Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 10
Couro e Metal




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Merida observava os dedos ágeis de Soluço riscando o couro no lugar onde os cortes seriam feitos, pensativa. Olhando os desenhos que ele formava ela não conseguia imaginar como aquilo poderia acabar se tornando uma sela. Mas ele parecia perfeitamente seguro no que estava fazendo, mal olhando o local onde a lâmina deixava suas marcas. Ela deixou sua mente vaguear enquanto seus olhos o observavam, mas ela já não estava mais prestando atenção nele. Sua mente estava presa ao quebra cabeças que aquelas duas palavras representavam. Inconscientemente sua mão procurou a forma do cavalo no bolso e permaneceu ali, enquanto ela pensava mais e mais a respeito.

– Qual é o problema? - Soluço perguntou, sem mover os olhos do que estava fazendo.

Merida piscou, seus pensamentos desvanecendo ao som da voz dele.

– Problema? - ela repetiu, mais para ter algo pra dizer do que por não ter entendido a pergunta. Ela o ouvira perfeitamente bem. Havia decidido não dizer nada a ele sobre as palavras na madeira. Soluço era inteligente, seria ótimo ter uma cabeça a mais pensando sobre o problema. Mas ao mesmo tempo, se a pista fosse fria, como ela poderia lidar com a decepção em seus olhos por ter lhe dado falsas esperanças?

Soluço assentiu, colocando a lâmina sobre o balcão, sem fazer nenhum ruído. Depois, virou-se de costas e apoiou-se nele, cruzando os braços sobre o peito, só para descruzá-los depois, com o rosto corado ao perceber que o movimento tornara seus seios mais salientes e visíveis.

– Sim. Você está... - ele distraiu-se, procurando a palavra correta enquanto ajeitava a camisa agora grande demais para cobrí-lo melhor. Seu olhar voltou para ela quando encontrou. - Distante. Eu sei que nós dois não começamos da melhor maneira, Merida, mas se alguém te ameaçou, se disseram algo que te fez sentir desconfortável, eu quero que você me diga. Não há razão para esconder esse tipo de coisa de mim.

As sobrancelhas dela subiram um pouco.

– Não... Não é nada disso. Ninguém me tratou mal. - Ao menos não pior do que já tem sido, ela pensou - Não se preocupe comigo.

Soluço franziu as sobrancelhas. Ele sabia que não conseguiria tirar nada dela assim. Ele teria que lidar com Merida da mesma forma que lidava com os dragões: com paciência, passo a passo, até ganhar sua confiança. Felizmente ele tinha a sensibilidade e a paciência necessárias para enxergar além do que as pessoas comuns viam. Virou-se para o balcão novamente e apanhou a lâmina, girando-a e entregando-a para Merida pelo cabo. Ela olhou para ele, depois para a faca e depois para ele novamente.

– O que é isso? - ela perguntou.

– Você precisa se distrair. Uma boa maneira de fazer isso seria me ajudando a terminar essa sela. - ele concluiu com um dar de ombros.

– Claro! O que eu devo fazer? - ela se aproximou, hesitante, feliz por ter algo para ocupar sua mente.

– Corte nessas linhas que eu marquei. - ele disse, apontando as linhas com o indicador. Merida deslizou a lâmina sobre o couro, mas este mal separou-se abaixou dela, então ela se pôs a cortar com movimentos de vai e vem, como quem serra uma tora de madeira. Soluço riu da teimosia dela e de sua expressão determinada. Sua mão fechou-se sobre a dela, assustando-a com o contato repentino. Mas ele não olhava para ela, apenas para a lâmina em sua mão.

– Segure dessa forma, como se fosse um pincel. - ele orientou, e quando Merida corrigiu-se ele fechou sua mão sobre a dela com firmeza outra vez, guiando-a sobre o couro com um pouco de força. Sua mão era áspera, ela sentiu, com vários calos sob a pele, e muito quente também. Conforme as duas mãos juntas pressionavam a lâmina, o couro abria-se em dois, dividindo-se. - Sempre em um único sentido, com firmeza, para não criar rebarbas. - Seus olhos encontraram os dela outra vez e só então Merida se deu conta da proximidade dele. - Entendeu?

O olhar azul encarou o verde por alguns segundos longos e constrangedores. Ela nunca tinha visto aqueles olhos tão de perto. Pôde ver todas as matizes de cor, as sardas na pele, a cicatriz delicada no queixo, sentiu o toque da respiração dele sobre a pele.

– Entendi. - murmurou e sua voz era quase tão baixa quanto um suspiro.

Soluço sorriu para ela e afastou-se.

– Então eu faço este lado. - ele disse, voltando-se para o outro lado do couro. Merida se obrigou a respirar fundo e acalmar seus batimentos cardíacos. Inclinou-se sobre o couro, com os joelhos fraquejando e borboletas no estômago. "O que foi isso? Eu não devia sentir isso... Ele...ele é uma garota.", ela pensou, enquanto suas mãos trabalhavam, mais devagar do que Soluço.

– Acabamos. Eu vou buscar algumas coisas com Bocão que nós vamos precisar. Argolas e coisas assim. Eu já volto.

Merida assentiu enquanto terminava de cortar as últimas linhas que faltavam. Havia passado vários dias com ele, vendo-o trabalhar nas selas, já que Bocão o havia banido da forja por não ter mais a força necessária para lidar com as ferramentas pesadas. Mas lidar com o couro exigia mais habilidade que força. "Gosto de passar uma parte do tempo aqui. Faz eu me lembrar de como as coisas costumavam ser, como eu era." ele se justificou para ela.

Merida pousou a lâmina no balcão, observando o resultado do seu trabalho quando ouviu uma conversa próxima, entre Soluço e Bocão. As forja e a selaria eram interligadas, sendo a segunda uma construção mais nova, anexa à primeira. As paredes de madeira fizeram muito pouco para abafar os sons da conversa deles. Ela nem precisou se esforçar para ouvir Soluço falando:

– Eu quase não o vejo mais. Ele sai antes que eu me levante e volta quando eu já adormeci. É como se estivesse me evitando.

O som de marteladas sobressaiu-se à voz de Bocão e ela só pôde ouvir uma parte do que ele disse.

–... que ser paciente com ele. Ele está sofrendo muito com essa situação toda. Talvez até mais que você, Soluço.

– Como ele pode estar sofrendo mais que eu? Meu próprio pai mal consegue olhar para mim! Ele mal fala comigo, Bocão! - Soluço falou, indignado.

Merida encolheu-se, lembrando-se da discussão com sua mãe, o tom de voz e a raiva nos olhos dela. "Saia daqui. Eu não quero olhar para você", ela dissera. De uma maneira estranha, Merida sabia como Soluço estava se sentindo.

– Em grande parte porque você está muito parecido com ela. - explicou Bocão

– Ela? - Soluço perguntou.

– Sua mãe. Valka.

Houve um momento de silêncio e mais batidas no metal.

– Imagine como deve ser para ele olhar para você todos os dias e se lembrar do que perdeu para sempre. É por isso que ele te evita. Não o julgue precipitadamente. Seu pai não está evitando você, Soluço. Ele está evitando a dor.

Daquele momento em diante ela não quis ouvir mais, e afastou-se, um pouco constrangida. Ela já havia percebido e presumido que Soluço não tinha mãe viva, mas de alguma maneira ter a confirmação fazia Merida se sentir estranha. Como seria viver sem uma mãe? Passar toda uma infância sem bordados nem lições, mas também sem canções de ninar, histórias, abraços calorosos e protetores? Passaram-se mais alguns minutos antes que Soluço voltasse com as peças de metal, com uma expressão séria e compenetrada no rosto. O que mais chocou Merida foi quando seus olhos encontraram os dele e ele sorriu. Ela recuperou-se do choque e obrigou-se a sorrir de volta, pensando em como ele podia sorrir para ela depois de uma conversa daquelas.

– O que vamos fazer agora? - ela perguntou, mais para mudar seus pensamentos que por curiosidade real.

– Agora nós vamos montá-la. - disse, e pegou três tiras longas de couro. - Nós vamos trançar isso e prender nessas argolas...

_______

Depois de um jantar saboroso e silencioso, Merida deixou-se cair em sua cama, deitada de lado e observando as chamas da lareira crepitando. Três batidas suaves soaram na porta e ela se sentou antes de dizer.

– Entre.

Soluço entrou timidamente e atrás dele veio Banguela, esgueirando-se com cuidado para não derrubar os móveis. O dragão se deitou confortavelmente no pé da cama e adormeceu logo.

– Eu te acordei? - perguntou Soluço, meio sem jeito. - Você não estava dormindo, estava?

– Não estava.

Soluço pareceu aliviado e fez um gesto para a cama.

– Posso?

– É a sua casa. - Merida sorriu.

Soluço sentou-se e cruzou os dedos das mãos sobre a perna. Respirou fundo antes de olhar para ela.

– Eu gostaria de conversar com você sobre o que houve conosco. - ele falou, um pouco encabulado.

Merida corou furiosamente e tentou encontrar as palavras certas.

– Olha Soluço... Eu estava errada. Agora eu vejo isso. Mas se eu pudesse... - Parou de falar quando Soluço sorriu e ergueu a mão para ela.

– Não... Não é isso. É mais sobre o que aconteceu realmente. O feitiço em si. Eu pensei muito e acho que simplesmente deixar tudo nas suas mãos para resolver sozinha não é o melhor caminho. Talvez se nós trabalhássemos juntos poderíamos encontrar alguma coisa, algum detalhe. Deve haver alguma coisa que estamos deixando passar.

– Você quer que... eu conte tudo? Desde o início? - Merida olhou-o, boquiaberta.

Soluço assentiu.

– Eu gostaria de vir aqui todas as noites para conversarmos. Se não houver nenhum problema, é claro.

Merida nem sabia o que dizer. Entre todas as possibilidades que a mente fértil de Merida desenhara, com certeza essa era a última na qual ela pensaria. Levou algum tempo para que ela processasse o pedido.

– Bem... Por onde eu posso começar? Haviam os jogos pela minha mão. Tudo começou quando...

Ela começou, um pouco encabulada. Nunca havia repetido aquela história em voz alta a ninguém e havia muito do que se envergonhar, com certeza, mas a medida que as lembranças a inundaram, Merida continuou seu relato com mais confiança. Pelo resto da noite, ela continuou falando sob o olhar atento de Soluço, que interrompia poucas vezes para fazer perguntas curtas. Ao final do relato, Merida olhou para ele, um pouco incerta sobre sua reação. Soluço parecia pensativo, segurando o queixo com o indicador e o polegar, com uma expressão concentrada. Ele olhou para Merida e entreabriu os lábios para falar, quando foi interrompido pelo som de batidas fortes e insistentes na porta. Os dois se entreolharam com curiosidade antes que Soluço pedisse para quem quer que fosse, entrar.

A porta se abriu com brusquidão, expondo Perna de Peixe, Astrid e Melequento. Os gêmeos estavam mais atrás, com o sono estampado na face. Soluço levantou-se alarmado pela urgência no rosto de Astrid. Foi Perna de Peixe quem quebrou o momento:

– Soluço, temos um problema.


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Notas finais do capítulo

Procurando a respeito do nome do lugar onde se faz selas (selaria) aprendi que existem vários tipos de sela, que não se pode comprar uma sela de couro por menos de trezentos reais e até vi uma gravura do sistema esquelético de um cavalo. Interessantes as coisas que se aprende escrevendo fanfictions, algumas das quais nem terão muita utilidade...



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