Irreal escrita por Pepper


Capítulo 2
Uns cem anos atrás, final.




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Desculpe a demora! Esqueci que você vinha e sai para fazer umas compras... Sou uma velha tola, ainda acredito que alguém vai me ouvir... Mas pelo menos tenho você, não? Se me ouvir, saberá que eu ainda valho a pena... Não sei se te contei, mas sou diferente da morte. A não ser pelos motivos óbvios, a Morte não tem tanto tempo livre como eu. Ela faz até hora extra, a Morte não dorme e dificilmente é boa com os seres humanos, apenas com aqueles que ela acredita que mereçam. A morte vê quem é digno de morrer jovem ou idoso. Já eu... Não sei. Antes todos eram loucos para me ter por perto, já hoje... O que importa o amor? O amor faz você sofrer. Que calúnia!

Perdão, perdi a linha...

Sabe... Eu nasci junto com a morte, éramos crianças quando o mundo foi criado, sempre estávamos presentes. Os animais que vieram antes dos humanos amavam... E morriam. Fomos musas de vários poetas e filósofos. Entre todos, o que mais amou foi William Shakespeare. Ele decifrou-me com poemas, ele não temia de viver comigo, e não temia a morte. Romeu e Julieta foi a minha favorita! Lembro-me de todas as suas palavras...

Bom, perdoe-me novamente, a idade me permite voltar mais facilmente ao tempo do amor. Hoje já não há espaço para mim. Poucos aqueles que sabem amar, e os que sabem aprenderam, pessoalmente, comigo, assim como Clarinha, Janaina, Carlos, Gustavo, Rebeca, enfim...

Voltemos a história de Clarinha...

Quando ela foi até minha casa, foi no mesmo dia em que me encontrei com a minha velha amiga, Morte. Clarinha entrou chorando sem bater e sem se anunciar, apenas entrou e me procurou. Eu estava na cozinha comendo Brigadeiro. Quando ela invadiu-me a cozinha, tomei um susto, quase cai da cadeira! Ao notar suas lágrimas percebi que não era de dor do amor, nem de discussão com a mãe, era pior, bem pior. Clarinha me puxou pelo braço aos prantos e me arrastou para fora da casa.

– Clarinha, o que foi? - Perguntei realmente assustada.

– Minha mãe... Você tem que me ajudar! - Consegui responder enquanto soluçava.

Na chuva forte daquele sábado, corremos até a casa da menina assustada, entramos pelo portão e fomos até a sala dela. A mãe estava desmaiada em volta a uma poça de sangue... Foi quando a Morte entrou pela porta. Triste, como sempre que buscava uma alma boa... Ela passou a mão em meus ombros e foi em direção a mulher morta. A filha a acudia e me gritava para fazer alguma coisa. Não prestei atenção. Parecia fria, mas, ver a morte retirar a alma de um corpo feminino bonito e amado, era algo triste e belo, como poesia...

– Ela... Morreu? - Perguntei mais para a Morte do que para a menina. A velha amiga assentiu pesarosa e a menina gritava.

– NÃO! NÃO! NÃO! Ela não morreu!

Quando escuto seus berros de uma alma machucada, desvio os olhos da Morte e tiro a menina de perto da mãe. Ela se debate no ar. Eu a levo para longe do corpo e ponho de frente para mim.

– Querida, escuta, se acalma. Sua mãe está bem agora.

– Não! Ela não está! Ela estava cuspindo sangue E aí ela... Ela...

Eu evitei olhar para o corpo e a abracei. Foi quando o pai dela chegou. Ele fez como Clarinha, se ajoelhou no sangue e chorou. Ele me pediu para sair, e que, por respeito, me chamaria na hora do enterro. Ele disse que cuidaria de tudo sozinho. Clarinha pediu ao pai se ela poderia ficar na minha casa até a Tal hora chegar, sem forças para negar, ele deixou. Me emprestou um guarda-chuva e levei a menina para a minha casa.

Por ter tal profissão, sempre vi pessoas tristes, mas nunca uma criança tão triste assim, me fazia chorar sempre que a olhava naquele tempo de dor e escuridão. Não culpo a Morte, nunca culpei. Os deuses nunca temeram ter-la, e nunca se preocuparam com ela. Mas vocês, meros mortais, não só temiam pelas suas vidas, como também pela vida dos outros, por isso vocês se machucam tanto... Alguns ficam até paranoicos tentando evitar a morte. Como uma mãe Hiperzelosa. Mas todos os mortais morrem... A menina aprendeu isso, viu isso. Coisa que nenhuma menina de treze anos deveria ver. A morte da mãe, é a morte dos sonhos, é uma eterna ferida que não se fecha. Se eu sobrevivesse apenas desse tipo de amor, estaria com 20 anos para sempre. Mas não dependo... A tese do amor tem de ser completa. Amar família, amigos e o parceiro eterno. O amor, não acaba. Não morre. Hoje em dia a tese do amor quase nunca se completa, por isso minha velhice doente...

Clarinha ama a mãe até hoje, cem anos depois deste dia, quarenta anos depois de sua própria morte...

Perdi o fio da meada novamente! Perdão!

Enfim, quando Clarinha e eu estávamos na minha sala, eu a servi um copo de água com açúcar e ela não falou nada.

– Clarinha... Vamos conversar?

– Não quero. - A menina respondeu olhando pro chão.

– Não vamos falar sobre esse assunto. Vamos nos distrair?

Ela me olhou pensativa e respondeu:

– Tá.

– Bom, sobre o que quer falar? - Ela balançou os ombros e colocou a mão nos bolsos do casaco que escondia o vestido manchado de sangue. - Está bem... hm... Rapazes?

– Que que tem?

– Uma moça como você deve estar apaixonada, não?

– Não.

– Nem mesmo gosta de um rapaz? Sabe, pode falar isso comigo, sou especialista nesses assuntos.

– Como assim?

– Ah, bem, eu sei que não sou lá tão bela, - Mentira, eu era a mais bela que existia, meus vestidos era do melhor alfaiate da cidade, mês cabelos com cachos perfeitos e sempre com uma fita da cor do vestido e saltos altos magníficos das melhores sapatarias! E minha pele... Era pele de porcelana... - Mas eu tive muitos namorados. Eu sei que isso não é certo, mas me apaixonei muito nessa vida... Sempre viajei muito sabe, à trabalho, lógico, e de vez em quando conhecia muitos poetas, principalmente franceses e Ingleses, eu me apaixonava, porém, sempre tinha de ir embora, pois tinha muito trabalho a fazer.

– Isso é triste...

– Não! - Dou uma risada. - Nem um pouco! Conheci gente boa, me apaixonei, eu vivi de verdade. Na minha idade era para estar casada e com dois filhos já, mas eu me soltei do padrão mundial e virei uma mulher de negócios, algo extremamente raro e mal visto, eu sei...

– Te admiro... - A menina conseguiu responder. - Você é diferente...

– Você também é.

– Sou? - Seus olhos se levantaram recuperando um pouco do seu brilho.

– Sim! Você é madura demais pra sua idade! Isso tem seu lado bom. Você está mais preparada pra vida. Só... Não perca toda sua infância. Ela já esta no fim.

– Tudo bem.

Então seu pai bate na porta e nos chama, Clarinha vai para sua casa trocar de roupa e eu lhe prometo encontra-la lá. Estive com ela em seus maiores momentos de dor, e de alegria. E naquele dia macabro, foi quando eu comecei a aparecer de verdade em sua vida.

Voltei a vê-la novamente após seu Luto, já estava com catorze anos e veio em minha casa, desta vez, batendo na porta. Eu atendo e a levo até a cozinha, estava exausta de uma viagem que fiz para Roma, Um casal lindo formou-se lá, e graças a crença no amor deles, mais outros casais se formaram sem grande esforço de minha parte. Fingi estar sem sono e a levei para a cozinha.

– Faz muito tempo que não a vejo, Clara. E lamento pois a culpa é minha, ando muito atarefada, viajei sem parar nestes últimos meses.

– Está tudo bem. Eu vim pois queria lhe falar algo...

– É assuntos do coração? - Sorrio já sabendo a resposta pelos olhos que emitiam um brilho diferente. Um brilho apaixonado. Ela assente e eu sorrio. - Quer uma romã? - Ofereço esticando os braços com uma tigela de romã. Ela pega uma e come.

– É um menino... Leo...

– Hm...

– Ele me irrita ás vezes, sabe... Mas estamos indo à biblioteca juntos muitas vezes por causa de um trabalho... E... eu meio que gosto disso... - Conforme ela ia falando, ficava mais encabulada.

– O que você sente quando está com ele? Um frio na barriga?

– Está mais para um enxame de borboletas. Eu fico nervosa, embolo as palavras... Ele ri e eu fico toda vermelha!

– Você está apaixonada! - Conto-lhe a novidade.

– Isso é bom?

– Bem, sim! Se isso virar amor, sim! - Ela ri e eu também.

Passo-lhe dicas e conto-lhe histórias de amor para inspirá-la, demorou muito para tudo acontecer. Ela me contava que quando queria contar-lhe que estava apaixonada, ele dava um jeito de implicar com ela. E quando ele a chamava para sair, ela tinha de arrumar a casa e fazer compras, já que havia se tornado muito cedo a mulher da casa, Leo não entendia e falava que ela sempre fora assim, querendo bancar a adulta, ela retrucava e dizia que tinha de ser a adulta, pois não tinha mais mãe. Eles se irritavam e ficavam semanas sem se falar. Eu estava quase desistindo quando lembrei de outra história, sobre um casal que brigava muito, porém, não viviam sem se amar, eu lhe mostrei que o amor não é perfeito e não tinha harmonia, era apenas amor. Isso a motivou e, aos poucos, eles recomeçaram a amizade. Marcaram um dia para sair, um dia que ela podia. Eles passaram a sair sempre que era possível, porém, só aos dezesseis anos, deram seus primeiros beijos. Foi na praça tomando sorvete. De repente eles se aproximaram, ambos hipnotizados pelos olhos um do outro, e se beijaram. Então, apareceu-lhes um desafio: O pai.

Clarinha veio me contar às pressas o ocorrido na conversa entre Leo e o pai dela.

– Ele estava nervoso, tremendo. Meu pai perguntou suas intenções e ele gaguejava, e finalmente disse "Casamento", apenas disse isso e meu pai sorriu! Sabe a quantos anos meu pai não sorria daquele jeito? E os dois conversaram sobre nosso futuro, que ele quer ser advogado e me tratar como uma rainha! Meu pai o aceitou e decidiu marcar um almoço entre as famílias e meu pai concordou em convidá-la quando contei que você nos ajudou a ficarmos juntos! - Ela falava tão rápido que mal se ouvia as palavras! Clarinha me abraçou muito forte e ambas contávamos os dias para o jantar, que nunca aconteceu...

Como eu disse, fiquei ao lado de Clarinha em todos os momentos bons e ruins, dias antes do jantar, iniciou-se a grande guerra. Todos os homens foram chamados, inclusive o pai da menina que havia visto a mãe morrer, agora via o pai caminhar em direção á uma morte incerta.

O pai morreu meses depois, tudo o que a manteve em pé fora eu e Leo. Clarinha fora morar com uma tia, e passou a ver Leo muito pouco.

Era dezembro, o Menino crescido, com seus 19 anos, bateu em minha porta. Eu atendi e ele disse apenas isso:

– Quero me casar com ela.

Isso era o amor. Enquanto a dor macabra da morte se espalhava pelas trincheiras, um garoto numa pequena cidade em meio a Alemanha queria pedir uma menina tomada pela dor de ver o pai partir e morrer, em casamento. Assim foi feito. Eu assisti a tudo. Eles se casaram numa pequena cerimônia após a grande guerra. Lembro-me de cruzar com a morte naquele dia, ela apenas me falou:

– Tenho inveja do seu trabalho... - Ela estava abalada e cansada, eu a fitei, sem saber o que falar, e sabia que não poderia tomar-te o tempo, ela tinha pessoas para levar embora.

O casamento serviu como uma vantagem em estar vivo. Depois de tanta dor e destruição, foram poucos os que não morreram nas trincheiras, e mais poucos ainda os que voltaram. A alegria tomou conta de ambas famílias, logo vieram os filhos e o diploma de médico. Clarinha decidiu que trabalharia em casa, o mundo ainda não abria as portas para as mulheres que queriam trabalhar fora.

Se entende um pouco de história, não preciso contar-lhe o que veio alguns anos depois: Outra grande guerra. Hitler... Morte... Leo fora para a guerra, mas, graças ao seu diploma e sua idade, serviu como médico, Clarinha vinha me visitar com mais frequência, e levava as crianças consigo, contávamos histórias e os quatro filhos dormiam no sofá. Clarinha me olhava e falava:

– Você não parece ter envelhecido muito.

– Você também não. Parece a mesma menininha que queria ser adulta.

– É totalmente diferente Dona Bélle.

– Porque?

– Porque a senhora não mudou muito de aparência. Parece que envelheceu apenas cinco anos. Qual o segredo?

Eu, com meu sorriso travesso, respondia:

– Amor.

Santos os deuses! Olha que horas são? Tens de voltar já para a casa criança! Peça perdão à sua mãe por mim, me empolguei contando-lhe a história... Ah, para matar-te a curiosidade, Leo volta para a casa e as crianças crescem felizes. A cidade da Alemanha não fora afetada pela guerra, e após seu término, a família se mudou para os Estados Unidos, e os bisnetos foram para o Brasil. A família inteira completou a tese do amor, foram épocas boas para mim, mesmo nas guerras e dificuldades após elas, eu trabalhei muito, pois o amor nasce onde menos se imagina. Porém, hoje em dia está difícil para mim.

Quando vier me ver novamente, minha criança, contar-lhe-ei a história de Janaína. Uma jovem mais moderna, mais deste tempo. Como segue-se a lógica, eu já estava enfraquecida, começando com tosses, e a avançar-me a idade. Mas Janaina me escutou e não me ignorou no mercado como fizestes ontem! Mas ainda bem que veio repara-te o erro.

Até mais minha criança, caso queira ouvir de uma velha a história magnífica de Janaina.


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