Percy Jackson se torna um Comunista escrita por Goldfield


Capítulo 2
II - Meio-sangues de todo o mundo, uni-vos!




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II

“Meio-sangues de todo o mundo, uni-vos!”

Um grande número de meio-sangues se aglomerava na área diante da Casa Grande. Representantes de todos os chalés, desde o de Ares com seus semideuses belicosos (que por algum motivo portavam suas lanças e escudos de torneio, como se tivessem saído para alguma disputa entre os grupos), até os de Hefesto, ocupados com inventos e engenhocas que haviam criado durante o ano e que agora mostravam uns aos outros – ocuparam o gramado. Percy, ainda com a camisa vermelha de Sólon, Annabeth e Grover abriram caminho por entre a multidão para ter uma melhor visão do que acontecia, Silena indo juntar-se às companheiras do chalé de Afrodite.

Diante da sede do Acampamento, o centauro Quíron trotava para lá e para cá numa região mais alta da relva, como se tanto aguardasse quanto medisse as palavras certas para o pronunciamento que se encontrava prestes a dar. Ao seu lado, o diretor “Sr. D” – como era ali conhecido o deus do vinho e da festa Dioniso, castigado pelo pai Zeus com a responsabilidade pelo acampamento – mantinha os braços cruzados e uma expressão emburrada no rosto, demonstrando tanta vontade em estar ali quanto ser torturado por Hades.

A novidade, fechando o trio, ficava por conta do sujeito alto, cabelos loiros lisos e rosto sorridente como se saído de algum outdoor de creme dental, vestindo terno preto impecável e liso sobre uma camisa azulada, uma gravata listrada pendendo do peito. Seria mais um executivo igual àqueles que Percy já tanto vira pelas ruas de Manhattan – se não fosse a coroa de louros em torno da cabeça conferindo-lhe aspecto grego; e pelo olhar de Grover para ela, era certo que o sátiro não pestanejaria em comê-la.

– Jovens aqui presentes, membros do acampamento e demais ouvintes... – Quíron começou desconcertado, como se prestes a anunciar mais alguma missão arriscada para salvar o mundo, embora todos soubessem não ser o caso. – Sejam bem-vindos a mais um verão no Acampamento Meio-Sangue. Antes de mais nada, é preciso que saibam sobre algumas mudanças...

A aglomeração de semideuses trocava olhares incertos e bochichos cada vez mais altos. Percy franziu as sobrancelhas, temendo algo que não gostaria de ouvir – principalmente diante de suas recém-descobertas convicções. Annabeth, como sempre, parecia analisar a situação a um nível bem mais adiantado do que todos ao seu redor... e Grover só continuava a querer comer os louros do sujeito de terno.

– Abra logo o jogo, Quíron! – “Sr. D” adiantou-se, ríspido, com uma lata de Coca-Cola aberta numa das mãos. – Nós estamos quebrados!

Um súbito alvoroço tomou conta da plateia.

– Como assim, “quebrados”? – Clarisse, do chalé de Ares, preocupou-se, a lança meio erguida tal qual estivesse prestes a lançá-la contra algum inimigo invisível às costas dos três adultos discursando. – Nossas defesas caíram? Vamos perder a guerra contra Cronos?

– Quebrados financeiramente, senhorita La Rue – Quíron esclareceu. – Éramos bancados diretamente pelo Olimpo, que, como devem saber, há muito está em crise. O empreendimento de Hefesto de casas populares para os ciclopes acabou se convertendo numa bolha de especulação imobiliária que tem feito os deuses falir. Nossa reserva de dracmas esgotou-se, não há praticamente recurso algum para que continuemos sustentando o Acampamento, sua manutenção e defesas...

– Então? – a voz de Annabeth destacou-se entre a multidão, sabendo que eles já haviam encontrado uma solução ao problema, seja qual fosse.

– O Acampamento Meio-Sangue está sendo privatizado – o centauro respondeu sem mais rodeios. – A partir de agora, estamos fora dos gastos públicos do Olimpo e sob a tutela...

– Minha! – completou o sujeito loiro de terno, finalmente se manifestando. – Sou Kydon, filho de Hermes. Estou aqui representando a KydonCorp, da qual sou acionista majoritário, e que agora detém este acampamento como mais um de seus prósperos investimentos. Sendo um semideus, solidarizo-me com a situação de meus colegas meio-sangues mais novos; e não quero que este lugar, que já acolheu tantos quando não tinham mais lugar aonde ir, feche as portas de maneira alguma. Passei muitos verões aqui e aprendi sobre negócios com um programa de trainees de Hermes que veio recrutar justamente neste acampamento. Os jovens de hoje não podem perder tais oportunidades. Só pedirei em troca, de cada um de vocês, um pouco de trabalho para que mantenhamos vivo este sonho. Sei que não pesará a nenhum de vocês, e já será uma boa preparação para quando deixarem seus chalés e enfrentarem a selva da livre concorrência.

Percy ouvia tudo com crescente raiva, os punhos já fechados e o rosto quase tão vermelho quanto o pano de sua camisa. Julgava os colegas ao seu redor ingênuos demais para compreender a gravidade do que se passava, verdadeiras ovelhas prestes a ser tosquiadas de tudo que tinham – inclusive sua força de trabalho, a capacidade que tinham de criar e influenciar o mundo, ainda por cima com tão pouca idade. Mas ele sabia. Sabia e compreendia o esquema sórdido por trás das palavras daquele desonesto capitalista. Dispôs-se a ouvir mais antes de se manifestar. Deixar que o burguês montasse um pouco mais a própria armadilha antes de Percy acioná-la.

– Trabalhar? – um garoto do chalé de Apolo questionou, fazendo Percy compreender seu incômodo por ter sua capacidade criativa, dom proveniente de seu pai divino, desviada para o trabalho alienado e certamente não assalariado. – Vamos trabalhar com o que, em pleno verão?

– Não encarem isso como trabalho, e sim como... como... – Quíron enrolava-se com as palavras enquanto o Sr. D divertia-se às suas custas, rindo indiscretamente. – Como competição! Uma competição sadia entre vocês, substituindo as lutas com espadas, capturas de bandeira e corridas de biga este verão, após a qual o chalé que tiver mais pontos será premiado!

– Premiado com o que? – Clarisse começou a se interessar, baixando a lança.

– Vagas no Cruzeiro Executivo Junior da KydonCorp com todas as despesas pagas! – o executivo filho de Hermes anunciou abrindo um sorriso ainda mais creme dental. – Além do passeio por Dubai e Cingapura, contarão com cursos e palestras a bordo para se tornarem jovens empreendedores. Os estudantes que mais se destacarem ganharão vagas de estágio em nossa empresa!

– Um cruzeiro para jovens empreendedores? – Annabeth exclamou extasiada, atraindo olhares de estranheza de Grover e principalmente Percy. – Mas que sonho!

Bastava! Era preciso retirar o véu cobrindo os olhos daqueles pobres proto-proletários, aqueles jovens inocentes prestes a serem convertidos por empresários inescrupulosos em novas engrenagens semiescravas da máquina capitalista! Decidido, Percy ergueu a voz e fez a pergunta que acreditava ser capaz de fazer desmoronar toda a ilusão criada por Kydon:

– E no que exatamente nós iremos trabalhar?

Ficando estático, o executivo pigarreou por um instante, surpreendido – e enchendo Percy de ainda maior confiança quando percebeu ter acertado na mosca. O filho de Hermes ajeitou o colarinho, teve seu sorriso tornado amarelo de súbito como se consumido por placas bacterianas mágicas... até que o Sr. D revelou, num tom satisfeito que levava a entender estar se vingando pelos anos e anos passados naquele acampamento que odiava:

– Vocês farão a colheita dos campos de morango e processarão as frutas para a fabricação de iogurte grego.

Desordem geral. Os burburinhos se tornaram berros, os cochichos evoluíram para reclamações em alto e bom som. Vários dos meio-sangues ergueram exaltados os braços para o trio de adultos, e o chalé de Ares reposicionou as armas e escudos. O clima revolucionário diante da ordem capitalista selvagem acabara de tomar o Acampamento, e era o momento de Percy Jackson agir – antes que pautas mais reacionárias fossem colocadas em discussão ou tanto Quíron quanto o Sr. D, junto ao seu novo parceiro burguês, utilizassem o aparato da força para impor sua opinião – e convertessem o gramado numa nova Escadaria de Odessa em pleno Domingo Sangrento.

Abrindo caminho entre os colegas, e deixando para trás um atônito Grover e uma Annabeth que aparentava ser a única empolgada com a situação, o filho de Poseidon ganhou a área mais elevada onde os três adultos se encontravam. Ignorando os olhares ultrajados assim que se posicionou em meio a eles, tendo o imponente cenário da Casa Grande como fundo tal qual um Kremlin, Percy voltou-se à multidão. Era a eles que deveria dirigir seu apelo, conclamá-los à iminente insurreição:

– Meio-sangues! Ficarão parados enquanto o monstro chamado Capitalismo converte nosso maior e mais bonito patrimônio natural, nossos campos de morango, em meio de exploração econômica? Ficarão assistindo à burguesia corromper todas as nossas crenças e valores?

– Peter Jackson, o que pensa estar fazendo? – Sr. D se exaltou, ameaçando fulminar o garoto com a própria ira divina. – Volte para o meio de seus amiguinhos e pare de falar besteiras!

– Cale-se, glutão! – Percy rebateu apontando um dedo ao diretor. – Você e todo seu domínio divino sempre representaram a fartura e luxo da burguesia às custas dos trabalhadores! Não me surpreende estar se unindo a proposta tão mesquinha para nos escravizar!

– Percy, desça daqui e pare de espalhar essas ideias mentirosas! – Quíron repreendeu o semideus num tom que jamais usara. – Tire também esse trapo vermelho e coloque a camisa laranja do Acampamento! Não é melhor nem diferente que nenhum de seus colegas!

– NÃO, vocês não me uniformizarão, não me transformarão em apenas mais um em meio à massa proletária explorada! – bradou Percy, saltando para trás como se atacado pelo próprio Cronos, porém mantendo-se acima da elevação. – Camaradas, ficarão apenas olhando? Assistindo àquele que ousou se erguer por vocês ser massacrado pela elite?

Os semideuses trocaram olhares ainda mais confusos que antes, as exceções sendo Annabeth e Grover, respectivamente demonstrando ódio às palavras de Percy e preocupação com o colega; e os guerreiros do chalé de Ares, incertos se sentiam raiva da hipocrisia dos administradores ou se deliciavam com Percy Jackson finalmente se ferrando. De todo modo, as lanças estavam mais uma vez erguidas – e realmente ameaçadoras.

– O jovem aqui fala em exploração e injustiça, mas de certo tem sido apenas doutrinado por professores marxistas fora deste acampamento... – Kydon afirmou cheio de desdém. – O trabalho nos campos de morango será dividido em turnos e cada meio-sangue terá uma cota diária; ninguém se cansará ou passará de seus limites. O tempo restante será livre e cada trabalhad... digo, cada jovem poderá desfrutá-lo como achar melhor no Acampamento, como em todos os outros verões. O processamento dos morangos para o iogurte, na linha de montagem que estamos construindo perto dos chalés, funcionará pelo mesmo regime; e lembrem-se: não é castigo, nem esforço sem sentido: é uma competição. Querem poder desfrutar dos prêmios oferecidos ao chalé que mais se destacar ou não?

– Não veem a verdade diante de todos vocês, camaradas? – Percy conclamou, apontando agora para o executivo de coroa de louros. – Antes era tão alienado quanto vocês, mas agora todos os símbolos e características do deus de quem esse burguês diz ser filho fazem pleno sentido a mim. Hermes tem um caduceu envolvido por duas serpentes, e eu lhes digo: este sujeito é tão traiçoeiro quanto a mais venenosa serpente! E não me admira Hermes ser a divindade protetora tanto dos comerciantes quanto dos ladrões, já que no Capitalismo eles sempre são o mesmo! Este empresário explorador e imperialista vem falar em oportunidade, porém representa apenas escravidão. É preciso que nos levantemos contra ele e todos que o apoiam!

– Mentiras e mais mentiras! – Kydon rebatia cada vez mais nervoso. – Apenas venho oferecer a vocês um sistema baseado na meritocracia, e este garoto deve ter ficado tão irritado por não ter capacidade de concorrer com vocês! – durante um breve momento, os meio-sangues do chalé de Ares baixaram as lanças e concordaram com a cabeça. – Não importa quem sejam, de onde são ou de que deuses são filhos: se trabalharem duro, sem preguiça, todos têm as mesmas condições de se tornarem senhores do Olimpo!

– Não nos tornaremos nada a não ser escravos do antro capitalista em que o Olimpo se converteu se dermos ouvidos a toda essa falsa ideologia! – o filho de Poseidon apontava agora para todos os três adultos ao seu lado. – Querem passar o resto de suas vidas vendendo sua força de trabalho para fabricar um iogurte que não poderão sequer provar sem gastar o próprio dinheiro que ganharam para fazê-lo? Precisamos destronar a burguesia do Acampamento do mesmo modo que os bolcheviques destronaram o czar Nicolau II e sua laia!

– Nicolau II... – suspirou o Sr. D, olhar distante. – Ah, os Romanov sabiam como dar uma festa...

Completando seu inflamado discurso, Percy retirou de um bolso da calça uma caneta esferográfica – mas, diferente daquela que todos antes conheciam até o último verão, era vermelha com detalhes dourados, possuindo um desenho da cabeça careca de Lênin em alto relevo ao seu redor. Quando o semideus deu um “clique” em sua ponta, o artefato brilhou e começou imediatamente a se expandir em seu punho... mas, para surpresa de todos, não se converteu em sua famosa espada de bronze Contracorrente... e sim numa foice de arco acentuado, a lâmina refletindo o sol e assim ofuscando os olhos de alguns dos jovens na plateia.

– Meio-sangues de todo o mundo... – Percy começou a exclamar, arma erguida à multidão. – Uni-vos!

Glossário:

Bolha imobiliária: Aumento excessivo do preço de imóveis, ocorrendo geralmente por especulação (crença de que a valorização, ou seja, aumento do preço dos imóveis, é eterna e não tem um valor limite) ou excesso de crédito concedido a quem não pode pagar pelo imóvel, criando a ilusão de que a procura por imóveis aumenta sem parar e elevando ainda mais os preços. Uma combinação dos dois fatores foi a causa da grande bolha imobiliária que levou à crise dos EUA, e depois mundial, de 2008 – satirizada nesta fanfic.

Acionista majoritário: Acionista que possui uma quantidade significativa de ações (patrimônio na bolsa de valores, também chamado de “capital social”) da empresa, e que por isso possui controle administrativo maior sobre ela.

Proletariado: Termo da Roma Antiga cujo significado é “aqueles que só têm a prole (filhos) como riqueza”. Dentro do marxismo, é um termo comumente usado para se referir à classe de trabalhadores.

Escadaria de Odessa: Famosa escadaria existente em Odessa, na Ucrânia, construída entre 1837 e 1841. Ficou famosa por ter sido usada como cenário pelo cineasta russo Sergei Eisenstein no filme “Encouraçado Potemkin”, que retrata a Revolução Russa, em 1925. A escadaria acabou mostrada como lugar de um massacre, com a famosa cena do carrinho de bebê escorregando pelos degraus – reproduzida e homenageada em diversos outros filmes.

Domingo Sangrento: 22 de janeiro de 1905, quando uma multidão de manifestantes reivindicando melhorias sociais foi recebida a tiros ao se dirigir ao Palácio de Inverno, residência do czar Nicolau II, em São Petersburgo, Rússia. O incidente iniciou revoltas por todo o país, um “ensaio” para a revolução de 1917, que implantou o socialismo na Rússia.

Kremlin: Complexo de prédios no centro de Moscou, junto à Praça Vermelha, que serve de sede ao governo da Rússia.

Nicolau II: Nascido em 1868, foi o último czar da Rússia, dinastia Romanov. Acabou destronado pela Revolução de 1917 e fuzilado com sua família em 1918.

Vladimir Lênin: Nascido em 1870 e falecido em 1924, foi um militante político russo seguidor das ideias comunistas, líder dos bolcheviques e principal responsável pela Revolução Socialista de 1917.


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