Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 24
Capítulo 24




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O celular tocou incansáveis vezes. Números alterados. Uma vez Thomas, uma vez Frank, uma vez Thomas, uma vez Frank, até que coloquei no silencioso e atirei o celular sobre o tapete. O celular continuava acendendo e apagando, e ficou assim por horas.

Na sala de embarque e desembarque, várias pessoas aguardavam. Tinham os rostos ativos e os olhos espertos, prontos para capturar a primeira imagem novamente de quem aguardavam ansiosos. Eu segurava minha barriga, com as costas doendo demais, mas um sorriso no rosto. Caía uma fina garoa do lado de fora. O inverno dava início à primavera com chuvas inconstantes.

Meus olhos aguaram quando a íris fotografou Pedro caminhando com uma mala nas mãos. Eu sentia tantas saudades. Era muito mais belo do que eu me lembrava. Os cabelos castanho-claros brilhavam sedosos e macios, mesmo que eu não pudesse tocá-los daquela distância, em cachos suaves. A barba bem feita e desenhada, mais clara que o próprio cabelo, acentuava a maxila. Parecia um homem feito. Trajava um casaco e sapatos de couro.

A voz rouca me atingiu antes que eu pudesse falar.

– Senti sua falta.

Agarrei o casaco com meus dedos e o puxei, o abracei e chorei. Ele apertou as mãos nas minhas costas, acariciou meus cabelos, sussurrou com o hálito quente nos meus ouvidos e então tudo estava bem. A distância e os anos haviam sido compensados. Ele cheirava bem, algum perfume que eu não conhecia, e tinha as mãos macias, mas as pontas dos dedos grossas.

– Eu te amo – falei. – Fique aqui – ele parecia muito mais alto do que eu me lembrava, alguns bons centímetros maior que eu. O tronco era largo, os braços eram grandes, mas perfeitamente proporcionais ao corpo forte.

– A irmã que deixei era uma coisa forte e autossuficiente. Onde você a pôs?

Dei um sorriso e caminhamos até o carro. Durante todo o trajeto, ele contava sobre a banda, o sonho e sobre como os amigos o tinham aceitado muito melhor que os próprios pais.

– Como estão eles?

– Estão bem. Estão felizes com as netas.

– Vão ser lindas – ele disse quando tocou suavemente minha barriga. Eu estava me sentindo tão gloriosamente bem. O toque do meu irmão, a suavidade que ele tinha quando criança, mesmo depois de homem feito, persistia. Eu não diria antes, mas era verdade, eu sempre o amei. Amei tanto quanto pude.

Descemos no estacionamento, subimos até a recepção. A mulher nos olhou, perguntou se tínhamos feito reserva e eu respondi que sim. “Fiz reserva ontem, um quarto no nome de Clouther”. Ela confirmou, aceitou, pegou meu cartão e liberou o quarto. Subimos com o cartão que destrancava o quarto e eu o inseri no local indicado. As luzes acenderam, a porta destrancou e nós entramos.

– Não prefere que eu fique com um quarto só para mim? – perguntou. Fiz que não. Caminhei arrastada sobre minhas pernas, puxei a colcha inteira, atirei meio milhão de travesseiros ao chão e deitei. Pedro me observava.

– Querida, querida. Você está bem?

Fiz que sim e o puxei para a cama, passando meus braços ao redor de suas costelas. Ele soltou um leve gargalhar, passou os braços atrás dos meus ombros e me apertou. Passei minhas pernas por entre as dele, agarrei com força o músculo do braço, deitei minha cabeça sobre seu ombro e chorei. Ele passava as mãos suavemente pelos meus cabelos e dizia que tudo ia ficar bem.

Ficar bem como? Eu havia destruído tudo. Tudo que eu um dia tive chance de ter. Quais qualidades eu tinha adquirido, afinal? Cedi a alma, arranquei as verdades da raiz, sucumbi, mas não havia surtido nenhum efeito. Eu continuava a Estela vazia, fria e assustada. Amedrontada pelo amor, pela falta dele, pelo mundo, pelas pessoas. A quimera rugia feroz, atroz, fugaz. Eu estava pronta para desmembrar quem ousasse aproximar.

A voz rouca estava alta quando abri os olhos. Eu estava abraçada a um travesseiro enorme e ele falava ao telefone. Meu telefone.

– Sim, eu sei. Irmão. Pedro. Preciso falar com você.

– O que você está fazendo? – falei com a voz grogue de sono, balançando a cabeça para afastar o cansaço e o peso do corpo. Tentei levantar, mas o peso me forçou contra o colchão. Afundei meu corpo inteiro nele.

Pedro virou os olhos para mim, como se só agora percebesse que eu tinha acordado. Deu um sorriso acolhedor, balançou a cabeça, levantou uma mão e fez um sinal para mim. Algo como durma. Minha cabeça estava péssima, senti o estômago revirar três vezes quando o vômito me atingiu a garganta. Virei o corpo e vomitei no chão.

– Preciso desligar.

Pedro puxou minhas madeixas brancas do rosto, antes que encostasse no vômito, e segurou meus braços com firmeza. Vomitei mais. Puxou uma toalha branca, passou na minha boca, acariciou minhas bochechas e sorriu.

– São as meninas. Fica tranquila.

Sorri também, feliz por ter alguém para me apoiar. O cheiro azedo atingiu-me o nariz e senti o estômago novamente. Pedro saltou da cama, jogou a toalha sobre o vômito e ligou para a recepção antes que eu pudesse assimilar tudo. Deitei novamente a cabeça no colchão. Meu ouvido pareceu zunir.

Bateram à porta, entraram com baldes e limparam o chão enquanto eu me concentrava em segurar algo no estômago. Eu me sentia fraca. Fechei os olhos, segurei minha barriga e senti as crianças mexendo. Quis sorrir, mas evitei, forçando a mim mesma a manter os olhos fechados e a boca imóvel para nenhum incidente.

Estávamos no carro em direção a não sei onde. Pedro não falara nada sobre a ligação no meu celular nem sobre para onde ele dirigia. De tempos em tempos levantava a mão esquerda do volante e passava os nódulos dos dedos nas minhas bochechas. Talvez eu esteja destinada a sofrer, pensei. Quantas pessoas eu não havia feito sofrer? Dizem que tudo que se faz na terra, se paga na terra. Às vezes tendo a acreditar nisso, mas às vezes acho que nada pode ser pago. A vida é tão efêmera. Senti um pulsar no pescoço e quis fumar um cigarro. Apenas revirei os olhos enquanto eles lacrimejavam e cocei o nariz.

Percebi onde estacionávamos: era o hospital. Entramos suaves, ele segurando meu braço e me apoiando, e depois entramos na sala do Doutor sem precisar explicar nada. Frank e Thomas estavam ali. Apertei o braço de Pedro com uma raiva estalando em mim, mas não consegui sentir raiva dele.

– Bom dia, Estela. Seu marido ligou dizendo que você estava tendo fraqueza. Como estamos?

– Relativamente bem, Doutor. Frank, Thomas, Pedro, poderiam nos dar licença?

Thomas quis protestar, mas Frank o puxou pelo braço para fora da sala. Aquilo me irritava. A última memória que eu tinha dos dois eram dois homens se socando e ofensas sem fim. Agora, eles se tocavam suavemente e falavam baixo como se nada daquilo tivesse acontecido. Só eu sabia o quão instáveis aqueles irmãos estavam. Eram como minas; eu podia caminhar por aquele terreno mil vezes, mas alguma vez eu iria pisar em uma delas e tudo sairia dos eixos. Até, é claro, que eles ignorassem o fato e fingissem que nada tivesse acontecido.

– Então?

– Quero fazer um exame... exame intrauterino.

– Exatamente por?

– Por que não sei de quem são as crianças.

– Estela, isso pode esperar, não acha? – ele pareceu surpreso com a minha afirmação, mas continuou falando com calma. – Exames intrauterinos são invasivos. Você não consegue calcular as datas e fazer uma prévia?

– Não. Eu realmente preciso desse exame. Estive conversando com o meu irmão, esse que me trouxe. Ele diz que eu posso consertar algumas coisas que tem acontecido entre Frank e Thomas, mas eu preciso de saber.

– Sei que não é da minha conta, mas você tem dúvida se Thomas ou Frank é o pai?

Suspirei fundo. Senti vergonha. Assenti.

– Bem... aparentemente você não está na melhor forma. Como tem estado a alimentação? Duas crianças exigem o dobro de cuidado.

– Não muito boa, devo confessar.

– O estresse... Claro, faz sentido. Agora faz sentido. Você devia ter me avisado sobre a desconfiança desde o princípio, poderíamos ter feito um acompanhamento melhor, Estela. É essencial um bom cuidado materno para filhos saudáveis. As meninas precisam da sua sanidade mental.

– Eu sei, eu... Eu só preciso desse exame.

– Fazemos assim, Estela. Vou coletar 15ml de cada placenta. Você pedirá o sangue deles e faremos. Mas digo, não recomendo esse exame agora. Só farei se você prometer que vai seguir as ordens de nutrição que eu te passarei e, depois do resultado, sem mais estresse. Estamos entrando na fase mais importante da gestação. Tudo bem?

– Tudo, Doutor.

A coleta de material foi rápida. Thomas estava descontente com meu pedido, eu via que tinha medo do resultado. Eu havia intimado ambos. Ou eles fariam o exame, ou as crianças seriam minhas, só minhas, e eu mudaria para Austrália com Pedro. O medo de perder tudo era muito maior. Thomas fez Frank prometer que, caso as crianças fossem dele, ele ia deixar que ele as criasse. "Sem mais acessos, Frank. Ouviu?" Frank fez que sim, mas vi que não era verdade. O que seria desse resultado? Estava prestes a recuar.

Voltei para o apartamento, muitos dos móveis haviam sido empacotados. Thomas pediu perdão, acariciou meus cabelos e disse que seria melhor. Quase ajoelhou. "Por favor, fique", pareceu dizer com os olhos. Espelhos verdes profundos e perdidos. A ausência corria nas maçãs do rosto, um rubor estranho naquela face. Frank estava ali, quieto, calado, observando-me.

– Tem muita coisa para solucionarmos, Thomas. Eu estou cansada. Quantas vezes prometemos seguir em frente? Essas meninas não podem, Thomas, elas não podem sofrer por isso. Não sou Atlas... – falei resfolegando, minha barriga pesava. Quis dizer "não sou Atlas, Thomas, não carrego o mundo nas costas... sou quimera. Vou degolá-los", mas o ar acabou e eu me apoiei na bancada.

– Você está bem?

– Preciso ir – falei. Pedro me esperava lá embaixo. – Aviso do resultado assim que ele sair.

– Mas, Estela, eu te amo.

– Tarde demais.

Percebi que eu não amava nenhum dos dois quando atravessei a porta. Agora eu acreditava no amor, sem dúvidas, mas o amor por eles? Amar é autodestruição. Tem que ceder tanto, tanto, e confiar no outro para não desfazer você. Ou talvez eu os amasse.

Porque nada me faz mais feliz, e nada me faz mais triste, que você.

Minha mente pesava mais que meu corpo inteiro. Eu sentia as meninas movimentando-se em mim. Vida. Havia vida em mim. O amor maior, maior que aqueles dois homens, amor maior que os dias, o tempo. Havia amor em mim, meu Deus. Eu não podia destruí-lo. Ninguém pode. O amor cresce, como a vida, e exala. Eu sentia o cheiro do amor em mim.

Pedro me apoiou quando me deitou na cama. Estava suado, mas cheiroso. Eu sentia saudades. Sussurrei para que ficasse ali. "Preciso fazer uma ligação, volto logo", ele falou. , eu disse, eu te amo.


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