Quando a Chuva Encontra o Mar: Uma Nova Seleção escrita por Laura Machado


Capítulo 95
Capítulo 95: POV Gabrielle DeChamps




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Quando voltei a mim, a primeira coisa que pensei era que meu pescoço me doía muito. Nem abri os olhos, só conseguia pensar em como minha cabeça pesava e como eu mal conseguia levantá-la.
Mas um cheiro de vinagre forte chegou às minhas narinas, me fazendo despertar completamente e abrir os olhos para ver quem estava tentando me acordar.
"Bom dia," o homem disse, por trás da máscara de coelho de plástico.
Eu nem lembrava o que tinha acontecido, até que me dei conta de onde estava. E como estava.
Puxei meus braços, querendo empurrar o homem para longe, só para perceber que eles estavam presos acima da minha cabeça e que eu não conseguia me afastar nem um pouco da parede onde estava encostada. Tentei ir um pouco para frente, tentei fazer com que a corda que estava tão firme em volta dos meus pulsos saísse do gancho onde estava presa.
O homem na minha frente ria, se divertindo com as minhas tentativas de me soltar, enquanto eu percebia que não tinha nem forças, nem altura o suficiente para me tirar de lá. Irritada, eu levei um joelho até ele, conseguindo acertá-lo na perna, de lado e de mal jeito. Não me ajudou em nada, mas era o mais longe que eu conseguia levar a minha perna, que ainda parecia bastante dormente e estava presa ao pé da cadeira onde eu estava sentada.
Ele acabou perdendo o equilíbrio, já que estava agachado, mas não perdeu a pose. Logo se levantou, olhando para baixo até mim, ainda se divertindo. Segurou esse olhar por um tempo, enquanto eu tentava passar pelos meus olhos toda a raiva que sentia dele. Depois ele deu meia volta e andou até a porta que ficava bem na minha frente. Eu percebi a arma que ele guardava nas suas costas, dentro da calça e senti meu coração começando a bater mais forte. Ainda consegui ouvir quando ele falou com alguém do outro lado da porta, mas não consegui entender palavra por palavra.
E então eu olhei à minha volta. Eu parecia estar em um porão largado de alguma fábrica. Tudo era cinza, tudo parecia feito de concreto, o que só me deixava com frio. A cadeira onde eu estava era de metal e provavelmente só estava lá para eles conseguirem prender minhas mãos no gancho que parecia estar preso no tubo de ventilação do prédio. Pelo menos, imaginei que fosse um prédio.
Tentei me fazer soltar ou pelo menos conseguir que a corda nos meus pulsos desse uma laceada, mas não consegui. Pelo contrário, o movimento me cansou ainda mais, me fazendo sentir meus ombros doloridos e como o áspero da corda já estava deixando a minha pele irritada.
Então tentei levantar minhas pernas de novo, mas não conseguia mexer quase nada, a não ser para a frente. Tentei me inclinar para olhar como eles tinham me amarrado e foi quando eu percebi o que vestia.
E quando eu lembrei tudo que tinha me feito chegar ali. Eu não sabia direito como, minha memória não estava clara. Mas eu lembrava do ataque, das janelas quebrando, de um cara andando até mim. E me lembrava bem quando eu os ouvi me falando que seu chefe os tinha ordenado que me trouxessem viva.
Eu ainda usava meu vestido de Marie Antoinette, apesar de ele estar compeltamente sujo, de terra, de alguma coisa preta e até de grama. E eles não tinham se importado nem um pouco em tomar cuidado com a saia quando me prenderam.
Além do decote, que eu tinha exagerado demais por causa da personagem (estava bem arrependida naquela hora dessa decisão), o que realmente me incomodava eram meus pés, descalços, sentindo todo o gelado do chão de cimento. Eu comecei a tremer, não sabia se era de frio ou medo, mas eu não conseguia parar.
E eu tentei! Porque o movimento só me fazia sentir os ombros exaustos e doloridos. Mas quanto mais eu tentava, quanto mais eu percebia onde estava e sentia o cheiro que vinha daquele lugar, mais eu tremia. E eu comecei a chorar, me perguntando por que eu estava ali, por que eles tinham ido atrás de mim! Logo de mim! O que eu tinha feito para ter merecido? O que seria de mim?
E se aquele fosse meu final? E se o chefe me quisesse viva, mas não por muito tempo? E se eu já tivesse dito as últimas coisas que eu falaria para meus pais? E se eu nunca mais visse minha irmã? O que seria da minha irmã sem mim? O que ela estaria pensando? Ela sabia como era importante para mim? Eu tinha conseguido falar para ela o quanto eu a amava?
Meu choro foi crescendo, apesar de eu tentar me fazer parar. O som do meu desespero só aumentou meus soluços e eu não estava conseguindo respirar direito, não estava conseguindo me controlar. E os braços para cima não estavam ajudando, eu estava desconfortável demais, cansada demais.
Meu choro só parou quando eu ouvi um barulhinho e me virei para ver dois ratos andando no canto daquele porão, saindo de um buraco enorme e se escondendo atrás de algumas caixas. O medo do bicho tomou conta de mim por aqueles poucos segundos, substituindo completamente o medo do que aconteceria comigo.
Mas eu logo esqueci dos ratos, quando ouvi a porta se abrindo de novo. Eu me empurrei contra a parede, como se o único centímetro que eu conseguia me fazer chegar mais longe da porta fosse me salvar do que passava por ela.
Quatro homens entraram, cada um com uma máscara diferente de bichos felizes, o que só os deixava ainda mais macabros. Dois deles seguravam metralhadoras grandes, como se eles tivessem protegendo alguém muito importante. E então essa pessoa entrou pela porta, vestido de terno impecável. E eu o reconheci assim que seu rosto chegou à luz tosca do porão.
Mas não podia ser, eu estava enlouquecendo. Eu nem acreditei por um segundo que eu realmente estava vendo bem ele na minha frente. O que quer que eles tinham me dado, ainda estava me fazendo efeito, dessa vez me fazendo ter alucinações. Não era fisicamente possível eu estar vendo que eu pensava que via.
Acreditando ou não, eu continuei olhando para ele. E uma vez que ele estava na minha frente, os quatro homens tiraram suas máscaras, se mostrando para mim. Naquela hora, eu fiquei doente de nervosismo. Tentei olhar para outro lado, tentando preservar a identidade deles, que eles tão facilmente largavam.
Eu ainda queria poder oferecer a ideia de eu fingir que nada tinha acontecido, de que eles poderiam me soltar que eu não iria vir atrás deles. E eles não teriam garantia nenhuma se eu pudesse descrevê-los.
Mas era inútil. Eu conhecia o chefe deles. E o conhecia muito bem, mesmo que ainda tentasse negar na minha cabeça, me convencer de que estava louca.
"Gabrielle," sua voz familiar chegou aos meus ouvidos, me fazendo fechar os olhos com ainda mais força, apesar de já ter meu rosto virado o máximo que dava para o lado.
Ele me conhecia, era ele. De algum jeito, ele tinha sobrevivido, ele estava na minha frente.
"Me desculpa por ter te trazido aqui assim," ele continuou, chegando mais perto de mim. "Mas era o único jeito que eu conseguia te fazer sair do castelo."
Eu soltei todo o ar que estava segurando e me virei para olhá-lo. Ele tinha as sobrancelhas juntas na testa, como se tivesse pena de mim. E eu fiquei com raiva de vê-lo sentir aquilo de mim. E mais raiva ainda de que era ele.
Ao invés de tentar me afastar dele, dessa vez, eu tentei avançar nele. Tentei me fazer soltar das cordas que me amarravam, mas não para ficar livre, e sim para poder empurrá-lo. Mas minhas tentativas eram inúteis e eu mal consegui me mexer.
"Eu preciso da sua ajuda," ele me disse, me fazendo rir, de desespero e de raiva.
"EU TE ENTERREI!" Eu gritei até onde meus pulmões aguentavam, e ele deu um passo atrás. "Você sabe disso, né? QUE EU TE ENTERREI, EU CHOREI, EU ASSISTI ENQUANTO ELES COLOCAVAM SEU CAIXÃO NO CHÃO! E agora você aparece, dois anos depois, todo feliz, QUERENDO A MINHA AJUDA? Por que não começa me explicando como você conseguiu sair debaixo da terra? Porque eu podia jurar que tinham pregado a tampa do caixão que eu AJUDEI A SUA MÃE ESCOLHER!"
Gregor só engoliu em seco, enquanto eu gritava com ele, mas ele não perdeu seu ar de superioridade. E então ele foi até um canto do porão, pegou uma outra cadeira de metal e a arrastou até estar na minha frente. Ele soltou o botão de seu blazer, todo formal e impecável, e se sentou, como se estivesse prestes a me interrogar.
E enquanto eu o assistia, eu me perguntava como aquilo era possível. Ele era um ninguém! Ele tinha significado o mundo inteiro para mim, mas ele era um cara normal. Como é que ele tinha passado de um estudante de uma universidade comum, para o chefe de um grupo de caras que carregavam metralhadoras e sequestravam pessoas como eu?
E por que exatamente ele tinha me tirado do castelo? Para que ele tanto precisava da minha ajuda?
"Eu vou te explicar tudo," ele disse, calmo demais para toda a raiva que corria pelas minhas veias.
"Tem como pelo menos me desamarrar antes?" Perguntei, forçando meus braços para a frente, tentando me soltar de novo.
"Eu não posso confiar que você não vai tentar fugir antes que eu te explique o que me fez chegar aqui," ele falou.
Eu perdi meu ar por um segundo, me dando conta de que ele realmente não era o mesmo cara. E mesmo que fosse fisicamente, ele já falava comigo como se nós nem nos conhecêssemos. Eu era a refém, ele era o sequestrador. Era até aí que ia a nossa relação.
"Tem como pelo menos baixar meus braços? Eles estão me matando!" Pedi, tentando mostrar em minha voz o quanto aquilo me incomodava.
Gregor me mirou por um tempo em silêncio, pensando no meu pedido. Então ele virou seu rosto para um dos homens, sem falar nada. Esse homem veio até mim, soltou meus braços e os separou. Depois ele amarrou cada um deles em um lado da cadeira.
Eu achava que ia melhorar, e melhorou. Mas apesar de ficar mais confortável, meus ombros só doeram ainda mais quando eles foram apresentados à sua posição normal outra vez. Demorei alguns segundos para me acostumar e me sentir um pouco melhor, e, enquanto isso, Gregor começou a se explicar.
"Acredito que não haja razões para eu ser desonesto com você agora," ele disse, cruzando as pernas. Eu só lhe sorri, incomodada. "Meu pais não eram contadores. Bom, minha mãe era, mas não da empresa que você conhecia. Meus pais eram agentes secretos."
Eu soltei uma risada com aquilo, sem acreditar. Mas ninguém mais no porão riu comigo, e suas armas me convenceram a ouvir mais e reagir menos.
"Quando eu fiz dezoito anos, eles me contaram sobre o seu trabalho," Gregor continuou, nem um pouco afetaso pelo meu ceticismo. "Eu não fui para Georgetown para estudar, eu fui para Langley para seguir os passos de meus pais," eu ainda não acreditava naquilo direito, mas o deixei continuar falando. "Eu obviamente não morri," ele abriu os braços, como se mostrasse o quão vivo ele estava, e eu pensei que aquilo era uma pena. "Eu tive que forjar a minha própria morte quando me infiltrei em uma missão muito importante."
"Espera," eu falei, tentando entender tudo aquilo. "Então você está me dizendo que aquele corpo que nós enterramos, todo aquele alvoroço sobre como vocês tinham sido assaltados, todas as vezes em que seus pais falavam para nós, as outras pessoas da província, que eles estavam mal, que estavam deprimidos, tudo isso era mentira?" Eu nem esperei que ele me respondesse para falar de novo. "Quem estava naquele caixão? Como vocês tinham conseguido fazer a polícia falar que seu coração tinha parado de bater? Como fez para que ninguém fosse atrás de investigar?"
"Meu coração nunca parou de bater," ele explicou. "Ele só ficou em um ritmo tão baixo, que ninguém conseguiria senti-lo. E eu não vou me explicar mais do que isso. O fato é que eu estou vivo e construí a minha carreira com aquela missão. Todos me falavam que eu estava louco, que eu não sabia o que estava fazendo. Que eu mudaria completamente quando me infiltrasse. Mas eu provei que todos estavam errados. Eu provei que conseguia. E agora vou provar de novo. Com a sua ajuda," ele falou a última frase amaciando sua voz que tinha ficado bastante dura.
Eu não sabia como completar. Por mim, aquilo já tinha dado o que tinha que dar. Meu medo de não conseguir sair dali tinha diminuído, agora que era ele que estava na minha frente. E eu nem considerava a possibilidade de ajudá-lo, mesmo que ainda não soubesse como.
"Eu sei que isso tudo parecer muito estranho," ele começou, mas eu o interrompi, soltando uma risada alta, bastante sarcástica.
Depois fiquei séria de novo e o mirei, tentando passar o máximo da minha raiva naquele olhar apesar da minha posição vulnerável.
"Estranho nem começa a explicar o que isso tudo é," falei.
"Eu entendo," ele disse, claramente não percebendo o quanto aquilo era grave para mim. "Eu não consigo imaginar pelo que você passou! E eu queria te contar, eu juro que queria. Gabrielle, você era o amor da minha vida. Ainda é. Mas eu tinha que fazer uma escolha e foi isso que eu fiz."
"Então você escolheu forjar a própria morte e se tornar um espião?" O ridículo das minhas palavras me fazia querer rir, mas eu me segurei. "Eu te enterrei," falei baixinho, balançando a cabeça.
"Eu sei e eu nunca vou conseguir me perdoar por ter te feito passar por isso," ele falou e eu fiquei maravilhada com como ele conseguia parecer culpado e ainda desprezível ao mesmo tempo. "Mas isso é passado. Eu preciso da sua ajuda. Preciso que você consiga superar o que aconteceu entre nós e me ajude."
Eu não desviei meu olhar dele por nem um segundo, não queria que ele achasse que estava conseguindo passar por cima de mim. Era uma tentativa estúpida para alguém que estava amarrada a uma cadeira, mas a história que eu tinha com ele só podia estar do meu lado.
Alguém bateu na porta e um dos caras com metralhadora foi falar com quem quer que fosse. Eu vi tudo com o canto do olho, pois Gregor e eu ainda estávamos brincando de ver quem desviava o olhar antes.
Eu ganhei, quando o cara chegou perto de seu ouvido e falou alguma coisa, ele olhou para o lado. Depois voltou a me mirar.
"Eu preciso ir," disse, se levantando. "Vou te deixar para tentar absorver tudo, mas eu volto logo."
Não precisa voltar, eu pensei. Mas não falei nada enquanto os quatro e ele saíam do porão. E então eu fiquei sozinha de novo, com nada além daquelas palavras dele na minha cabeça.
Eu me lembrei do dia em que acordei com a minha mãe se sentando na minha cama, me contando que ele tinha morrido. Me lembrei de quando eu fui falar com seus pais e eles me explicaram o que tinha acontecido. Eles tinham ficado lá, me contando entre suspiros sobre o assalto. Sua mãe se fez de indisposta, mentindo na minha cara.
O momento que eu mais queria bloquear da minha cabeça era de seu enterro. Eu tinha me aguentado bem, eu tinha feito meu discurso no velório e chorado, mas me aguentado. Só que quando começaram a baixar seu caixão e eu vi ali que aquela era a minha última chance com ele, eu surtei. Eu perdi a noção da realidade e minha dor tomou conta de mim. Eu ataquei seu caixão, tentando fazer com quem parassem, pedindo pelo amor de deus para que me dessem um pouco mais de tempo com ele. Meus pais tiveram que me arrancar de lá e me levar esperneando para longe, senão eu teria sido enterrada com ele.
E no final, eu teria sido enterrada sozinha.
Deixei minha cabeça cair, sentindo o seu peso me doendo de novo o pescoço. Aquilo era um absurdo! Eu não podia estar simplesmente presa a uma cadeira! Talvez aquilo fosse normal para ele, Gregor Laeddis, o grande espião. Mas para mim, não! Aquilo não era coisa de gente civilizada! Ele poderia muito bem ter pedido a minha ajuda sem ter me dopado, sem ter atacado o castelo! Aquilo não fazia o menor sentido!
E então eu me lembrei da única parte da conversa que tinha ficado em suspenso. Por que ele queria a minha ajuda? O que ele queria que eu fizesse? Tinha que ser alguma coisa muito ruim para ele ter tomado tais providências. E eu sabia que a agência de inteligência de Illéa nunca tinha sido muito legal, nunca tinha usado meios ortodoxos para suas missões, mesmo que eles fingissem que sim no Jornal Oficial de vez em quando. Mas o rei não sabia da existência de todas as missões? Ele não saberia se alguém estivesse planejando sequestrar uma das selecionadas que moravam em seu castelo?
E então eu lembrei de Charles e senti um aperto enorme no peito. Eu me perguntei o que ele estaria pensando, se ele se daria conta de que eu tinha desaparecido. Será que ele perceberia que eu tinha sido levada? E ele se importaria? Ou só acharia que era uma escolha a menos que ele teria que fazer?
Será que alguém no castelo tinha alguma ideia de quem tinha me sequestrado? Eu olhei em volta do porão e cheguei à conclusão de que tinha alguma coisa muito errada com aquela história. A agência de inteligência de Illéa era a segunda melhor no mundo inteiro. Eles teriam algum jeito de me levar para um lugar mais seguro, menos nojento, que cheirasse menos a esgoto.
Aquela não parecia uma missão normal. Aquilo não parecia do estilo da agência mais famosa do mundo. Tinha alguma coisa errada naquilo, ainda mais que Gregor queria que eu lhe fizesse um favor, mas me tratava como refém. Ele tinha dito que não confiava em mim, mas era eu que não confiava nele.
E pensar que um dia eu tinha acreditado com todas as minhas forças que ele era o amor da minha vida!


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