Deficiências escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 1
DEFICIÊNCIAS




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Não é necessário ser nenhum filósofo ou distanciado de toda sociedade para ser capaz de analisá-la sem adicionar-se ao entorno para ter a plena certeza que o sofrimento está tintado em todas as paredes, e que leva o sangue corromper o asfalto, ou o pior prisioneiro em um momento verídico diferir as mais belas palavras ao mundo.
Com cinco sentidos sofremos constantemente, imagine sofrer com o seu olho arrancado, com sua voz retirada, com seu ouvido disfarçado e com seu tato expurgado da sua existência, o nosso pesar muitas vezes não pode ser comparado ao esforço motriz e mordaz que é o combustível de tantos obreiros. Um trem passando pelos trilhos, aproximando-se sorrateiramente, todavia não há como ouvir, como correr, como chorar... Findando, o que resta viver?
Imagine o surdo, viver sem música e não ter os ouvidos para dar as cores ao que os seus olhos veem, ter seus movimentos e reflexos superados por ameaças externas, tentar captar pelo menos o ruído de uma mera mosca. Seria a melhor melodia que ele ouviria em existências.
A arte da retórica. Dizeres e mais dizeres sendo proclamados através da voz, e o bendito, sem poder contorcer suas cordas vocais, um homem renomado diante dele, com uma bela mulher ao seu lado, um carro ali, uma moto por aquele beco, palestrante. Ver de camarote todas as cenas obscenas aos seus olhos deve ser um dilacerante ataque. Se me ouvisse e pudesse responder, diria que seria melhor não ver. Sussurraria em seu ouvido pequeno, “Pegai na pena marquês, expurgai esses vis demônios no papel”.
A cegueira da visão pode ser voluntária ou involuntária. Muitos fecham os olhos voluntariamente, não apenas para dormir em paz em uma noite tempestuosa, porém para não ver o irmão pisoteado como uma formiga aleijada, e poder fechar os olhos automaticamente e agradecer a bela vida que possui. Para o narrador, isso é hipocrisia, chamada também de covardia. O travesseiro não deveria ser mole para todos, contradizendo, devo dizer-lhes que todos receberão o que merecem, não importa o custo, o mecanismo universal levará os flageladores à justiça. Quando seres humanos são privados da visão, por um fato da vida ou no próprio nascimento, devem conviver lado a lado com a sua deficiência. Abraçando Pollyanna, digo que pode haver um ponto positivo com seu lado danoso em plena companhia, em uma sociedade tão truculenta não ver as adversidades pode ser motivo de deleite, ou apenas privação de um male maior, a indignação. Quando a retirada não é por si próprio, não existe fuga, existe resignação e uma mente que adere ao axioma, que certas condições não podem ser alteradas. O lado horrendo, é que ouvir e não poder deixar seu instinto heroico atingir o ápice é prender-se em uma gaiola e ter que viver em prol do outro, talvez essa seja a missão de todos os vencedores da humanidade, que conseguem conviver sem um, dois sentidos naturais.
Ponho em cheque, o valor do tato é inadmissível, sentir a textura, o suor, a água por mais suja que seja, os lábios, a pele, ser privado, nocauteado por isso, deve ser uma sensação pior que uma violenta morte!
Um garoto, na flor da idade, fixando seu olhar não nos olhos da garota amada, mas na sua pele, para seu braços pequeninos, para seu rosto rosado e o seu cabelo dourado. Ele quer a sentir, quer sentir-se vivo, e quando perguntam qual o seu maior desejo, responde com veemência, “quero sentir, quero tocar”. Temos tanto e não valorizamos. Ainda há parte pior nesse processo existencial que muitos passam. Mentalize uma pessoa qualquer, que nasceu com todos os sentidos, sem problema algum, físico. Uma mente brilhante, atleta, sonhador e escritor nas horas vagas, um pensador adormecido passado por provas difíceis. Almeja crescer, almeja sentir.
Infelizmente, relações amorosas se demonstram fugazes, tudo que ele toca parece querer se distanciar, e por um último suspiro, por um último sonho, quer tocar a pele de uma mulher em sua maioria, conhecer as curvas com suas mãos, deixar ser levado pela sutileza de uma alma feminina, seu desejo ultrapassa o sexual, transcende a evolução dos seres. Tocou o céu e percebeu que ainda há sensação melhor, depois de alçar voo e cair demasias vezes, ressentiu que no fenecimento, a solução momentânea para os seus males, estava terrestre.
Imaginou infinitamente, ela deitada no colchão branco, com suas pálpebras baixas, nua, disposta romanticamente na cama. Ele apoiaria seu joelhos no colchão macio e passaria a ponta de seus dedos por todo o seu corpo, ela em toda instância, estaria dividida entre a tênue linha do sonho e da realidade, e deixaria continuar, arrepiando-se e tomando coquetéis sensacionais, suas bocas eventualmente se encontrariam e a descoberta do Pacífico e das Índias continuaria.
As deficiências não são em sua completude sempre físicas, muitos criam suas próprias deficiências, afeiçoam-se a ela, e aprendem a viver formando um par nem sempre belo, mas necessário. Vale dizer, que não há apenas pontos negativos, o narrador está apenas embriagado pelo sofrimento alheio (ou dele), e deixou ser levado, e está sem colhões para redigir uma lista que retire a angústia de alguns.
Você, que não dá valor ao que tem, mutila seu corpo, ou manda danar-se quando um empecilho o atinge, lembre-se que tantos gostariam de estar em seu lugar, e aguentariam isso e muito mais para uma vida sadia. Afinal, qual a sua deficiência?


FIM
29/10/2014


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