olhos de Cinna e percebo a serenidade que eles carregam. Sorrio e ele retribui, segurando minha mão na sua.

Mal percebi o tempo todo que se passou enquanto estávamos no trem. Quando chegamos ao Distrito 12, somos conduzidos diretamente para a Aldeia dos Vitoriosos. Ando apressadamente, tentando não inalar tanto o mal odor deste lugar. Levo toda a equipe de preparação a casa de Katniss e começamos com tudo. Ajudo um pouco com a maquiagem, mas a minha mente está na casa ao lado. Dentro de poucos minutos o casal desafortunado estará sendo filmado para o programa do Caesar.

Acompanho Katniss até ela sair de casa e encontrar Peeta na frente das câmeras. Eles desequilibram e caem, beijando-se em seguida. Meu coração amolece com a cena e sorrio.

– Eles são lindos, não são? - indago e olho para Cinna ao meu lado.

– São sim - ele concorda e volta sua atenção para o casal a nossa frente. - E se eu fosse você, Effie - continua, olhando para mim novamente, mantendo seu tom de voz baixo - passaria na casa ao lado, porque estou percebendo daqui a sua vontade de fazer isso.

– Cinna!

Ele me fita e ri baixo. Acabo rindo junto. Olho, então, para a casa de Haymitch e mordo o lábio, indecisa entre ir ou não.

Depois de um ou dois minutos, aproveito o espaço deixado e vou caminhando até a casa de Haymitch, tentando me acostumar com o cheiro daqui, mas acho que nunca conseguiria. Quando olho para trás, não vejo mais sinal de ninguém entre as casas de Katniss e Peeta. Cruzo os braços e continuo o meu caminho.

Sinto minha roupa começar a pesar. Uma brisa passa rapidamente e paro para apreciá-la. Então subo os degraus que levam a porta da frente da casa de Haymitch e toco a campainha. Alguns instantes se passam e ninguém vem abrir. Provavelmente bebeu até cair no sono, digo. Toco mais uma vez e ninguém aparece. Então arrisco em abrir a porta e surpreendo-me ao ver que não estava trancada. Passo por ela e fecho, tomando o rumo até a cozinha, que acredito que seja o lugar mais fácil de encontrá-lo. Mas quando ainda estou no meio do caminho, ouço um ronco próximo a mim e, quando viro-me para olhar o que há a minha direita, me deparo com Haymitch dormindo no sofá. Me aproximo lentamente e me abaixo um pouco para analisar a situação. Faço uma careta ao sentir o cheiro de álcool e suor.

– Haymitch - chamo, mas ele sequer se move. A TV está ligada e estão passando algumas cenas dos últimos jogos. Pego o controle ao seu lado no sofá e pressiono o botão de desligar. Dou a volta no sofá e paro de frente para ele, me abaixo um pouco e, hesitantemente, estico o braço para tocar-lhe o rosto. Ao sentir a umidade excessiva do seu suor, faço uma careta me perguntando quando foi a última vez que tomou banho e torço para que não tenha feito muito tempo. Me afasto e começo a procurar por algo que me ajude a enxugá-lo, mas quando começo a andar para fora da sala, Haymitch começa a se mexer no sofá, o que chama a minha atenção de volta. Quando me viro, já o vejo se sentando no sofá. Seus olhos, inchados de sono, encontram os meus e ele franze o cenho.

– O que está fazendo aqui? - ele pergunta. Abro a boca para responde, mas então percebo que nem eu mesma sei o que vim fazer exatamente. Tudo bem, minha intenção era acordá-lo, mas para quê? Era só isso mesmo? Cinna havia notado que eu queria vir, mas eu não tinha um outro motivo que não fosse só para vê-lo. Eu precisava de uma resposta convincente. - Deixa pra lá - ele diz, se levantando do sofá, cambaleante. Me pergunto se foi o sono, mas com certeza foi a bebida também. - Com certeza Peeta mandou chamar para o jantar, não foi?

– Claro! Claro! - me apresso em dizer, aproveitando sua suposição. - Peeta. Claro.

Haymitch assente com a cabeça e se apoia no sofá. Olho para os lados e encontro uma toalha deixada em cima de um criado-mudo. Pego-a e inalo seu cheiro rapidamente, percebendo que não está ruim. Provavelmente ele não a usara ainda.

– Toma - digo, entregando-lhe a toalha. - Lava esse rosto e enxuga porque temos que ir logo.

Haymitch a recebe e em seguida se direciona para fora da sala de estar, provavelmente indo até o banheiro. Ouço o barulho da torneira sendo aberta e da água caindo. Pouco tempo depois ele retorna, ainda enxugando o rosto. Quando termina, ele joga a toalha de qualquer jeito no sofá. Uma breve risada me escapa quando vejo seus cabelos bagunçados. Haymitch me olha com desconfiança quando me aproximo para arrumar suas madeixas. Passo os meus dedos entre os fios, arrumando-os. Quando termino, encontro os olhos de Haymitch, seu rosto bastante próximo ao meu.

– Você está parecendo uma lhama com esse vestido.

Haymitch era imprevisível, mas isso de fato me surpreendeu. Olho pasma para ele, que permanece me fitando com a mesma calma de sempre. Um sorriso brincalhão surge em seus lábios, mas no momento isto não importa.

– Você é ridículo - digo e me viro para sair, ouvindo a risada de Haymitch logo atrás de mim. Passo marchando pela porta e sigo em direção a casa de Katniss.

– Vai com calma, princesa - ouço-o dizer lá atrás.

– Não ouse me chamar de princesa! - retruco, virando-me para ele. - Você acabou de me chamar de lhama!

Volto a marchar em direção a casa de Katniss.

– Está com raiva porque eu disse o que eu acho?

– E você acha que eu gosto de ficar ouvindo os seus xingamentos? - minha voz soa tão fina que isso só confirma o fato de que estou cheia disso. Abro a porta da casa de Katniss sem bater e só percebo isso depois de fazê-lo. Me arrependo de não ter seguido meus bons modos, mas neste momento totalmente os esqueci. - Me poupe, Haymitch.

– Olha só, chegaram - ouço alguém dizer, e quando paro e presto atenção, percebo que foi Cinna. Todos estavam reunidos na sala, pareciam estar conversando calorosamente. - Estávamos falando de vocês.

Ao ouvir as palavras de Cinna, sinto meu estômago congelar.

– E o que, exatamente, vocês estavam falando? - indago, tentando manter a voz firme. Olho rapidamente para Haymitch, que retribui o olhar da mesma forma.

– É - ele diz. - O que estavam falando?

– Só estávamos falando que a Effie é muito paciente - Cinna prossegue.

– Eu no lugar dela teria desistido de ser escolta, porque deve ser horrível aturar você, Haymitch - ouço Katniss dizer. Uma risada nasce dentro de mim, mas a contenho. Olho novamente para Haymitch e ele parece estar impaciente com os comentários.

– Esse trabalho requer muita paciência mesmo, queridinha - digo por fim. Haymitch bufa e se joga numa poltrona.

– Virei motivo de piada agora? - ele pergunta, parecendo um pouco revoltado. Isso acaba me arrancando a risada que até então estava escondendo.

Esperamos mais um pouco até Peeta finalmente nos chamar para a sala de jantar, onde pudemos comer à vontade. Haymitch acaba não comendo tanto porque não tinha bebida para ele. "Vou comer em casa, então" resmungou.

– Aliás, Haymitch - diz Cinna, pegando mais um pão para comer - vamos dormir na sua casa.

Haymitch se engasga e acaba pegando o primeiro copo que vê pela frente para beber. Continha suco e aquilo o ajudou a fazer uma careta ao tomar, o que fez todos começarem a rir novamente.

Parecia que finalmente as coisas estavam se encaixando. Acho que foi a primeira vez que vi Katniss sorrir de verdade.

~*~

Estou de volta a casa de Haymitch, mas agora acompanhada por toda a equipe de preparação. Paramos na entrada, esperando que o dono nos mostre onde vamos dormir, mas ele leva um pouco de tempo para perceber isso.

– Ah, sim - ele diz. - Tem alguns quartos de hóspedes aqui. Podem se ajeitar em qualquer um deles. Tem lugar pra todo mundo.

– Ótimo - diz Cinna. Em seguida vira-se para mim. - Effie, você vai dormir comigo.

– Por mim tudo bem - respondo. Mas mal chego a dar o primeiro passo para segui-lo e soluço com o susto: - Ah não...

– O que foi? - Cinna indaga.

– Minhas roupas - continuo, com o olhar distante. - Minhas roupas ficaram no trem! - meu tom de voz vai subindo à medida que vou falando. - Não posso dormir com essa roupa!

– Dorme sem, ué - Haymitch diz e sorri sarcasticamente. Lhe lanço um olhar fulminante.

– Muito engraçado, Haymitch.

– Pode usar...

– Eu lhe dou uma das minhas camisas - Haymitch acaba interrompendo Cinna, que, acredito, iria dizer a mesma coisa. Abro a boca para protestar, mas ele também me interrompe. - Prefere dormir assim?

Ainda penso em retrucar, mas ele está certo. Preciso de qualquer coisa confortável para dormir.

Haymitch aponta para o corredor e entra na primeira porta. Cinna entra na segunda e os demais vão seguindo. Reviro os olhos quando percebo que ficarei no quarto ao lado do dele.

– Obrigada - digo quando ele me entrega uma camisa branca.

– De nada - ele diz. Sorrio rapidamente e o deixo parado na porta. Sigo até a próxima porta e entro por ela, sabendo que ele continua me observando.

Por sorte o banheiro não é longe do quarto, então me apresso em tomar um banho e tirar toda a maquiagem que ainda me resta. Antes de sair doo banheiro, olho para os dois lados do corredor para me certificar de que ninguém vai me ver assim. Por sorte a camisa de Haymitch é grande e cobre o meu corpo assim como uma camisola.

Volto para o segundo quarto e vejo Cinna já sentado na cama, trajando um pijama prateado.

– A senhorita está deslumbrante neste modelito - ele comenta e isso me faz rir. - É tendência? Qual a finalidade? Seduzir vitoriosos bêbados do Distrito 12?

– Muito engraçado, Cinna - resmungo e vou até o outro lado da cama. Puxo o lençol e me deito, cobrindo-me em seguida e vejo Cinna fazer o mesmo. Ele se vira de frente para mim e fica me observando.

– Sabe Effie - ele diz - você é uma das poucas mulheres da Capital que ficam bonitas sem maquiagem.

Sinto meu rosto enrubescer e sorrio.

– Se eu não estivesse louca, diria que tem uma queda por mim - acabo dizendo e Cinna ri baixo.

– Isso nunca, querida - ele responde e rimos juntos. - Mas Effie - ele continua após pararmos de rir - se ele começar a gritar, você...

– Eu vou, Cinna - digo, após suspirar. - Tenho que ir.

Cinna sorri, mas noto um olhar brincalhão nele. Pouco tempo depois fechamos os olhos, mas ainda demoro a dormir. Cinna começa a roncar baixo e percebo que não conseguirei tão cedo, até ouvir um barulho bastante familiar vindo do quarto ao lado: os gritos abafados de Haymitch.

Reviro os olhos e conto até dez, mas ele não para. Viro-me, então, para me levantar e, sem olhar para trás para constar que Cinna está dormindo, saio do quarto, em direção a primeira porta do corredor. Ao abri-la, espio para saber como está o comportamento de Haymitch e percebo-o da mesma forma que estava no centro de treinamento. Me pergunto se esses pesadelos também são tão frequentes aqui, ou são menos.

Entro a passos leves e o chamo, mas como sempre ele não me ouve. Repito o que fiz quando estávamos no centro de treinamento e acaricio o seu rosto até vê-lo relaxar. Aos poucos, Haymitch abre os olhos e me vê.

– Sabia que você viria - ele murmura e sorri. Levo dois segundos para finalmente entender o que está se passando.

– Você fez isso de propósito? - indago, querendo berrar. Levanto-me de súbito e começo a andar de um lado para o outro. - Haymitch, isso foi ridículo - digo e ponho as mãos na cintura.

– Talvez - ele diz, se levantando lentamente. O sorriso continua em seus lábios. - Mas eu consegui o que eu queria - ele continua, caminhando na minha direção. Começo a recuar à medida que ele se aproxima.

– Sabe que posso sair da mesma forma que entrei - retruco, com a voz trêmula. Olho para a porta, mas ela parece estar mais distante que o normal.

– Pode, claro que pode - Haymitch murmura, agora mais perto. Atrás de mim agora só há a parede e não tenho como recuar mais, o que o faz ficar ainda mais próximo. Ele para quando a distância entre nós é mínima. - Mas você quer?

Ele já fez a pergunta sabendo a resposta.

– Não - sussurro. Haymitch sorri e se aproxima ainda mais, encostando seus lábios nos meus. Ponho as mãos na sua cintura e trago-o para mais perto, grudando nossos corpos. Nos beijamos até nossos pulmões suplicarem por ar, então tomamos um pouco de distância.

– Ta com sono? - ele pergunta. Balanço a cabeça afirmando. - Ótimo.

Então Haymitch me pega no colo e me leva até a cama.