Sam

Naquela manhã decidi correr pelo bairro. Eu quase nunca fazia isso e tinha tirado o dia de folga. 

Algo me incomodava muito e tirava meu sono há dias. Não é como se eu não soubesse o que era. Eu sabia. Nem em minha própria mente eu queria admitir: meu passado como caçador. 

Essa era uma parte da minha vida que eu gostaria de esquecer para sempre. Foram tantas perdas ao longo dela e quando percebi que a vida de caçador era esperar uma morte precoce, eu simplesmente desisti de tudo. 

Talvez eu não queira esquecer tudo como caçador, porque foi assim que conheci Alanis e nunca esqueceria meus momentos com ela. É um tanto clichê, mas acho que ela me salvou de diversas formas, até de mim mesmo. 

Enquanto corria e pensava na vida pensei em passar na casa de Kaira, era sempre bom conversar com ela. Corri até sua rua mas o que vi lá me impediu de continuar com minha visita então sentei em um banco que me dava a visão para a casa dela e fiquei observando Leanne com Kaira. Elas pareciam estar treinando, parece que Kaira estava certa e como discordar dela?! 

Era tão estranho observá-las, Leanne e Alanis eram tão parecidas que a mera imagem de Leanne e Kaira juntas já causava nostalgia. Acho que Kaira sentia o mesmo. 

Estranhei elas estarem treinando tão cedo mas devia ser regra da Kaira. "Nunca vi uma professora tão brava” era o que Alanis mais falava e mesmo assim elas eram inseparáveis. 

Depois de algum tempo voltei para casa.

Leanne

Kaira me fez treinar direto, eu estava cansada e estava cansada de toda a arrogância dela para cima de mim. Eu estava no meu máximo e com um péssimo humor.

— Kaira, eu to cansada!! - exclamei com as mãos na coxa ofegante depois de correr 10km. 

— Parece que eu ligo? - perguntou ela sentando na escadaria em frente a sua casa tomando uma xícara de chá. - Por que parou?

— Você só fica sentada e olhando eu fazer esses exercícios. Daqui a pouco vai me mandar tirar e colocar o casaco. - debochei. - Eu acho que…

— Quando começa assim, eu sei que coisa boa não vai ser.. - Kaira comentou colocando o chá ao seu lado. 

— Eu acho que você está velha demais para correr e fica ME mandando correr. Como se aguentasse fazer o que eu tenho feito por semanas - eu a desafiei. - Ja faz semanas que eu tenho treinado todo tipo de luta e condicionamento físico, como se isso fosse ajudar em algum tipo de magia. - desabafei irritada.

— Ah, você acha que isso não é pra nada e, pior, que sou velha? - Kaira questionou em ironia. - Tudo bem - Kaira se levantou e se aproximou esfregando as mãos.

— Você não tem uns 1000 anos? - perguntei.

— Eu pareço ter 1000 anos? - ela retrucou. Kaira era linda com os cabelos dourados e longos, estava em forma. Eu não daria mais que 30 anos para ela. Kaira andou até ficar de frente para mim a mais ou menos 10m.

— O que você vai fazer? - perguntei me arrependendo de tê-la questionado. 

— Vou mostrar o quão velha eu sou. - ela disse tirando o casaco de pele por causa do frio. Ficou apenas de legging preta, bota e uma blusa de manga comprida roxa. - Vamos, posição de defesa. - ela se preparou posicionando um pé atrás e um na frente como havia me ensinado mas a posição das mãos eram diferentes das que ela havia me ensinado. Me preparei também. - vamos fazer assim, se você conseguir encostar em mim em qualquer ataque eu nunca mais uso magia em você e terá folga pelo resto do dia. - Encostar nela? Seria fácil.

— E você vai me ensinar magia imediatamente? 

— Claro, Leanne. Agora, se eu te derrubar e te imobilizar em exatos… - ela olhou o relógio no pulso - 28 segundos, você vai seguir minhas aulas sem reclamar. 

— Feito. - Aceitei. Olhei bem para cada movimento dela e esperei a brecha para atacar. 

Assim que percebi ela desviando o olhar tentei acertar um soco direto como distração para acertar sua perna.

— Previsível demais - Kaira empurrou minha nuca para baixo e usou minhas costas de apoiou, girou no ar e assim que encostou um pé no chão puxou o meu pé de trás me fazendo cair de cara no chão. Respirei fundo. 

— Ainda tem 10 segundos. Quer desistir agora? - ela perguntou ao meu lado. Tentei me levantar, mas Kaira colocou um pé em minhas costas me impedindo de mover bruscamente, apenas a tempo de praguejar: 

— “Rhewi" - Kaira recitou o encantamento e eu perdi todos os meus movimentos. Estava congelada no chão. - 26, 27 e 28— ela disse terminando a contagem. - Parece que eu ganhei. - Ela me liberou do feitiço.

— Não vale, você usou magia. - acusei ela, me virando e levantando. 

— Nunca disse que não valia. - ela se defendeu. - Você podia usar também se quisesse. - ela disse simples. 

— Como? - exclamei brava - você não me ensinou a usar magia. 

— Então, antes de me desafiar de novo,  tente escutar e aprender com as minhas aulas e talvez tenhamos uma luta decente. - ela disse apoiando os braços na cintura e me encarou desafiando uma resposta a altura. Cruzei os braços e bufei. 

De repente, a expressão de Kaira mudou completamente, antes estava sorrindo e agora ficou séria, quase triste. Como se lembrasse de algo. 

— Kaira? - chamei. Ela não estava prestando atenção. Aproveitei a chance e pisei para trás antes de tentar dar uma joelhada na lateral do seu corpo mas ela pegou minha perna e me jogou para trás e eu estava novamente no chão. 

— Você é igualzinho ela. Comete o mesmo erro de movimentar o pé antes de atacar. - Kaira comentou baixinho, quase pensando alto. 

— Você tá falando da minha mãe, né? Alanis. Meu pai contou sobre ela. - afirmei do chão, mais como um ataque do que uma afirmação. Kaira se diz tão poderosa e amiga da minha mãe que algo não me deixava dormir.

— …e é tão chata quanto ela. - Kaira voltou a sua realidade e grosseria de sempre. 

—  Meu pai fala que somos parecidas. - Kaira me atacava tanto que achei algo em que podia atacar de volta - você me olha e se lembra dela, deve ser cruel. Você parece se sentir mal por ela mas duvido que você estava lá para protegê-la quando a mataram - Kaira baixou o olhar pela primeira vez.

— Não insinue coisas que você não tem conhecimento. Meça suas palavras, Leanne. Você pode até se parecer fisicamente com ela, mas Alanis pelo menos era educada. - Kaira me censurou e senti medo. Era algo em seu tom de voz. Eu definitivamente não queria pegar Kaira em seu mau humor. - Você não tem que correr mais 10km, não? - me levantei e me preparei para correr. - Depois você está dispensada. Se ficar aqui é capaz de eu querer te jogar em um lago congelado. 

— Mas não vamos ter mais aulas? - Kaira se virou e andou de volta até sua casa. 

— Eu disse que teríamos mais aulas hoje? - ela perguntou, eu não respondi mas estava implícito - Então acho que não. Esteja aqui amanhã às 5 da manhã em ponto. 

Xx

Passei o resto do dia descansando. 

— Lee, você está bem? - meu pai apareceu na porta trazendo outro saco de gelo. - têm voltado machucada todos os dias. 

— Tenho feito alguns treinos extras da aula de karatê. - menti. Tentei sorrir mas os efeitos da aula da Kaira eram gritantes e bem roxos. 

— Tem que pegar mais leve. - ele disse se sentando na ponta da minha cama. Assenti me virando de lado e fechando os olhos.

— Acho que vou dormir, pai. - comentei - boa noite.

— Mas ainda são 7pm. Você sequer jantou. 

— Eu estou bem. Tomo um café da manhã mais reforçado. - sorri fraco.

— Certo. Boa noite, filha. - ele disse e beijou minha testa saindo do quarto logo em seguida. 

Assim que fechei os olhos, pareceram segundos até meu despertador tocar às 4am. 

— Eu te odeio, Kaira. - resmunguei me levantando da cama. Coloquei uma legging, uma regata preta e um casaco branco. Prendi os cabelos e sai de casa. 

Eu havia refletido bastante sobre o que havia falado para Kaira ontem e eu devia um pedido de desculpas. Desde que as aulas começaram eu estava tendo muitos ataques de raiva o que não era meu normal. - considerando que acabei: de descobrir que tenho “magia” e sobre minha mãe, um pouco de revolta era até aceitável.

Quando passei na cafeteria de sempre comprei 2 cafés, um para mim e um para Kaira. Eu não sabia como aquele café era feito, mas era maravilhoso. Até Kaira poderia gostar, a não ser que ela preferisse o café amargo como ela - revirei os olhos e fui correr para a casa dela. 

Eu reclamava muito das aulas da Kaira mas não podia negar que elas tinham me ajudado com resistência e estavam me mantendo em forma. 

— Está atrasada. - Kaira disse de braços cruzados esperando em frente a sua casa. Olhei o relógio.

— São 5:02. - exclamei. 

— Se me recordo, eu disse 5 em ponto e não 5:02. - respirei fundo e revirei os olhos. 

— Kaira, me desculpe pelo que disse ontem - comecei me desculpando - trouxe uma oferta de paz. - ofereci o café para ela. 

— Não vou tomar isso. Cafeína confunde e atrapalha a parte do cérebro responsável pela magia. - ela disse com desdém. Como se eu devesse saber. 

— Certo. Eu tomo depois. - deixei perto da escadaria e tirei meu casaco. 

— Eu falo que essa porcaria atrapalha e inibe seu cérebro e você diz que vai tomar depois? - Kaira perguntou. - Meu Deus, Leanne, joga isso fora. - ela mandou. 

— Olha eu nem uso magia, por que deveria deixar de tomar meu café? - respondi me alongando.

— Surpresa - ela disse com falsa felicidade - Vamos começar com magia hoje. - ela bateu palmas. - Se aqueça rápido.

— Mas eu tomei café antes de vir. - ela me olhou e respondeu:

— Isso não é problema meu. - Ela se sentou na escadaria me indicando alguns aquecimentos e posições de ataque e defesa para treinar. 

— Kaira - chamei mais calma. Ela me olhou. - Por que preciso treinar combate? - senti que ela pensou em responder do jeito dela mas ela pensou um pouco e disse:

— Porque eu prometi a sua mãe que te protegeria. E é o que estou fazendo, você precisa aprender a se defender ainda mais depois do ataque que sofreu daquele demônio. - Kaira respondeu séria. 

— Calma - liguei os pontos - Christian é um demônio? - exclamei surpresa - E eu não tenho um feitiço que me protege? 

— Demorou demais para perceber, querida. Por que acha que se sentia desconfortável perto dele? Salezianos e demônios tem uma certa rixa interna por assim dizer. E… não dependa de um feitiço que pode acabar logo. Eu mandei você parar de treinar o chute lateral? - voltei ao movimento - Leanne, para de pisar atrás antes de fazer o movimento - Kaira esbravejou. Corrigi e refiz o movimento. - Bom, mas não perfeito. - respirei fundo e continuei. 

— Você disse outro dia que o feitiço de proteção me protegia até de mim mesma, como vou usar magia? - perguntei sem sair do treino.

— Você só vai treinar a pronúncia do galês e trabalhar a mente. Quando você estiver forte o suficiente não haverá feitiço que te impeça de usar sua magia, ela faz parte de você. - assenti. 

Passado mais uns 40 minutos Kaira me mandou parar e tomar uma água. Quando voltei ela estava empilhando alguns gravetos. 

— Vou te ensinar o básico: fogo. - ela anunciou. - Me observe. - ela veio até ao meu lado e disse com convicção:

— Incendia. - e então os gravetos explodiram em chamas. 

— Wooow - me assustei pulando para trás. Kaira se aproximou da fogueira e com um movimento circular do braço absorveu as chamas. - Mas parece que os gravetos nem queimaram. - comentei

— Isso que difere um feiticeiro qualquer de um verdadeiro e bom saleziano. - ela disse se gabando. 

— Minha mãe conseguia fazer isso? - não pude deixar de perguntar. - me desculpe, mas você é a melhor fonte sobre essa parte da vida da minha mãe já que meu pai não sabia - comentei baixinho. 

— Tudo bem, eu posso contar tudo o que quiser. - ela disse quase que triste por mim - Sim. Podemos dizer que Alanis tinha o dom para ser feiticeira. - Ela se voltou para mim. - Agora, sua vez. Leanne, você precisa dizer com convicção como se soubesse que o fogo vai aparecer lá, ao mesmo tempo precisa mentalizar a chama aparecendo. Diga o feitiço.

— Incendía?!— eu disse quase como uma pergunta. 

— Não pergunte para mim, faça! E é "Incêndia" - ela deu ênfase no “e" - e não “incendía”. - me imitou - De novo. - Respirei fundo e tentei mais uma vez. 

— Não se preocupe, não é para você conseguir fazer uma chama, ainda mais que tomou aquele café horroroso - ela deu de ombros. - Se quiser pode usar os braços para indicar o lugar. Alguns feiticeiros usam essa técnica pra direcional melhor - assenti.

— Mentalizar, hã?! - pensei alto. Fechei os olhos e mentalizei uma fogueira imensa que dominaria todo o céu. Foi a primeira imagem que apareceu em minha cabeça. - INCENDIA. - gritei com uma ferocidade e conhecimento mágico que não pareciam meus. Eu senti como se todas as células do meu corpo vibrassem e escorregassem do meu corpo para o conjunto de galhos. Era uma sensação maravilhosa. 

— Mas o que? - Kaira disse incrédula. Abri os olhos e, subia aos céus um fogo imenso e forte, dominava muito mais que os galhos talvez um metro a mais de diâmetro no chão. Iluminava toda a rua e parecia muito com a imagem que eu mentalizei. Era assustador mas não pude deixar de sorrir, por mais bizarro que fosse, era uma realização interna ter conseguido. 

Kaira se aproximou do fogo para absorver antes que alguém visse e chamasse os bombeiros.

— Ahhh - Kaira gritou quando tentou encostar no fogo. Ela se queimara. - Leanne - ela gritou meu nome e isso me despertou do transe que aquele fogo me proporcionava. - Se aproxime do fogo e tente puxá-lo para você. - depois que Kaira disse isso acabei por ficar mais hipnotizada pelo fogo e andei até ele como se me chamasse. Quando vi estava quase completamente dentro das chamas e não sentia nada queimar. - LEANNE! - Kaira gritou. Eu estava inebriada pelas chamas que se tornavam negras a partir do meio. 

Kaira se levantou com dificuldade pisou forte no chão e gritou em um galês que parecia bom, não que eu soubesse falar galês:

— "Swyn Dychwelyd” - Kaira estava com as mãos esticadas para o alto como se abrangessem todo o fogo. Ao recitar isso as chamas  formaram círculos ao redor do meu corpo em um redemoinho e se moveram até a mão não machucada de Kaira, que bateu no chão fazendo o fogo seguir esse mesmo trajeto, voltando ao núcleo. As chamas sumiram sob sua mão. Kaira caiu sentada no chão. 

— Ah meu Deus. - eu gritei. Corri até ela. - Kaira, eu… - Kaira não falava nada tentando não gritar por causa da queimadura na mão. Peguei-a no colo e levei até sua casa. - Kaira, o que eu faço? 

— Pega gaze e.. - ela tinha dificuldades para falar - coisas para queimadura, seilá - ela gritou. Corri procurando pela casa e achei gaze. Molhei e corri até Kaira para tentar ajudar. - Leanne, tá bem fácil aqui sabia - disse ela irônica. Coloquei as gazes molhadas sobre as queimaduras.

— Kaira, por que você não se cura? - perguntei mas Kaira estava rangendo os dentes de dor. - Pode melhorar.

— Porque eu não quero Leanne - ela gritou para mim. 

— Precisamos ir para o hospital então.

— Não mesmo! - ela exclamou - Para de conversar e me ajuda. - molhei outra gaze em água gelada e troquei com as antigas. Depois de algum tempo, Kaira relaxou um pouco provavelmente porque a dor diminuíra.

— Kaira, me des… - Eu não terminei de falar. Estava tremendo de medo do castigo que ela me daria. Ela passou o dedo na minha testa.

— O selo de proteção está inteiro. - ela disse. - como você conseguiu fazer aquilo? - Kaira estava pensativa. 

— Eu não sei, só fiz. - respondi - fiz tudo o que você disse e.. 

— Eu sei. Será que… - Kaira ficou pensativa. - Você está bem, Leanne? - ela perguntou com uma feição preocupada. 

— Estou mas.. - perguntei para acabar de uma vez - Você não vai me castigar? - Kaira riu, o máximo que a situação permitia. - Eu sei que sou má, mas nem tanto assim. Não foi sua culpa, eu deveria ter medido o tamanho do seu poder. - Respirei fundo aliviada. - Pode ir para casa. Você precisa descansar. - antes dela falar isso eu não tinha percebido mas estava exausta, parece que o feitiço roubou muito de mim. 

— Mesmo horário amanhã? - perguntei.

— Pode vir às 10am, não vamos precisar nos esconder de ninguém. - Assenti e me despedi. Quando eu já estava na porta, Kaira me chamou.

— Leanne, espere. - me voltei a ela - quero te dar isso. - ela se levantou com dificuldade e foi até sua estante de livros. Pegou um com a capa escura, parecia um diário. - Leia. - ela disse - É o diário da sua mãe, acho que você merece saber mais dela. - Olhei aquilo e não podia acreditar. 

— Muito obrigada - foi a única coisa que consegui dizer. Peguei o diário e fui para casa.