CAPÍTULO XXX

Apresso tanto o passo que pouco tempo depois percebo que estou correndo. Chego ao final do corredor e viro à direita, voltando para aporta que dá no quarto onde está Katniss. Chego mais perto da porta e fico na ponta dos pés para olhar pelo pequeno espaço coberto com vidro que há nela.

Katniss está acordada e posso ver que está inchada. Sinto uma angústia só em pensar que não posso ajudá-la. Ela está ali, tão frágil, tão longe da imagem de tordo que foi criada dela.

Volto ao corredor e me encosto na parede oposta a porta. Cruzo os braços e observo o movimento incessante de pessoas de um lado para o outro.

Passam-se o que acredito que tenham sido um pouco mais de 20 minutos e a porta se abre. Haymitch sai de lá e vem até mim. Olho por cima do seu ombro e vejo Plutarch saindo também.

– Haymitch... - murmuro. - E então? Como ela está?

– Se recuperando.

Assinto com a cabeça e dou de ombros.

– Aconteceu alguma coisa? - Haymitch indaga. - Parece ansiosa.

– Um pouco...

– Então...?

Volto a olhar para Haymitch. Ele espera por uma resposta.

– Eu... - pigarreio. Não pensei que fosse tão difícil apenas contar o que eu fiz, mas então começo a imaginar como Haymitch irá reagir a isso. Imagino-o um pouco alterado, dizendo que não deveria ter feito isso. Ou então me parabenizando pela coragem que tive. Essa segunda alternativa me parece um tanto impossível de acontecer.

Haymitch arqueia as sobrancelhas. Ele ainda está esperando.

Respiro fundo e prossigo.

– Eu fui... fui falar com Peeta - digo e percebo que abaixei a cabeça e fechei os olhos, como quando uma criança diz que fez alguma besteira e está só aguardando que seu pai reclame.

– Você o quê? - ele indaga. Sua voz está um pouco acima do seu tom normal.

Talvez eu tenha dito rápido demais. Agora já foi.

– Eu precisava tirar uma dúvida - explico. Olho para baixo novamente porque não tenho coragem de olhar nos seus olhos agora. - E ele...

– Effie, você é doida? - ele indaga e parece um pouco alterado. Permaneço com a cabeça baixa enquanto espero-o prosseguir. - Você sabe o que ele acabou de fazer com a Katniss?

– Eu sei, mas...

– Sabia que ele podia ter matado você? - ele me interrompe novamente. Sua voz ainda mais alta. Ao nosso redor vejo alguns olhares em nossa direção.

– Haymitch, você vai me ouvir?! - consigo sobrepor a sua voz e, relutante, ele se cala. Sua respiração está pesada. - Que coisa!

Ponho as mãos na cintura e umedeço os lábios. Olho por cima do ombro de Haymitch e vejo Plutarch quase no fim do corredor.

– Plutarch! - chamo-o e vejo Haymitch revirar os olhos. - Plutarch! Pode vir aqui, por favor?

Sem hesitar, Plutarch vem na nossa direção. Haymitch se afasta um pouco mais de mim e isso acaba me incomodando um pouco. O que será que ele está pensando?

– Aconteceu alguma coisa? - ele indaga, olhando de Haymitch para mim.

– Deve ser muito importante - Haymitch diz com uma voz teatral e eu lanço um olhar fulminante para ele. - Se ela o chamou...

– Ataques de ciúmes aqui não, Haymitch - digo. - Por favor.

Vejo-o cruzar os braços e aguardar que eu continue. Viro-me para Plutarch e vejo que ele está prendendo o riso. Mais uma vez. Mas isso acaba me dando uma ponta de coragem para voltar ao assunto.

– Pois bem. O que eu tenho a dizer é que Peeta não é uma ameaça - digo e Plutarch me lança um olhar questionador. - Se ele teve alguma lembrança alterada, foi apenas em relação a Katniss. Os demais continuam sendo o mesmo para ele.

– Como chegou a essa conclusão?

– Bom, eu fui falar com ele - digo rapidamente e antes que Plutarch tente me interromper, prossigo. - Eu estava acompanhada de soldados, claro. Mas de toda forma, eu precisava confirmar. Precisava saber se ele era ou não uma ameaça como pareceu. Então resolvi ir eu mesma tirar essa dúvida.

– E a sua conclusão é...?

– Nós podemos salvá-lo - digo e sinto a empolgação na minha voz. - Claro que vai ser difícil, mas o garoto que falou comigo dentro daquela sala - aponto para atrás de mim - é o mesmo que estava na colheita e é o mesmo que foi para os jogos. O nosso Peeta ainda está vivo em algum lugar naquele monstro que vocês viram.

Percebo que Haymitch esteve calado durante todo o tempo em que eu explicava, mas também não ousei olhar muito para ele.

– Effie, você foi genial! - Plutarch me parabeniza e não deixo de esbanjar um sorriso em agradecimento. - Vou falar com Beetee sobre isso e marcaremos uma reunião para discutirmos o que poderemos fazer em relação a isso. Obrigado mesmo, Effs.

Meu sorriso continua estampado no roso quando Plutarch se distancia e desaparece no fim do corredor.

– Talvez tenha sido uma boa ideia você ter ido falar com ele mesmo. - Haymitch diz e quando percebo, seu rosto está bem próximo ao meu.

– Seria uma boa ideia você me ouvir de vez em quando - retruco e me desvencilho dos seus braços quando ele tenta se aproximar um pouco mais.

Começo a caminhar para o lado oposto ao qual Plutarch se direcionou.

– Ei, Effie! Volta aqui!

– Tchau, Haymitch! - me despeço e continuo andando em direção ao meu compartimento.

~*~

Há um dia a equipe de resgate trouxe os demais tributos e, depois da confusão que houve quando Katniss foi atacada por Peeta, descobri que seu problema é apenas com ela. Desde que falei sobre isso com Plutarch, ele ficou de marcar uma reunião e a mesma estará acontecendo daqui a quinze minutos, segundo a minha programação.

Estou chegando a sala de reunião quando ouço alguém me chamar.

– Effie!

Não preciso me virar para saber que é Haymitch. Tenho o evitado desde ontem. Então apenas paro onde estou.

Sinto-o segurar meu braço e então ele me vira para fitá-lo.

– Ei - ele diz. - Vai ficar me evitando mesmo?

– Talvez - digo secamente.

Haymitch põe uma mão no meu rosto e quando se aproxima, desvio o meu. Talvez eu não queira realmente fugir, mas meu orgulho me impede de ceder a ele e simplesmente aceitar. Então sinto-o encostar seu rosto no meu.

– Desculpa - ele sussurra e eu me sinto péssima. Lembro-me dele batendo na porta do meu compartimento ontem à noite, me pedindo para entrar. "Sei que está acordada" ele disse. Mas eu não abri. Simplesmente o mandei ir embora e, depois de mais algumas tentativas, ele o fez.

Suspiro e fecho os olhos.

– Tá bom, Haymitch - digo sem deixar claro se o perdoei ou não. Olho rapidamente nos seus olhos antes de entrar na sala de reunião e sentir um mal estar quando vejo a presidente Coin.

Me dirijo a uma cadeira bem distante dela e Haymitch senta ao meu lado. Plutarch está sentado a nossa frente, com as mãos dadas em cima da mesa. Ele olha de um para o outro na mesa antes de começar a falar.

– Bom, eu os chamei para essa reunião extraordinária para discutirmos sobre os tributos resgatados - Plutarch diz. - Mais precisamente sobre Peeta Mellark.

"Como alguns já sabem, ele foi telessequestrado e teve suas lembranças alteradas, mas não sabíamos até que ponto elas sofreram essas alterações até algumas informações recentes." seu olhar encontra o meu e sorrio. "Effie Trinket teve coragem suficiente de ir até o próprio Peeta e falar com ele."

– Qualquer um aqui poderia ter feito isso - a voz de Coin parece rasgar no ar. Minhas mãos se fecham em punho.

– Então por que você não fez? - indago e sinto a mão de Haymitch segurar a minha perna. - Já que é tão fácil assim...

– Se você conseguiu, qualquer um consegue - ela diz e eu trinco os dentes.

– Para ser sincero, eu não teria tamanha coragem - Plutarch diz com seu típico sorriso nos lábios e o olhar de Coin passa de mim para ele. - Estamos falando de um garoto que atacou Katniss Everdeen. Um garoto que foi transformado na arma da Capital. Ele não é o Peeta Mellark que chegamos a ver nos jogos. Este que está aqui ainda é desconhecido. E seria ainda mais - acrescenta - se Effie não tivesse falado com ele e nos dado essa chance.

Coin cruza os braços e se recosta na sua cadeira com a cara amarrada.

– Se quisermos levar este plano adiante, temos que ajudá-lo - Plutarch prossegue. - Apenas as lembranças referentes a Katniss foram alteradas. Tanto que Effie conseguiu conversar tranquilamente com ele. Porque ele a reconhece. Ele se lembra dela, assim como tenho certeza de que se lembraria do Haymitch se ele fosse.

– Então isso nos dá a chance de trabalhar esse lado que ainda está "vivo" nele - Beetee intervém. - Não podemos reverter por completo, claro, mas podemos fazer com que ele recupere algumas memórias corretas.

– Lembrando que temos que evitar ao máximo tocar no nome da Katniss enquanto estivermos com ele - acrescento.

– Quanto mais evitarmos, melhor - Beetee diz. - Pelo menos de início. Mas chegará um ponto em que teremos que fazer isso.

Assinto com a cabeça e olho para Coin, que parece concordar. Como se isso fosse o suficiente comparado a tudo que ela fez.

Concluímos a reunião e todos começam a sair da sala. Coin ainda me lança um olhar estranho antes de sair.

Me levanto e Haymitch me acompanha enquanto saímos da sala, mas antes de chegarmos a porta, ele me abraça por trás e beija a curva do meu pescoço, o que acaba me arrancando uma breve risada. Então ele me gira e eu fico de frente para ele. Então se aproxima lentamente, um pouco hesitante, e inclina um pouco a cabeça até encostar seus lábios nos meus. Apenas fecho os olhos e seguro a barra da sua camisa.

– Da próxima vez - digo - me escuta, ta bom?

– Ta bom.

– Ótimo. Porque agora temos um casamento para organizar.

~*~

Os dias seguintes passam tão rápido que nem percebo. Todos os preparativos para o casamento de Finnick e Annie estão prontos e a noiva já está terminando de se arrumar. Por sorte conseguimos um vestido de seda verde que Katniss conseguiu trazer. Ela está simples e deslumbrante ao mesmo tempo e sua delicadeza, por um momento, me deixa com vontade de chorar.

Arrumamos seu cabelo num coque alto, deixando algumas mechas caindo sobre os ombros. E finalmente ela fica pronta.

– Você vai ficar assim mesmo? - ela indaga, apontando para mim. E acaba me pegando de surpresa.

– Ah, não se preocupe, querida - digo, tentando disfarçar minha apreensão. Estava tão ocupada com o visual da noiva que acabei me esquecendo de como eu ficaria na cerimônia. - Quem tem que estar linda é você - me aproximo novamente dela e arrumo o busto do vestido.

– Não, Effie - ela diz com sua voz doce e isso me faz rir um pouco. - Por que não tira essa coisa da cabeça? Aposto que fica melhor sem isso.

– Acho que não, Annie - digo, sentindo-me um pouco sem graça. - Meu cabelo está horrível.

Ela me fita por alguns instantes, estudando-me.

– Você pode usar alguns produtos que me deram hoje... Foi para o casamento, mas foram muitos, olha...

Ela aponta para uma mesinha próxima e posso ver uma quase completa linha de produtos de beleza que, acredito, foram confiscados e agora estão servindo de "mimo" para a noiva. Tenho certeza de que meus olhos estão brilhando agora.

– Você não se importa? - indago.

– Claro que não! Eu quero que você fique linda também.

Sorrio perante sua inesgotável simpatia. E quando ela se distancia para falar com Johanna, avanço nos produtos e decido deixar meu lenço de lado.

Como vantagem, consigo usar alguns poucos produtos e posso sentir a diferença imediatamente. E é quando eu percebo o quanto meu cabelo cresceu realmente: minhas madeixas caem nos ombros e estão um pouco abaixo deles. Quando me olho no espelho, vejo a diferença de quando cheguei neste lugar. O tom não parece tão sem graça, mas aposto que a ocasião ajudou nisso.

Enrolo o lenço no meu pescoço e sigo meu caminho. Tudo parece estar nos seus conformes até chegar no salão e todos os olhares se voltarem para mim. "A noiva não sou eu, não precisam olhar assim", tenho vontade de dizer, mas apenas balanço a cabeça e procuro por Haymitch. Me pergunto se estou tão diferente a ponto de ter todos esses olhares sobre mim.

Então eu o avisto: do outro lado do salão, dessa vez sem a touca que tem usado frequentemente aqui, Haymitch encontra o meu olhar e sorri. Ele começa a caminhar na minha direção e eu faço o mesmo. As pessoas mais próximas parecem estar nos dando passagem, formando um corredor entre nós. Por um momento me esqueço do casamento.

Paramos um de frente para o outro.

– Será que me concede a honra de acompanhá-la, Trinket?

Franzo o cenho.

– Por que não, Abernathy?

Ele me oferece o braço e caminhamos entre os demais até onde ele estava. E a cerimônia não demora a começar. Logo Annie aparece no vestido verde e é ovacionada enquanto caminha lentamente até Finnick.

Não sabia o quão emocionada eu estava até sentir as lágrimas caírem quando Annie disse "sim". Haymitch me pergunta se está tudo bem e eu apenas balanço a cabeça num sim, adiantando-me em enxugar o rosto com as costas das mãos. Ele se posiciona atrás de mim e passa os braços ao meu redor num abraço, enquanto observamos os noivos se beijarem.

– Não acredito que me esconderam isso o tempo todo! - soa a voz de Katniss atrás de nós. Ela para na nossa frente e sua expressão é de total surpresa.

– Não tivemos uma oportunidade - Haymitch diz e eu concordo com a cabeça, prendendo o riso.

Katniss cruza os braços e olha dele para mim.

– Há quanto tempo?

– Durante a septuagésima quarta edição dos Jogos - Haymitch responde por mim e acabo me lembrando de tudo como se fosse ontem. Seus pesadelos, nossas conversas, nossa aproximação...

Katniss fica boquiaberta.

– Deviam ter contado!

– Somos muito discretos, queridinha - digo e dou uma piscadela.

– Sei... Estou vendo essa discrição de vocês... Mas tudo bem, vou deixá-los se divertindo, mas depois vocês me devem explicações!

– Claro, Katniss.

Ela se afasta e nos deixa a sós novamente. Ele aperta um pouco o abraço e afunda o rosto na curva do meu pescoço por três segundos, voltando ao normal em seguida.

Acompanhamos o resto da cerimônia e uma música lenta começa a tocar. Os noivos vão ao centro do salão onde a festa está acontecendo e começam a valsa. A bebida servida não é nada mais além de suco e afins, logo não preciso me preocupar com Haymitch tendo alguma recaída.

A primeira música termina e os noivos se afastam. Então alguns casais começam a dançar a música seguinte, também lenta.

Haymitch segura minha mão e me conduz até o centro o salão. Sua mão livre alcança a minha cintura e eu pouso a minha no seu ombro. Então começamos a nos balançar lentamente, seguindo o ritmo da música.

– Seu cabelo está maior - ele diz.

– Um pouco.

– Está sim.

Sorrio e encosto meu rosto no seu. E neste momento sinto que poderia estar em qualquer lugar, menos aqui. A tensão rotineira do Distrito 13 não existe agora e esse clima de festa serviu como uma âncora para qualquer um que esteja neste lugar.

Haymitch solta minha mão e passa a segurar minha cintura com as duas, então passo as minhas em volta do seu pescoço.

– Me surpreendo com a facilidade que eles tem em encontrar a felicidade - comento enquanto penso nos noivos. O sorriso esbanjado em seus rostos. Nada de falsidade. Simples e perfeitos.

– Encontraremos a nossa quando a guerra acabar - ele sussurra no meu ouvido. - Eu prometo.

Tomo um pouco de distância para olhar nos seus olhos e sorrio. Então Haymitch se inclina um pouco e me beija. Ali mesmo, no meio do salão, ente tudo e todos, sem nos preocupar mais com o que pensariam disso. A escolta e o mentor, que apenas se aturavam e agora eu simplesmente não consigo me imaginar sem ele ao meu lado. Ali, no meio de todos, nos braços de Haymitch, pude me sentir completa e esquecer todos os nossos problemas. Era nosso pequeno momento de paz em meio a toda a confusão.

Nosso momento de ter esperança.