CAPÍTULO V

– Teve uma boa noite, acredito - ele começa a dizer quando ainda estou fechando a porta. Tento dizer algo, mas nenhum som sai da minha boca, então desisto e deixo-o prosseguir. - E por que não dizer uma ótima noite?

– Cinna, eu... - tento dizer algo, mas ele levanta o dedo indicador, fazendo-me calar novamente. Não ouso desobedecê-lo.

– Você vai me contar tudo enquanto arrumo você - ele diz e sinto um alívio tomar conta de mim. Abro um sorriso e corro para o banheiro para tomar um banho enquanto Cinna procura por um vestido.

Acabo não levando muito tempo no banho. A pressa me obriga a não demorar. Quando saio, vejo Cinna segurando uma peruca azul e em cima da cama está um vestido lilás que ele me ajuda a vestir.

– Então - ele começa, enquanto sobe o zíper do meu vestido. - Eu a conheço suficientemente bem para saber que não é de omitir nada de mim - ele se senta num banco ao meu lado e se apoia na mesa, olhando para mim. Tento começar a escolher algum item de maquiagem, mas ele acaba tirando a minha concentração. - Pode começar a contar.

Suspiro e reviro os olhos. Seguro um tubo de base e lhe lanço um olhar rápido antes de começar a passar o produto no meu rosto.

– Você sabe, Cinna - digo. - Fiz o que você pediu.

Cinna abafa uma risada. Olho para ele, confusa.

– Mas eu não pedi nada, Effie! - ele diz e isso me faz refletir. De fato, agora percebi. Ele não havia me pedido nada sobre fazer visitas noturnas a Haymitch. Ele apenas dissera "você pode tudo" e só. Mas isso não era insinuação para que eu acabasse fazendo isso? Ou ele tinha outra ideia, mas deixaria para compartilhá-la depois? De qualquer forma, sinto-me numa cilada.

Termino de passar a base e deposito o tubo na mesa. Baixo meus olhos para todos os itens na minha frente, mas não presto atenção. O silêncio toma conta do ambiente e percebo que ele não dirá nada até que eu me pronuncie.

– Eu dormi com ele - digo de uma só vez. Olho para Cinna e vejo-o me observar com satisfação. - É o suficiente para você?

– Não - e ele responde imediatamente. Franzo o cenho, aguardando que ele prossiga. - Quero detalhes, Effie. Ou você acha que eu vou me contentar só com isso?

Balanço a cabeça e pego um pote com pó de arroz, passando-o aos poucos no rosto.

– Bom - começo a dizer. - Eu tenho ido até o quarto dele... então nós conversamos um pouco... - a cada pausa eu olho para Cinna e ele apenas acompanha com um "hm". - E então eu me sento e o espero dormir. E é só - digo por fim. Termino de passar o pó e começo a tirar o excesso do rosto. Mas quando volto olhar para Cinna, ele continua me fitando da mesma forma.

– Acha mesmo que vou acreditar só nisso? - ele indaga. Bufo, sentindo-me num beco sem saída. Ele não vai me deixar sair até conseguir arrancar tudo de mim. Tudo mesmo. - Vamos, querida, sei que está faltando coisa aí.

Observo a forma como ele me fita. A expectativa que emana do seu olhar. Prendo um sorriso que tenta começar a se formar nos meus lábios e me concentro em olhar para as minhas unhas.

– Nós... - mordo o lábio, tentando encontrar a melhor forma de dizer, mas acabo optando por ser direta. - Nós nos beijamos.

Cinna bate uma palma e aponta para mim.

– Eu sabia! - ele quase grita de entusiasmo. Acabo me assustando um pouco com o seu tom de voz. Mas sua animação acaba me contagiando um pouco. - Eu sabia, Effie! Eu sabia que tinha alguma coisa no meio! Continue! Continue!

– Foi só isso - digo em meio a risadas. - Não aconteceu mais nada, Cinna.

– Sei...

Jogo a esponja do pó em seu rosto e volto a me concentrar na minha maquiagem enquanto continuo respondendo as perguntas intermináveis de Cinna. Me apresso um pouco quando ouço Portia gritar do lado de fora que só falta mais um tributo para Katniss e Peeta finalmente vencerem. Meu coração se enche de felicidade e então corremos para a sala, onde Haymitch já se encontra jogado com sua bebida na mão.

Pigarreio quando passo por ele e sinto seus olhos sobre mim quando me sento ao seu lado. Presto atenção ao que a TV está nos mostrando e vejo Cato, um dos carreiristas, tentando enforcar Peeta, quando finalmente Katniss o atinge com uma flecha. Esplêndida! Digo para mim mesma. Katniss e Peeta se abraçam e meus olhos se enchem de lágrimas. São os vencedores!

– Eles venceram - sussurro, mas todos conseguem me ouvir. Olhos para os lados e vejo o sorriso carregado no rosto de cada um. - São os vitoriosos! - exclamo com o tom de voz mais alto.

Mas não tenho tempo suficiente sequer para começar a comemorar. Quando ouço a voz de Seneca Crane vindo da TV, presto bastante atenção em cada palavra, sentindo meu estômago despencar.

"Saudações aos finalistas da septuagésima quarta edição dos Jogos Vorazes. A mudança anterior foi revogada" Ao ouvir cada palavra, sinto um enjoo se apoderando de mim. "Uma análise mais atenta às regras revelou que apenas um vencedor está autorizado. Boa sorte e que a sorte esteja em seu favor."

Não consigo acreditar no que acabara de ouvir. Apesar de termos garantia de que a vitória estava com o Distrito 12, eu queria os dois vivos. O casal desafortunado que conquistou tanta gente. Agora seria apenas um, como sempre. Mas dessa vez não consigo aceitar.

– Ele não pode fazer isso - quase berro. Olho para Haymitch, mas ele parece estar lamentando. - Pode?

– Ele tem poder para mudar as regras - Haymitch diz e isso me atinge em cheio. - Apesar de aparentar ser extremamente errado, ele é o idealizador dos jogos. Pode fazer o que quiser. Com a permissão de Snow, claro - acrescenta.

Baixo o olhar para o chão e em seguida volto a atenção para a TV. Katniss está com algo nas mãos, mas não consigo identificar.

– Isso é a tal da amora-cadeado? - Portia indaga. Levo alguns segundos até finalmente entender o que está se passando.

– Ela não vai fazer isso - Cinna murmura.

Olho para a minha direita e vejo Haymitch totalmente concentrado na cena. Ele apoia seus cotovelos nas pernas e franze o cenho.

"Juntos" diz Peeta, após Katniss depositar algumas amoras nas mãos dele. "Juntos" ela repete. Sinto um aperto no coração e não quero acreditar no que está prestes a acontecer. Meus olhos estão úmidos novamente. Ponho a mão na boca quando eles começam a levar as mãos com as amoras para suas bocas.

"Parem! Parem!" Soa novamente a voz de Seneca. Todos nos assustamos na hora. Katniss e Peeta olham para cima, tentando entender o que está acontecendo. "Senhoras e senhores, apresento-lhes os vencedores da septuagésima quarta edição dos Jogos Vorazes!"

De repente tudo para ao meu redor. Os sons ficam abafados, mas sei que todos estão comemorando. Mas quando olho para Haymitch, vejo uma ponta de preocupação em meio a todo o seu entusiasmo com a vitória. Não entendo logo de início, então acabo deixando de lado. Abraço Portia e ela começa a chorar, o que acaba me contagiando um pouco. Quando volto a olhar para a TV, o casal está sendo levado por um aerodeslizador.

– Espera - digo. - O que vamos fazer agora?

Todos ficam em silêncio. Nunca tivemos um vitorioso do Distrito 12, a não ser o que estava a nossa frente, terminando de virar mais uma dose. Cruzo os braços e pigarreio, chamando a sua atenção. Após virar o copo, Haymitch faz uma pequena careta e em seguida olha para nós, parecendo confuso.

– O que foi? - ele pergunta.

– O que acontece agora? - indago. - Você venceu os jogos. Não há alguém melhor para dizer o que devemos fazer agora.

Haymitch franze o cenho e olha de um para o outro. Percebendo que estamos falando sério, ele pigarreia e põe sua garrafa no centro.

– Primeiro haverá a coroação - ele diz. - Depois disso cada um volta para o seu lugar. A turnê da vitória começará em breve. Lhes serão dadas as instruções: quando irão ao 12, o que farão, e tudo mais.

– Então... - começo a dizer. - então devemos ir andando, não é? A coroação... Temos que prepará-los.

– Claro, princesa - Haymitch diz. Sorrio e sinto mais uma vez um desconforto no estômago. Haymitch olha para Cinna e Portia antes de prosseguir. - Ahn... se importa de falarmos a sós um momento, Effie?

Concordo com a cabeça. Olho para trás e encontro o olhar de Cinna, como se me dissesse que está tudo bem. Mas algo me diz que não está. Haymitch não aparenta estar de bem com a vida hoje.

Depois de alguns instantes, estamos só nós dois na sala. Não consigo olhar para Haymitch de imediato, então permaneço observando o que há a nossa volta.

– Você não consegue fechar essa boca, não é? - ouço-o dizer. Viro-me para encará-lo e vejo um Haymitch nada, nada amigável.

– Está falando do Cinna? - pergunto.

– De quem mais seria?

– Ele descobriu, Haymitch - digo. - Quando cheguei ao meu quarto hoje cedo ele já estava lá. Estava só me esperando para saber o que aconteceu. O que você queria que eu fizesse?

– Ah, não sei, talvez ficar calada!

– Você não manda em mim, Haymitch - retruco. Ele abre a boca para dizer algo, mas o interrompo. - E não venha reclamar, porque eu lhe fiz um favor!

– Um favor - ele repete.

– Claro! Se não fosse por mim, você ainda estaria gritando como um louco à noite.

Haymitch abafa uma risada. O líquido no seu copo balança e quase cai.

– Agora você quer que eu agradeça pelo que fez? - ele indaga. Engulo em seco enquanto ele joga cada palavra de uma vez. - Então presta atenção, queridinha: eu não preciso das suas visitas noturnas. Posso ficar muito bem sem elas.

Aquilo foi como um baque. Por mais que Haymitch fosse frio com todos, aquilo acabou me afetando um pouco. Nas últimas noites ele me mostrara um outro lado dele que até então eu desconhecia. Ele estava apenas sendo o Haymitch de sempre, mas com certeza não pensou antes de falar aquilo.

Assinto com a cabeça e cruzo os braços.

– Tudo bem, Haymitch - digo. - Se prefere assim...

– É, eu prefiro assim.

Concordo com a cabeça e prenso meus lábios. Dou meia-volta e vou até a porta, sem olhar para trás. Não sei se Haymitch está vindo ou se ficou. No momento isso não importa. A única coisa que eu quero é força para segurar as lágrimas que começaram a se formar nos meus olhos.

Tudo que acontece em seguida parece passar num piscar de olhos. Quando vejo Katniss e Peeta, ambos assustados, não penso duas vezes até abraçá-los e aproveitar a ocasião para deixar caírem as lágrimas que estava prendendo. Digo-lhes algumas palavras de conforto, mas parece que Peeta é o único que me ouve. Katniss está com um olhar distante, e não ouso tentar chamar sua atenção.

Durante a coroação, encontro um lugar ao lado de Cinna. Ele me lança um olhar rápido e volta a olhar para frente.

– Haymitch não para de olhar para você - ele diz e olha de lado novamente, mas para além de mim. - Vocês brigaram?

– Mais ou menos - respondo. Cinna parece entender que não estou para conversas e não puxa mais assunto. Assistimos ao restante da coroação, mas não consigo prestar atenção em praticamente nada. Continuo sustentando meu olhar para o que há a minha frente, mesmo sabendo que Haymitch continua olhando para mim de vez em quando.

Continuo evitando-o pelo resto do dia, principalmente quando somos avisados de que o trem que levará os garotos - junto a Haymitch - de volta ao Distrito 12 sairá no dia seguinte. Voltamos ao centro de treinamento e ao chegar ao 12º andar, cada um se dirige ao seu quarto, exceto Haymitch e Katniss, que se distanciam para conversar. Sorrio para Peeta e me despeço dele antes de finalmente rumar para o meu quarto.

Não vejo mais razões para chorar, então a vontade acaba me deixando. Me concentro em apenas me livrar de toda a maquiagem e cair na cama. Quando finalmente o faço, paro um pouco na frente do espelho para ver os meus cabelos loiros e curtos, uns cinco dedos de comprimento. Passo meus dedos por eles, jogando-os para trás e me divirto quando vejo algumas mechas querendo voltar. Sorrio e me direciono a minha cama, deitando-me logo em seguida. Não consigo dormir de imediato. Na minha cabeça há tantas coisas no momento que não há espaço para o sono. Katniss e Peeta estão vivos, estão neste mesmo andar. Dois vitoriosos do Distrito 12 de uma só vez. Me aproximei tanto de Haymitch, mas, ao mesmo tempo, nos distanciamos novamente. E é isso o que acaba tomando conta dos meus pensamentos. Nada do que aconteceu na noite passada sai da minha cabeça e eu nem quero esquecer. Seguro uma almofada e abraço, sentindo-me mais solitária do que nunca.

Ouço três batidas na porta e me assusto. A primeira pessoa que penso é Haymitch, mas tento apagá-lo da mente. Penso em simplesmente ignorar e deixar que essa pessoa desista, mas respiro fundo e me levanto, andando a passos lentos até a porta. E acabo levando outro susto ao abri-la.

– Haymitch?

Seguro a porta ainda entreaberta. Ele não se mexe um centímetro sequer. Haymitch levanta o olhar e encontra rapidamente o meu, desviando logo em seguida.

– É... - ele começa, mas parece estar um pouco perdido. - Eu... posso dormir com você?

– Achei que não precisasse mais de mim.

Haymitch suspira e consegue sustentar o olhar dessa vez.

– Me desculpe pelo que eu disse mais cedo.

Percebo o arrependimento no seu olhar. Ele poderia muito bem colocar a culpa na bebida, apesar de que isso não seria tão convincente, considerando que ele sempre está bêbado. Mas acabo cedendo e me afasto um pouco da porta, deixando-o abri-la. Assim que passa por ela, Haymitch a fecha lentamente e olha para mim. Me pergunto se ficaremos assim pelo resto da noite, mas antes que eu tente encontrar uma resposta, Haymitch se aproxima de mim, põe uma mão no meu rosto e me beija. Beijo este que sequer penso em recusar. Passo os meus braços ao seu redor num abraço e o puxo para mais perto. Sua mão livre alcança a minha cintura, até encostar-me na parede, e nesse momento receio o que possa acontecer a seguir. Afasto sua mão devagar e tomo um pouco de distância.

– É melhor... dormir.

Haymitch encolhe os ombros e concorda com a cabeça.

– Amanhã você tem que voltar ao Distrito 12, então...

– É, eu sei.

– Ótimo - digo. - Vem. Vamos.

Conduzo Haymitch até a cama e nos deitamos um de frente para o outro. Não ousamos dizer uma palavra sequer, mas sei que ele demora tanto a dormir quanto eu. Mas dessa vez não por estar com medo de pesadelos ou algo do tipo, mas porque estamos concentrados um no outro e sei que ele está me observando da mesma forma, mesmo no escuro, mesmo que seja apenas a minha silhueta.

O sono vai chegando aos poucos e começo a fechar os meus olhos até, finalmente, dormir.