Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 13
O modo de ser das coisas selvagens




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Conduzir Banguela com Soluço presente para orientá-la foi dez vezes mais simples que tentar sozinha sem nenhuma instrução. O caminho até Berk foi suave como uma pena. O que ninguém esperava era o rebuliço que aguardava por eles em sua chegada.

Como os dois descobriram logo, toda a Berk pensara que Merida havia roubado Banguela e escapado. No momento em que chegaram todos discutiam estratégias de batalha, mais do que preparados para voar até Dunbroch por terem quebrado os termos da Aliança.

Mas quando Soluço explicou o que realmente acontecera, a forma como os vikings olhavam para Merida se alterou visivelmente. Se havia algo que eles apreciavam eram atos irrefletidos de coragem descabida e nisso Merida era especialista. A forma como eles a viam mudou, e ao invés de rancor e desconfiança, passaram a vê-la com um misto de curiosidade e aprovação. Quando Merida caminhava com Banguela ou Astrid por Berk ainda podia ouvir comentários sussurrados, mas eram muito diferentes dos que ela ouvira no início.

Um pouco surpresa com essas reações, mas ainda receosa, Merida limitava seu tempo entre as pessoas. Claro, marcara um ponto, mas quem poderia dizer se a memória dos vikings era curta? Uma semana se passara desde o incidente nas cavernas e ela ainda era o assunto da aldeia. Pensativa, subiu a colina indo em direção à casa de Soluço, com Banguela em seus calcanhares. Evitou a porta de entrada e dirigiu-se a porta dos fundos, com intenção de entrar pela cozinha. Era quase hora do almoço. Talvez Soluço precisasse de ajuda. Foi então que ela se virou na direção oposta. Como que hipnotizada, deu dois passos e parou.

Mais acima da colina havia uma trilha que levava em direção à floresta. Merida caminhou mais alguns passos inconscientemente, parando exatamente na entrada da trilha, com os olhos fixos nas árvores à frente. Sua mente girava a mil. Quão fundos seriam seus rios? Como seriam os animais? Que tipo de segredos aquela floresta guardaria?

Então seu coração se encheu de saudade. Na sua casa, podia visitar a floresta sempre que conseguisse algum tempo livre. O contato com a natureza sempre lhe fora benéfico, sempre a acalmava, fazendo-a se sentir em paz. Mas ali... Não poderia arriscar. Quem poderia dizer até onde iria a tolerância viking às suas aventuras?

Alheia a estímulos exteriores, Merida mal notara quanto tempo se passou, ou a figura silenciosa de Soluço se aproximando dela. Planejava chamá-la para almoçar, mas Merida mal o notou. Continuava a olhar fixo para as trilhas e após elas, a floresta. Quando olhou em seus olhos, Soluço não pôde mais desviar o olhar. Estava ali. Como acontecia com ele, sempre que não estava com Banguela no ar e desejava estar. Aquele anseio desmedido de ter que esconder a vontade de voar pra longe, revelando-se em um suspiro sufocado, em olhos atraídos para o horizonte. Aquela dor incômoda, a mesma que ele sentia sempre que desejava estar nos céus e seus deveres o prendiam à terra.

Então Soluço entendeu. Ao olhar naqueles olhos, ao ver aquela expressão, ele pôde ver Merida como ela realmente era. Uma criatura única, um espírito puro, selvagem e indomável, quase como... um dragão. Um dragão não se submetia pela força. Não poderia ser domado. Tinha de ser convencido a fazer algo. Tinha de se sentir seguro. Lembrou-se das histórias que ela contara sobre seu casamento forçado, a forma como ela reagira para evitá-lo, do feitiço que ela armara contra ele. Era exatamente como um dragão reagiria. Jamais se curvava, jamais se submetia. Como ele poderia censurá-la por ser como ela era? Como poderia obrigá-la a negar sua natureza, quando era essa a característica que ele mais amava nos dragões?

Fechou os olhos enfurecendo-se ao imaginar como deveria ser torturante para ela viver dia após dia suportando lições, espartilhos que apertavam, vestidos longos e desconfortáveis, aulas de costura, quando o que ela realmente queria era apenas o direito de ser ela mesma, o direito de não ser domesticada e amansada como uma fera terrível. Entristeceu-se ao imaginar em como devia se sentir ao ser vista pelos olhos de outros como uma anormal, como uma criatura bruta e sem modos, que jamais encontraria um lugar ao lado de um verdadeiro marido. Ah, se os pretendentes anteriores dela pudessem vê-la como ele a via!

Se pudessem vê-la pelos olhos dele, jamais pensariam mal dela, jamais pensariam que era indelicada demais para uma dama, que era pouco feminina ou que tinha modos muito brutos.

Alguma coisa se aqueceu dentro dele, algo que ele demorou um pouco a reconhecer. Admiração? Com certeza que a admirava, mas não era apenas isso. Carinho? Não. Ele arregalou os olhos, surpreso com as próprias conclusões. Amor.

– Por que está me olhando desse jeito? - Merida chamou, com uma expressão desconfiada, trazendo Soluço de volta à realidade.

Ele inspirou algumas vezes, ciente de que estava corando.

– Eu não encontrava você em lugar nenhum. – ele desconversou.

Merida suspirou, parecendo um pouco decepcionada pela ausência de resposta e se pôs a olhar outra vez para as trilhas.

– Se quiser, vá. - Soluço comentou, distraidamente.

Merida olhou para ele, sobressaltada. Tinha ouvido direito?

– O que você disse?

Soluço indicou a floresta, com um gesto de cabeça.

– Eu disse que se quiser você pode ir. Vou guardar um pouco do almoço para você. - ele desviou os olhos dos dela ao ver o brilho de excitação que a atingiu.

– Eu posso... Realmente posso? – ela perguntou, incrédula, agarrando-se com unhas e dentes á possibilidade.

– Pode. Mas volte antes de anoitecer. Fica muito frio lá dentro depois que o sol se põe. – ele respondeu com um sorriso, antes de virar as costas e entrar em casa.

_______

Suas pernas doíam. Seu cabelo longo e cacheado estava uma lástima, coberto com gravetos e folhas, mas ela não se importou. Se ainda fosse uma garota, com toda a certeza seria alvo de censuras. Mas em seu estado atual, não importava muito. Quando entrou em casa, Soluço estava esperando por ela, sentado em um catre, junto à lareira. Ergueu-se subitamente quando a viu, foi até ela em passos largos e a puxou pela mão sem muitas explicações.

– Vem comigo.

– Para onde? – Merida perguntou.

– O Grande Salão. Estão nos esperando. – respondeu, sem dar mais explicações.

Nos esperando. Não esperando por ele, mas pelos dois. O estômago de Merida rugiu.

– Não posso ir desse jeito. Quero dizer, olhe para mim. – ela fez um gesto, apontando para si mesma.

Soluço olhou. E pareceu não achar nada demais.

– Qual o problema? – ele perguntou.

– Preciso de um banho! – ela reclamou. – Estou imunda. Não posso aparecer na frente de quem quer que seja assim.

– Não vão se importar. – ele falou, puxando-a pela mão em direção a porta. – Você pode tomar banho quando chegar. Vamos.

Merida suspirou, sabendo que seria inútil tentar lutar contra ele.

– Posso pelo menos comer alguma coisa antes? – ela suplicou, mas Soluço foi implacável.

– Vamos comer quando chegarmos lá.

Merida sorriu, resignada enquanto Soluço a guiava pela aldeia em direção ao Grande Salão, explicando no caminho o que quer que fosse.

– É aniversário da Gothi. – ele explicou. – Estão fazendo um banquete em homenagem a ela. É a anciã da nossa aldeia.

Quando Soluço empurrou as enormes portas para entrar, Merida gelou. Toda a aldeia estava reunida lá. Até mesmo Estóico, que a olhou com neutralidade, mas desviou os olhos ao ver Soluço com ela. Astrid acenou para eles próxima a uma coluna, enquanto segurava uma caneca enorme com a outra mão.

– Vamos lá! – convidou Soluço, que parecia estar inconsciente de ainda estar de mãos dadas com ela.

Os dois foram em direção a Astrid, não demorando a ver Perna de Peixe, os gêmeos e Melequento. Todos cumprimentaram-se. Soluço soltou a mão dela, um pouco constrangido.

– E vejam se não é a nova heroína de Berk? – Astrid comentou, dando uma piscadela para Merida. – Só falam de você, sabia?

– É mesmo? – perguntou Merida, ciente dos olhares vindos de fora do grupo que recebia – E o que é que dizem?

– Alguns estão dizendo que você voou até Hellir com o Banguela e que derrotou cinco Suspiros da Morte com um só golpe. – respondeu Melequento, revirando os olhos.

– E que você encontrou Soluço inconsciente e o carregou em um ombro, no escuro dos túneis, enquanto lutava com um Suspiro da Morte com o outro braço. – narrou Cabeça Quente.

Soluço arregalou os olhos. Obviamente não estava sabendo dessa versão.

– Já ouvi dizerem que você foi até Hellir a nado, escalou as rochas sozinha e encontrou Soluço sem nenhuma ajuda. – concluiu Perna de Peixe.

Merida riu. O som assustou os colegas, mas ela não pôde evitar. Era muito engraçado ver como as histórias aumentavam e distorciam os fatos conforme eram passadas adiante.

– Eu não fiz muita coisa realmente. – Merida explicou, interrompendo-se um pouco surpresa quando uma garotinha lhe entregou uma pesada caneca de hidromel e desapareceu correndo na multidão, mal dando tempo para um agradecimento. Bebeu um gole e ergueu as sobrancelhas, surpresa com o sabor. – Tudo o que precisei fazer foi levar o Banguela até lá e ele encontrou o Soluço sozinho. E não houve nenhum Suspiro da Morte.

– Mas se não fosse por você, talvez ele não tivesse sido encontrado. – disse Astrid, com um tom de voz um pouco sombrio. – As pessoas estão agradecidas pelo que você fez.

Soluço sorriu para ela, em confirmação ao que Astrid dissera.

– Eles parecem ter que esquecido que foi ela que enfeitiçou o Soluço. – zombou Melequento – Que coisa hein? Você nem parece mais uma refém...

– Melequento! – repreendeu Astrid, dando uma cotovelada nele.

– O que? – ele perguntou, enquanto recuperava o fôlego – Não é como se ela estivesse fazendo progressos em reverter o feitiço.

Merida se encolheu um pouco, indiferente aos olhares de indignação que seus colegas lançavam a Melequento. Menos Soluço, claro. Soluço parecia mais como se quisesse matá-lo. Ela encarou uma das colunas, parecendo encontrar alguma coisa muito interessante nelas para dedicar sua atenção.

– Não ligue para ele, Merida. Ele só está com inveja da atenção que você tem recebido. – Assegurou Astrid.

– Talvez um beijo. – comentou Cabeça Dura.

Todos olharam para ele. Perna de Peixe estava vermelho. Os outros pareciam apenas chocados.

– Um beijo? – retrucou Cabeça Quente.

– Nas histórias, os feitiços são sempre quebrados com um beijo. – ele justificou, dando ombros.

Merida e Soluço se entreolharam, e desviaram o olhar, corando furiosamente, o que não passou despercebido aos outros.

–Vocês estão deixando a Merida encabulada! Olhem só para ela! Era para ela estar se divertindo.

Merida sorriu, um pouco nervosa. Enfim uma oportunidade de mudar de assunto.

– Na verdade, eu gostaria de perguntar sobre isso. Tudo bem eu estar aqui? Eu não sei bem se seria bem-vinda, entrando assim em um aniversário de outra pessoa... Ainda mais depois do que eu fiz.

Todos olharam para ela um pouco comovidos, até mesmo Melequento.

– O que está dizendo? Foi a própria Gothi que pediu para você vir. – disse Astrid, puxando Merida pelo braço. – Chega dessa conversa. Vamos comer alguma coisa. Cabeça Quente, você vem?

Cabeça Quente a seguiu e Soluço ficou olhando as três irem, pensativo.

________

Depois de um banho quente muito agradável, Merida vestiu-se e foi até seu quarto. Soluço estava, como todas as noites, esperando por ela. Conversaram mais uma vez sobre o feitiço, revendo os acontecimentos, até que houve uma pausa silenciosa e constrangedora.

– Talvez Cabeça Dura esteja certo. – ele a olhou, parecendo um pouco nervoso.

Merida certamente não devia parecer muito melhor. Soluço estava sentado ao seu lado na cama, tão próximo que eles quase se tocavam. Com a menção da conversa no Grande Salão, Merida corou até a raiz dos cabelos. Como ela não dizia nada, Soluço tomou a iniciativa.

– Você quer tentar? – ele perguntou, fazendo o máximo para não parecer ansioso pela resposta.

O coração de Merida praticamente galopava dentro do peito. A única resposta que ela tinha para aquela pergunta pareceu bastante apropriada, mas não era nem de longe uma mentira.

– E-eu não sei como... Eu não... Eu nunca... – Merida gaguejou, parecendo apreensiva.

Soluço quis rir da reação dela, mas não por zombaria e sim por que achava uma gracinha o modo inocente que a fazia agir assim.

– Beijar não é difícil. – ele comentou, despreocupadamente, segurando o queixo dela com delicadeza.

– N-não é? – Merida perguntou, com os olhos fixos nos dele, enquanto percebia seu rosto aproximando-se do dela.

Quando chegou bem perto, sua voz foi até ela como um murmúrio rouco.

– Você pode beijar assim – beijou-lhe a têmpora, atento às reações dela. – Assim. - beijou-a no canto da boca, sorrindo ao vê-la fechar os olhos – Ou assim. – Roçou os lábios nos dela, suavemente, com delicadeza.

Soluço afastou-se dela, observando sua reação. Merida respirou fundo, um pouco trêmula e abriu os olhos bem devagar, como se esperasse que o beijo durasse um pouco mais.

– Não funcionou... – ela lamentou-se, ao ver Soluço ainda como uma garota.

– Não. Não funcionou. – ele confirmou.

– Talvez... Devêssemos tentar outra vez? – ela perguntou, um pouco constrangida, mordendo o lábio inferior.

Soluço sorriu.

– Sim. Deveríamos. – e puxou seu rosto outra vez para junto dele.


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Notas finais do capítulo

Sim, eu sei que o combinado seria eu postar toda sexta feira, mas acontece que esta sexta feira é meu aniversário, então vou adiantar o capítulo para vocês, ok? Devo confessar que adorei escrever esse capítulo, meu deu até um calorzinho no coração, mas fiquei muito insegura em relação a ele. Não sei, depois de reler várias vezes, fiquei com a impressão de estar apressando demais as coisas. Espero que vocês não tenham ficado com essa impressão também. Felizmente pedi para a Leh dar uma olhada e ela disse que não, que eu não estava colocando o carro na frente dos bois ( não exatamente com essas palavras, claro). Obrigada, Leh, pelos conselhos e não fiquem bravos por ela ter lido o capítulo todo antes de vocês, ok? Até breve.



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