A Primeira vez que rimos juntos escrita por Ped5ro


Capítulo 3
Ryan


Notas iniciais do capítulo

"You could still be
What you want to
What you said you were
When I met you

You've got a warm heart
You've got a beautigul brain
But it's desintegrating
From all the medicine" - Medicine



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Sempre acreditei na existência da alma. Não naquela imortal, acredito naquela alma que nós mesmos construímos, ela cresce acompanhando tudo que vivemos, sendo no fim a longa soma de todos os fatos ocorridos em nossas vidas. Eu acreditava na alma que era mortal, de certo que algo sempre é compartilhado com alguém, mas se não se fala, tudo morre com a gente. Nossa alma morre conosco, faz-se ao pó assim como todos nós. Minha alma ruía as vezes, mas Albert sempre estava lá, eu sempre poderia dizer o que estava entranhado, podia contar com ele pra fugir desse lugar.

Sempre planejamos fugir, mas não fugir simplesmente. Faríamos uma grande viagem pelo país, visitaríamos cidades históricas e conheceríamos pessoas, sem mamãe e papai, sem escola e um monte de gente inútil. Mas agora eu não sabia o que dizer, não sabia o que sentia, minha alma evaporava, condensava em pesadas nuvens, que iam se avolumando a minha volta. E o céu pesava.

Era melhor contar tudo, antes que eu não pudesse fazer absolutamente nada a respeito. Agora Albert já sabia, e se antes eu parecia alheio, agora ele parecia alheio a tudo. Eu observava de perto qualquer reação dele, qualquer estímulo, parecia que estávamos num estado letárgico da vida, uma paralisia momentânea.

— Então isso quer dizer que...

— O que? – ele continuava sentado no banco, os cotovelos apoiados na mesa. Olhava o vazio, o vento soprou, fez as árvores chiarem muito alto e os pássaros se agitaram.

— Que você é gay? – ele então completou.

— Provavelmente. – então logo perguntei a mim mesmo, que raios seria “provavelmente”? Esse “provavelmente” era o que exatamente?

— E ele?

— Ele o que?

— Ele também é?

— O Mark? Não sei, acho que sim, gostaria muito de saber.

— Mark... – ele falou o nome dele para o vento ironicamente, deu aquela risada que fica presa no peito e suspirou. –Você precisa falar com ele então...

— Mas como assim... – fiquei meio tonto com o modo de reação dele, não era o que eu esperava exatamente... Na verdade eu não esperava nada, nem ao menos sabia se iria contar, então aqui estamos nós.

— Ué, tu precisa falar com ele, se gosta dele... Ele parece prestar atenção em você, isso já é alguma coisa.

— Talvez. Pode não ser nada. Mas porque você diz isso? Eu podia só ignorar e então poderíamos voltar a ser como antes. – falei sentando ao seu lado e o abracei, sem motivo, só queria abraça-lo e sabia que podia, sabia que sempre o poderia.

— Ignorar não é a melhor opção, mesmo que quisesse, mesmo que eu quisesse. Enfim... As coisas não podem voltar a ser como antes. – ele tinha razão. O tempo é uma linha reta, não podemos encurta-lo nem torce-lo, só aceitar o que cada segundo nos traz de bom e ruim.

Ele se levantou, andou até certa altura do pátio, então olhei para trás e fez um aceno para que o acompanhasse. Assim que o alcancei, ele falou rindo pra mim.

— É legal ter alguma coisa de volta. Vamos pra aula, enfrentar alguns demônios. – ri junto. Ele era impossível.

~~~~~~~~~~☁~~~~~~~~~~

Passei então um monte de tempo pensando numa maneira de conversar com Mark, o que significa que eu não prestei a mínima atenção na aula. O ruim de se pensar demais sobre algum assunto ou, mais especificamente, uma pessoa, é que apesar de capitar cada detalhe sobre o fato, você começa também a inventar detalhes, coisas que nunca existiram, vai-se moldando significados em coisas que não tem significado, ou que pelo menos tem algum completamente diferente do que você acha que é. E logo então, eu começo a criar esse “script” na minha cabeça de milhares de situações, do que eu poderia dizer e do que ele provavelmente responderia, senão, do que eu queria que ele respondesse. No fim, acabo tão confuso quanto no início de tudo. Pensei em lhe mandar alguma carta ou bilhete, mas achei a ideia piegas demais, depois um e-mail, mas não tinha o endereço eletrônico dele, nem era garantido ele ter um, fora que eu era péssimo pra lidar com palavras e explicar coisas tão confusas. A última e pior alternativa era que eu precisava falar com ele pessoalmente, eu já começava a suar e meu coração disparava de leve só de imaginar ele na minha frente, esperando eu explicar alguma coisa que nem eu sabia se pra mim era real ou não. Ainda estava tentando lidar com a possibilidade de que minha mente tivesse confundido tudo, absolutamente tudo, faço isso as vezes, troco umas coisas por outras e acabo fudendo tudo. Acho que todo mundo faz isso, confunde as coisas e acaba ferrando tudo alguma hora.

No intervalo eu conversava com o Albert acerca de várias coisas, eu tentava não pensar em nada relacionado ao Mark, nem procurar ele pelo pátio, mesmo que ele não parecesse estar em nenhum lugar.

— Quando você vai falar com ele? – Albert perguntou. Fiquei preocupado em falar daquilo ali, com todos os nossos amigos a volta, mas Albert e eu tínhamos uma maneira tão peculiar de nos comunicar que mesmo que escutassem alguma coisa, não iam entender absolutamente nada.

— Não sei, acho que vou mandar uma carta ou algo assim?

— Carta? – ele riu. - Para de ser maluco e vai logo falar com ele pessoalmente.

— EI! Uma carta é a melhor alternativa agora. – respondi

— Por que “a melhor”? Pelo que eu sei, ele pode muito bem ignorar a carta, sabendo que foi você quem escreveu, outro problema é que depois de mandar a carta você vai ficar mais nervoso ainda, ele vai ficar sabendo de tudo e você sabe que ele sabe, aí você nunca vai falar, nem vai querer olhar pra ele...

— Okay! Okay, eu vou falar com ele...

— Hoje! – ele completou.

— Hoje!? – questionei espantado, não queria que fosse hoje, não queria que fosse dia algum. Ele olhou pra mim, então compreendi aquele olhar do tipo “você quer mesmo que eu repita tudo de novo!?”.

— Você acha que é melhor eu esperar a hora da saída ou eu vou na casa dele?

— Na casa dele, parece que ele não veio hoje na escola, mas é claro que você já sabe disso. – ele sorriu pra mim e mordeu o sanduiche. Sorri de volta.

~~~~~~~~~~☁~~~~~~~~~~

Na teoria as coisas são bem mais fáceis, é muito melhor só supor que algo aconteça, esperar certos resultados e números, contar com tudo isso para o avanço até o seu objetivo. Seria bom poder criar planos infalíveis.

Consegui o endereço da casa dele na secretaria, fingi ser o cara legal que leva o dever de casa para o amigo doente.

A rua até a casa dele era muito arborizada. A calçada estava tomada por folhas amareladas e a luz fracamente esverdeada batia em toda a avenida, ventava pouco e fazia um clima ameno. Pensei que tudo poderia estar ao meu favor, que as coisas poderiam dar certo no fim, mas então pensei que não, que ele iria continuar me menosprezando assim como fazia com todo mundo.

Depois de encontrar o número e a porta correspondente fiquei encarando a campainha com o coração na traqueia e a pulsação atrás da orelha. Fechei os olhos e toquei a primeira vez. Ouvi um breve latido de cachorro, muito baixo e agudo, parecia ser pequeno, então uma mulher abriu a porta e sorriu pra mim. Ela era supreendentemente parecida com Mark, ou o Mark parecido com ela. Tinham os mesmos olhos, mesmo que fossem de cor diferente, o formato era o mesmo, fundos, parecendo olhos de pardal, com suas olheiras levemente avermelhadas e a pele muito clara.

— Você é o amigo da Vi, Harry? – ela perguntou alegremente com o cachorro aos seus pés.

— Nã... Não, eu sou... Sou Ryan, amigo de escola do Mark. Ele... Ele... Não foi na aula hoje e... – eu queria muito parar de gaguejar. E de suar. E de mexer meus olhos como se tivesse tomado ecstasy.

— Mãe, quem que... – de repente ele apareceu num corredor atrás dela, e me encarou com se fosse na cozinha e atirar uma faca no meio da minha testa. – Pode deixar mãe, é pra mim.

— Venha querido pode entrar... – ela me convidou abrindo mais a porta para que eu passasse, mas Mark se pôs no caminho e eu fiquei sem saber se entrava ou não.

— Deixa, nós vamos dar uma volta. – ele falou sorrindo pra ela. Eu nunca tinha visto ele sorrir antes, só de sarcasmo, o que não era a mesma coisa. Agora, ainda mais, ele e a mãe pareciam a mesma pessoa pra mim, sem contar, é claro, com aquela aura negra que o envolvia.

— Tudo bem, mas não demore, não gosto de você se esforçando muito dep...

— Tudo bem mãe, não vou demorar. – ele a interrompeu, e vendo que eu não me movia, foi empurrando pelas costas até uns poucos metros da casa dele.

— O que você faz aqui!? Você pirou ou alguma coisa assim!? Você e seu irmão são malucos, MA-LU-COS. Você é o pior. Com que tipo de intenção malig... – ele foi despejando aquilo tudo em cima de mim, ele falava e falava, e eu só conseguia me perguntar “porque eu era tão estúpido a ponto de gostar dele?”. Sim agora eu tinha certeza, em meio a todos os xingamentos e calúnias, tive a mais clara certeza, ao mesmo tempo que não sabia porque razão. Sentia que era muito mais profundo do que eu poderia vir a saber algum dia, era esse poço que eu não conseguia parar de cavar, a cada dia eu ficava mais distante do que eu era e partia para um lugar que eu não sabia se existia.

— Eu gosto de você. – falei baixo e calmo. Por uns instantes ele continuou falando como se não tivesse me ouvido, depois parou e olhou pra mim. – Quero dizer, gosto mesmo de você! Muito! Sei que não deveria ter dito isso, porque você é um tremendo babaca, tanto quanto você diz que eu sou. Mas é isso que é. Não aguento ficar dando uma de “menino obcecado” mais.

Ele olhava a volta, então logo depois olhou pra mim novamente e sorriu. Só que... Aí, ele começou a aplaudir, com entusiasmo, como se tivesse assistido a melhor peça da vida.

— Isso! Foi! Muito! Bom! Muito bom mesmo! – olhei pra ele completamente confuso, já começando a ficar frustrado. – Cara, você e seu irmão tem que encenar isso no final do ano na escola, vai ser de primeira. Mas acho que o papel de menino-no-armário não caiu muito bem em você.

— Como assim?

— Ué! Isso é uma piada, né? – por instantes pensei que ele ficou tão confuso quanto eu.

— Não, não é piada! Eu... Eu falei sério caralho! Tem como ao menos uma vez na sua vida você para de humilhar as pessoas e escutar o que elas têm pra dizer. – ele olhou pra mim atônito, virou a cabeça para todos os lados da rua, vagando em algum pensamento além da própria vida.

— Isso só pode ser uma piada, só pode! Isso TUDO é uma piada. Já não basta tudo que tem acontecido até agora!? Não é possível, porra! – ele falava com ele mesmo, andava pra lá e pra cá na calçada, com um sorriso infeliz no rosto, trágico.

Sentei no meio-fio. Pensei em ser uma dessas folhas amarelas que caiam das árvores, rodopiando no vento, pousando no asfalto e se degradando no tempo de Agosto.


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Notas finais do capítulo

Espero não ter sido chato demais, hahaha. E espero que estejam gostando da história, recebi algumas mensagens fofas e espero que venha mais, quero muito saber se alguém já tem algum favorito e se quiserem conversar comigo, já sabem! Até breve!



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