Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 19
A decisão de Soluço




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A celebração corria noite adentro. Pessoas os paravam com frequência para conversar, parabenizar ou confessar seu alívio pela mudança. Vez por outra, seus olhares se cruzavam, estampando a angústia um do outro. Astrid notou. As pessoas a subestimavam por ser uma guerreira exímia e corajosa, mas a verdade é que Astrid tinha mesmo um bom olho para detalhes. Reparou nos olhares angustiados de Soluço e de Merida, em cantos opostos do salão. Nas inspirações entrecortadas, nas respostas monossilábicas, no leve franzir de sobrancelhas de alguém que queria escapar, mas não podia por que não sabia como. Depois da observação inconveniente de Melequento, ela sabia que eles queriam ficar sozinhos e conversar. Mas como poderiam, se as pessoas não lhe permitiam nenhum espaço? Decidida, atravessou o salão, quase ao mesmo tempo em que um senhor idoso deixava Soluço em paz e trocava sua companhia por uma caneca grande de Hidromel. Seus olhos verdes buscaram Merida imediatamente, mas ela estava presa com Dealan a um grupo falante de crianças entusiasmadas. Astrid sorriu. Seria mais fácil do que pensara.

– Merida! - ela exclamou, fazendo sua melhor expressão aborrecida e nervosa. - Você me prometeu que iria mostrar aquela sua manobra de vôo com Dealan ainda essa noite! Você fica por aí conversando e me deixou esperando!

Merida ergueu as sobrancelhas, confusa, mas entendeu o que Astrid pretendia quando Dealan cutucou sua perna com a cauda.

– Ah... Sim... Acabei me esquecendo... Me desculpem, crianças, isso não pode esperar.

– Não. Não pode esperar nem mesmo um minuto. - Astrid confirmou, com urgência.

As crianças estavam prontas para protestar, mas ao verem a severidade estampada no rosto de Astrid, acabaram por fechar os lábios e assentir. Ninguém queria ver Astrid com raiva. Merida desculpou-se outra vez e Astrid segurou seu braço, puxando-a para fora do Grande Salão, mas não antes de olhar para Soluço e lhe dirigir uma piscadela cúmplice e um aceno de cabeça. Ele entendeu a mensagem rapidamente, esgueirando-se pelo Grande Salão para encontrá-las lá fora. Uma brisa soprava constante, mas nem de longe estava frio.

– Obrigada por isso, Astrid. - Merida agradeceu, tomando as mãos dela nas suas enquanto esperavam Soluço sair. - Nunca teria conseguido sair de lá sem você.

– É claro que não teria. Você é muito educada para isso. - ela respondeu, sorrindo.

– Astrid... Tem uma coisa que eu gostaria de perguntar... Quero dizer, se você estiver disposta a responder, claro. - Merida murmurou, soltando as mãos dela em seguida.

O sorriso de Astrid desvaneceu e sua face ficou séria.

– Pode perguntar o que quiser.

– Você e o Soluço... - Merida tentou articular as palavras para formar uma frase decente, mas não conseguiu. Só esperava que Astrid compreendesse o que ela estava tentando dizer, mas que não a ofendesse de alguma maneira. -Você e ele... Quero dizer...

E ela compreendeu. Piscou algumas vezes, depois baixou os olhos para o chão por um momento, pensando no que diria. Em seguida, seu olhar encontrou o dela.

– Nós dois estivemos juntos. - Astrid respondeu, confirmando as suspeitas de Merida, mas tentando não dar muitos detalhes por medo de magoá-la de alguma forma.

Merida abriu a boca para falar, mas Astrid a interrompeu.

– Não deu certo. Soluço e eu... Bom... Soluço será líder, um dia. Na época Berk era só uma ilha isolada e as coisas eram mais simples. Depois vieram os dragões, e outras pessoas, amigos e lugares. Outros tipos de deveres. Foi quando eu soube que as coisas não continuariam com eram. Que eu não teria de ser somente a "esposa do líder" - ela disse as três palavras com um leve tremor na voz. - As pessoas esperariam coisas de mim. Que eu fosse um exemplo. Um modelo a ser seguido. Eu perderia muito da minha liberdade. E aquilo me assustou. - Astrid deu um sorrisinho sem graça e desviou o olhar, constrangida.

Merida olhava para ela incrédula com a revelação, tentando imaginar como qualquer coisa poderia assustar Astrid.

– Você nunca disse a ele? - ela perguntou.

– Soluço já tinha muito com que se preocupar. Ele tinha acabado de perder a perna, houve a academia, missões para cada vez mais longe. - ela suspirou. - Então, quando Estóico procurou meus pais para firmar um compromisso sério, eu disse não. Não expliquei nada, é claro. Soluço e eu mantivemos nosso relacionamento às escondidas e ele nunca me perguntou por que eu recusei. Nós nos encontrávamos de vez em quando e... - ela corou, evitando o olhar de Merida. - Desculpe. Eu nunca disse nada disso a ninguém, mas você tem o direito de saber, Merida.

Merida assentiu em silêncio, pensando nas razões de Astrid. Por mais estranho que aquilo tudo parecesse, em nenhum momento ela sentiu ciúme pelo que Astrid lhe dissera. A guerreira interpretou seu silêncio por raiva e se atrapalhou com as palavras.

– Merida, você não tem nenhum motivo para se sentir insegura com relação a ele. Veja, desde que Estóico recebeu a convocação dos seus pais, nós nunca mais estivemos juntos. Quando soube do seu noivado, eu me afastei. E eu vou me manter assim, eu prometo. Se isso estiver te incomodando, eu posso até mesmo... - Astrid se engasgou no meio da frase ao ver Merida sorrindo. Aquilo era a última coisa que ela esperava.

– Não. Você não tem que se afastar dele por minha causa. Vocês são amigos. E nós duas somos amigas. Você poderia ter mentido, mas me contou a verdade. Eu confio em você, Astrid. E eu entendo em parte o que você passou, mesmo que pareça estranho.

Merida com certeza sabia o que era ser o modelo para outras pessoas e não conseguir corresponder às expectativas dos outros. Mas se por um lado, casar-se com Soluço seria a morte da liberdade de Astrid, para Merida seria o fim de uma vida de enclausuramento. A sociedade viking permitia às mulheres um mundo de liberdades muito maior do que ela tinha em Dunbroch. Claro que Merida não o via apenas como portador das chaves para suas algemas. Ela o amava. Uma rápida faísca acendeu algo em sua mente. Hesitou um pouco, mas no fim, conseguiu coragem para perguntar.

– Você o ama? - Merida perguntou, esperando que Astrid demorasse para responder, parando para pensar bem na resposta que a machucaria menos. Mas Astrid não era dada a mentiras. A resposta veio rápida.

– Sim. - Astrid confirmou, vendo Merida prender a respiração. - Mas eu não posso ser o que ele precisa que eu seja. Você pode, e você o faz feliz. Eu vejo isso nele. Pode ter certeza de que se você o fizesse sofrer, Merida, eu nunca abriria mão dele tão facilmente. Você iria encontrar uma rival de peso.

Merida não pôde deixar de sorrir com o que Astrid dissera. Tentou pensar em como se sentia a respeito, mas não conseguiu. Astrid fizera uma escolha, entre sua liberdade e seu amor, e decidiu que a primeira opção fora mais importante. Nem por isso doera menos, claro.

Ao olhar para ela, Merida soube que deveria sentir ciúmes. Astrid era bonita, divertida, corajosa, inteligente. Era uma reação totalmente natural e esperada, mas ela não conseguiu. O ciúme não veio, e em seu lugar, surgiu a admiração, tão forte e tão pura que Merida simplesmente não pôde guardá-la dentro de si e a deixou sair, puxando Astrid para um abraço. Ela se assustou com o contato repentino, mas não demorou muito a passar seus braços em volta dela e se deixar levar também.

Era reconfortante saber que Merida jamais pensaria menos dela por isso. Era uma amiga, mais do que qualquer outra garota viking tinha sido para Astrid e saber que não a desprezava tinha sido um grande alívio.

As duas se separaram ao ouvir Soluço pigarrear atrás delas, trocando o peso de um pé para o outro. Ele as olhou com curiosidade evidente.

– Eu estou interrompendo algo? - ele perguntou, divertido com a estranha ironia da pergunta.

– Eu estava agradecendo a Astrid por me ajudar a sair do Grande Salão. - Merida mentiu.

– E eu estava dizendo a ela que podia contar comigo sempre. - Astrid respondeu, e ela e Merida se olharam como se soubessem de alguma piada muito engraçada, mas não quisessem compartilhar com Soluço. - Agora, se me dão licença, preciso ir dormir. Já tive minha cota de hidromel por hoje, obrigada.

– Boa noite, Astrid. - cumprimentou Soluço. A guerreira apenas acenou enquanto caminhava para sua casa.

_____

Soluço e Merida sentaram-se no cais em silêncio. Nenhum dos dois sabia exatamente o que queria dizer, embora sentissem que queriam dizer alguma coisa.

Lado a lado, eles simplesmente encaravam o horizonte. Ainda em silêncio, Soluço passou um dos braços em volta dos ombros dela, abraçando-a e a puxando mais para perto.

– Meu pai vai começar a organizar os barcos para a sua viagem de volta amanhã. –comentou, tentando soar o mais natural possível.

Merida assentiu. Não tinha vontade de falar. Falar só lembraria as coisas que iriam acontecer. Só queria ficar ao lado dele o máximo possível e aproveitar aquele momento juntos.

Merida procurou a outra mão dele e a segurou, olhando para seus dedos entrelaçados. Havia conseguido. Tinha vencido o feitiço, alcançado o respeito e a admiração entre os vikings, feito novos amigos... Mas isso não a fazia se sentir melhor. Por que no fim, deixaria tudo aquilo para trás. Merida sorriu. Sempre conseguia o que queria de uma maneira estranha, apenas para descobrir, algum tempo depois que aquilo não era o que queria realmente.

– Eu... - Soluço começou a falar, mas foi bruscamente interrompido por Merida.

– Eu falei com seu pai. - Merida cortou, sem olhar para ele, ainda encarando o mar.

– Falou? - Soluço perguntou, apenas para encorajá-la a continuar.

– Sim. Eu queria me desculpar, por tudo. O feitiço... - ela parou, inspirando fundo para reorganizar as ideias. Então olhou em seus olhos antes de continuar. - Eu sei que eu já lhe disse isso um milhão de vezes, mas eu realmente sinto muito, Soluço.

Soluço retirou o braço de seus ombros e segurou suas mãos nas suas.

– Eu é que devo me desculpar. - ele falou, suprimindo um sorriso ao ver os olhos de Merida se arregalarem. Ela abriu a boca para falar, mas ele a silenciou pousando o indicador em seus lábios. - Uma parte disso também foi culpa minha. Eu apareci na sua vida, sem ser convidado e simplesmente presumi que você queria a mesma coisa que eu. Eu estava tão encantado com os benefícios que o acordo traria que eu me esqueci de olhar para a parte mais importante dele. - seu polegar girou sobre o dorso da mão de Merida, em um movimento carinhoso. - Eu nunca perguntei o que você queria, Merida.

– O que eu queria... - ela murmurou, mas um olhar de Soluço a silenciou. Ele ainda não tinha terminado. Não pôde deixar de pensar que na época, se Soluço tivesse mesmo perguntado o que ela queria, não haveria casamento e ela estaria em um lugar bem diferente agora.

– Eu sei o que eu quero. Quero que você fique. Não como uma refém, nem mesmo como uma hóspede, mas como minha esposa. Isso é o que eu quero. – ele disse, em um tom firme. - Mas eu também quero que você seja realmente livre para fazer as suas próprias escolhas. Quero que você possa medir as possibilidades e escolher. Quero que me dê uma resposta positiva, não por que é o que os outros esperam, mas por que é o que você quer fazer. Eu quero que a escolha pertença a você, por que no fim, ela é realmente sua.

Ele soltou suas mãos e segurou o rosto dela em ambos os lados. Merida fechou os olhos esperando o beijo que não veio. Mas ao invés de tocarem sua boca, os lábios de Soluço descansaram delicadamente em sua testa, ficando ali por alguns segundos.

Quando se afastou, Merida quase o puxou de volta, mas ele sorriu e se levantou.

– Em dois dias, os navios partirão. Vamos levá-la para casa e você vai rever a sua família. - ele continuou, em um tom suave. - Quando chegarmos lá, reafirmaremos o acordo, eu explicarei a seus pais o que eu quero, e voltarei para Berk. Depois disso, só nos veremos novamente em um ano. Será quando eu terei a sua resposta.

Merida arquejou. Tentou falar, mas as palavras não saíram. Quando reuniu força suficiente para ir atrás dele, Soluço tinha ido embora. Estava sozinha com Dealan, no cais.


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Notas finais do capítulo

Oi de novo, pessoas! Uma boa notícia pra animar vcs depois desse final (pq eu sei que serei xingada, esculhambada, ameaçada de morte, amaldiçoada, etc.). Atendendo a pedidos, gostaria de informar que a continuação de Wings of Fate está em produção, e que eu vou postar no mês que vem, ok?



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