Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 5
Capítulo 5




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Em um mundo de títeres, um conjunto de bonequinhos de madeira, sou a única peça de porcelana. Não me entenda mal, não observe por fora; observe por dentro. A porcelana é fria, é fina, é frágil. Ela cai e quebra, estilhaça. Vira mil e um pedaços, incorrigíveis, imensuráveis, incontroláveis. Em um mundo de títeres, sou a peça desengonçada que pula descontrolada no palco. Sou eu que caio e quebro.

Nem se eu oferecesse meus órgãos em uma bandeja, nem se eu enfeitasse meus pulmões com flores, nem se eu aguasse meu peito e florisse, a vida seria mais bela. A antítese é essa: o mundo floresce, mas não cresce, nem se faz são. Nem sempre fui incerta, nem sempre duvidei dos amores. Mas como boa observadora que sou, como boa vivente, sobre vivente – sobrevivente –, tive que me atentar aos detalhes para não perder as beiradas. E o caos que vi soterrou meus olhos.

Casei como indigente. Sem nome, sem rosto, sem gente, sem crença ou amor próprio. Casei como quem casa com o Sol. Nunca toca, nunca fala, nunca vê. Vi um borrão no céu e aceitei a vida a dois, mesmo sendo uma só.

– Estela? – perguntou. Eu estava imersa em uma tristeza repentina que vazou de mim. Que medo, que medo, que medo, eu me dizia, mas a vida era tão fria quanto meu próprio coração. Levantei meus olhos, fisguei-o, alavanquei-me.

– Sim?

– Você está chorando?

– Não, mas meu olho está ardendo.

– Será o vento?

Estávamos nós dois em uma espécie de campo aberto, muito belo, por sinal, que ventava bastante. Meus olhos realmente ardiam, mas o que doía era a ferida da alma.

– Deve que sim – afirmei, com toda a certeza na voz. Acho que sim.

– Gostou do dia em Viena?

– Melhor que qualquer outro que já tive.

– Fico feliz – ele diz, um sorriso visível nos dentes. E dente sorri? O dele sim, sorri para mim, como se eu fosse capaz de salvá-lo. Mas eu não sou.

– Muito obrigada.

– Vamos para casa – ele diz, beijando-me. Casa, mas que casa? Se não tenho nome, não tenho rosto, não tenho gente, para que casa eu vou? A sua? A deles? A minha que não. A nossa que não. Pois sou só, tão só, e me sinto incapaz de ser duas. Me sinto incapaz de acreditar. Seja em você, seja em mim, seja no hoje ou amanhã.

Tenho que me acostumar, e rápido, ao fato de não ser sozinha mais. Tenho que me acostumar, e rápido, a existência de um outro alguém no mesmo metro quadrado que eu. Sem existencialismos. Sem noites em crise, sem choro nem vela nem canto aguado. Sem atos. É melhor aceitar que a vida, agora, não é mais um conjunto de atos, na qual eu posso sempre me ausentar.

– Vai pedir algo? – ele diz. Mal percebi que já estávamos na suíte de hotel, sentados, ele caminhando de lado a lado falando comigo. Só caiu a ficha de que estávamos ali quando a pergunta se repetiu. – Vai pedir algo, Estela?

Balancei a cabeça, como quem espanta o sono, e respondi.

– Pedir o quê?

– Comida, Estela. Jantar. Você falou no carro que não queria sair para jantar, que preferia o serviço do hotel, só por hoje. Disse que não estava bem. Você está bem? – a pergunta foi intensa. O tom desceu minha goela e decepou minha cabeça. – Você está bem?

– Não, não estou – respondi, meu tom sincero, tão sincero quanto pude. Não, não estou. Não parece óbvio?

– O que você sente?

– Mal estar, a cabeça está zonza, não estou me concentrando direito...

– Percebi – ele disse, em tom cuidadoso, meticuloso, atencioso. – Quer ir ao médico? Eu posso... não sei, comprar algum remédio? Prefere que eu faça alguma massagem?

Como eu disse, atencioso, cuidadoso, meticuloso.

– Não, não precisa. Só fica aqui. – Não fui sincera. Queria estar só, mas somos um, então uni-vos.

– Tudo bem. – ele se senta, próximo a mim, me puxa e me deita sobre sua barriga. Eu posso ouvir a respiração suave, mas o batucar acelerado do coração. Será por minha causa? Ajeito meus cabelos, negros e finos, sobre sua barriga e fecho meus olhos quase que em prece. Eu preciso me conformar, eu preciso me ajeitar. Respirar, não sufocar-me.

Pareço dormir por segundos, mas percebo que dormi por horas. Acordo no meio da noite, na mesma posição que adormeci, com o cuidado das mãos de Thomas sobre meus cabelos. Tenho medo. Não do escuro, que já reside em mim, mas do futuro. Eu quero fugir. Gritar, sabe? Espernear? Como criança birrenta em um dia quente por causa de sorvete. Ele é tão cuidadoso e eu me sinto tão mal por quase odiá-lo. Mas acho que sou assim, é como eu disse: estou sempre no contrário, sempre do avesso. Quando era para nascer menino, vim menina; quando era para ser delicada, vim deformada. Meus olhos, meus cabelos, minha essência, todos indo para baixo no plano cartesiano, todos afundando no lado negativo de mim.

Mas, ei, eu estava ali. Eu estou aqui. E pela primeira vez em dois anos, me levanto da cama, com cuidado para não acordá-lo e fuço na minha mala em busca de um maço de cigarros. Os cigarros de menta que abandonei em função do acaso. Os cigarros de menta que incendeiam na sacada do apartamento escuro, no meio da noite, a ponta acesa e meus olhos sendo iluminados pela suave brasa do cigarro. Eu trago profundamente e, quando expiro, sinto-me esvaziar. A fumaça sai como um traço de mim, grande e branca, obtusa. Por muito tempo me defini assim, agora me encaixo perfeitamente. Tão obtusa quanto nunca.

Ouço o pisar pesado dentro do quarto escuro. Será que ele acordou? Viro meu rosto para a porta de vidro, sinto a presença se aproximando, sinto o calor humano e tremo. De pavor, de horror, de temor. Tremo de m-e-d-o. Ele me olha nos olhos e parece me tragar, assim como faço com o cigarro em meus dedos.

– Você fuma? – perguntou em tom baixo, quase sussurrando.

– Fazia dois anos que não, mas parece que voltei...

– Estela, você está realmente bem?

– Eu não sei, me sinto estranha. – A intensidade que digo é importante. Não observe por fora; observe por dentro. Nunca fui sincera, a não ser quando convém. Agora não convém.

– Estranha como? – ele pergunta, acentuando o “como” de forma intensa.

– Estranha de mal estar. Nunca te disse, mas tenho um estômago muito fraco. A viagem de avião bagunçou-me inteira.

– Ah, entendi. – ele diz como se eu o iluminasse. – Estava começando a achar que...

– Que?

– Que você não estava gostando tanto assim de mim. Quero dizer, você é única, tenho medo de perder você.

Única pelo par de olhos ou única por boa atriz? Acho que ele nunca teve uma atenção real pra si. Dos pais, dos irmãos, não sei. Muito cuidadoso, eu acho. Muito assustado. Tem medo que, em um instante, eu decida ir. Não acontecerá.

– Eu gosto de você.

– Eu amo você – ele diz.

– Eu também, Thomas. Eu não só gosto, é muito além.

Ele se senta no chão de sacada e puxa um cigarro do maço. Parece duvidar se fuma ou não. Ele me olha nos olhos, os olhos fixos, e então acende o cigarro. Põe na boca, puxa o ar.

Cof, cof, cof. A tosse é alta, a toxina alterando o pulmão, dilatando os vasos, diminuindo o sistema límbico de forma singular. A nicotina dominando a mente, injetando a calma.

Ele suga de novo. Cof, cof. Duas tosses, a fumaça saindo pelo nariz, a certeza do que faz. Cof. Suga. Cof. Parou. E o cigarro era tragado calmamente enquanto os olhos acendiam-se e apagavam-se a cada instante, fixos em mim, mesmo ali, no escuro.

– Me sinto tão bem por estar com você.

– Pois não devia.

– Pois não devia. Te sinto tão intensa agora. Sabe, não me fez sentido, mas aquela frase de ontem ainda ecoa na minha cabeça.

– Que frase? – pergunto.

– “Estamos fodidos”. Parece refletir nas paredes cavernosas da minha cabeça e nunca perder a direção.

Eu assinto. Estamos, sim, fodidos. Porque nos unimos, e agora quem se separa leva um pedaço do outro, mesmo não querendo. Unidos – pelo matrimônio. Unidos – não pelo destino, mas pela sociedade. Não se assuste, estamos fodidos.

– Sim – eu trago. Com uma baforada só, solto toda a fumaça. Sinto muito.


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