Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 6
T01E05 - Pesadelo diurno


Notas iniciais do capítulo

Episódio 006 da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. Eric é empurrado pela própria mãe a uma situação difícil, e acaba presenciando algo indescritível.

ATENÇÃO: contém cenas fortes!



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“Vamos, Eric! Não esquece de pegar algumas roupas de frio!” gritou Marcelo, um jovem de porte atlético, pele clara, olhos verdes, topete descolorido e brinco de ouro na orelha esquerda, parado em frente ao portão. As duas garotas e o outro rapaz, que estavam com ele, tentavam segurar risada.

Eric assistia àquilo através da janela de seu quarto, indignado, escondendo parte do corpo atrás da cortina. Ele vestia calça jeans, os mesmos tênis sujos de sempre, e uma blusa de capuz vermelha cobrindo a camiseta com o símbolo do herói Lanterna Verde. Lá fora, o céu da manhã estava coberto por nuvens, e a temperatura estava relativamente baixa, pois uma frente fria aproximava-se.

“Eles já estão te chamando faz meia hora”, disse a mãe, entrando no quarto subitamente. “É só colocar algumas roupas nessa mochila,” resmungava, enquanto abria e fechava gavetas, socando peças dentro da bolsa, “por que você demora tanto?”

“Eu não acredito…” balbuciou o jovem, ainda com os olhos vidrados lá fora, no carrão cercado pelos estudantes mais populares do cursinho, com quem Eric jamais havia trocado uma palavra sequer.

A mãe fechou o zíper da mochila e ofereceu-a para o filho, com um sorriso de canto. “É realmente inacreditável que eles queiram sair com você, assim de repente, não é?”

“Não acredito que você fez isso! Você não tem o direito!” gritou Eric, revoltado com a mãe.

“Você precisa cultivar amizades, filho! Eu estou velha, logo não vai ter mãe. Quem você pensa que vai estar ao seu lado quando precisar?”

“Eu não preciso de amigos, droga!” exclamou ele, pegando a mochila e colocando-a em cima da cama.

“Podia arrumar uma namorada, também.” Ela cruzou os braços.

“Mãe!”

“Só estou falando a verdade. Agora vai, que logo minhas amigas do bingo vão vir aqui em casa.”

“Bingo?” Ele pôs as mãos na cintura.

“É, filho. Programa de gente velha e solteira.”

“É. Eu sei bem quem vai vir aqui em casa, e sei o tipo de jogo que você vai jogar…” Eric pegou a mochila e a pôs nas costas por uma só alça.

A mãe sorriu e apertou a bochecha do filho. “Bingo!” E deu uma piscadela. “Agora vai, enturma, e loguinho você vai mandar em todos eles.”

“Eu não sou um líder! Eu não sou o meu pai!” Ele gesticulava agressivamente.

“Claro que não é igual ao seu pai… muito pelo contrário! Você, pelo visto, vai ficar aqui comigo o quanto puder, não é mesmo?” disse ela, e riu.

Eric balançou a cabeça, desacreditado no que estava acontecendo. “Vai ser uma merda!” exclamou, olhando para baixo, com os braços estendidos e as palmas das mãos voltadas para cima.

“Vai nada!” retrucou a mãe, com um sorriso, suavemente negando com a cabeça. “Aproveita!” disse, sussurrando, com os olhos fechados, o nariz franzido e os ombros erguidos.

Eric olhou-a uma última vez e foi, com o olhar sério e desgostoso. Saiu pela porta da frente e aproximou-se dos novos amigos com as mãos nos bolsos e desviando o olhar.

“Aleluia! Bora, que o fim de semana vai ser louco!” afirmou Marcelo. Seu amigo magro de pele escura gargalhou.

O amargurado jovem, desconfiado, olhou uma última vez para trás, e viu sua mãe acenando à porta, com um sorriso enorme no rosto. Eric negou com a cabeça, mais uma vez, e entrou no banco de trás, como indicado por Marcelo. De um lado, sentou-se uma loira de pele bronzeada e cabelo bem comprido, com um nariz minúsculo e lábios finos. Do outro, uma moça um pouco mais velha, de cabelo e pele morenas, franja reta próxima aos olhos e brincos de argola grandes. Ambas vestiam roupas curtas e bem decotadas, com as pernas cruzadas e os olhos pregados em Eric. Ele se sentiu desconfortável e apertado, com a mochila no colo, mas não disse nada.

“Curte sertanejo?” perguntou Marcelo, ligando o aparelho MP3 do carro, com o volume altíssimo, tocando alguma música que falava sobre aproveitar a vida e esquecer-se da namorada. “Então vamos!” exclamou, ligando o carro e acelerando.

Eric permaneceu calado pelos primeiros cinco minutos de viagem, enquanto Marcelo e seu amigo conversavam sobre passar em algum lugar para comprar bebidas.

“Então, Eric… você gosta de cerveja?” perguntou Marcelo, olhando para o novato através do retrovisor, em uma tentativa de quebrar o gelo.

“Olha… não muito. Eu prefiro não beber”, respondeu, tímido, olhando para o chão. Preferiria assistir à paisagem lá de fora, mas sentia-se intimidado pelas garotas, que não paravam de olhá-lo.

“Tem que beber, velho! A gente vai curtir muito esse fim de semana! A chácara é do meu pai, mas ele está em Goiás”, disse Marcelo, entusiasmado, tentando puxar papo.

“É…” resmungou Eric, sem saber o que dizer.

“Você já foi pra Goiás? As minas de lá são uma delícia! Mas aqui também tem umas maravilhosas, tipo essas que estão aí com você.” Ele riu, e o amigo também. O rapaz não parava de encarar Eric pelo retrovisor, com um olhar intimidante.

“Elas são muito bonitas mesmo”, afirmou Eric, encolhido, tentando não encostar nelas. Não podia saber se eram namoradas dos dois.

“Sério mesmo? Você acha elas bonitas mesmo, velho?” perguntou Marcelo.

“São bem bonitas. Muito bem arrumadas.” Eric não sabia que atitude tomar diante da situação.

“Cheira o pescoço da Karina, velho. Ela é a mina mais cheirosa dessa cidade!” sugeriu o rapaz que dirigia. Ao perceber que Eric permaneceu imóvel, insistiu. “Vamos, velho! Dá uma cheirada no cangote dela! Ah, você não sabe qual é a Karina? É essa loira maravilhosa aí!”

Eric aproximou o nariz do pescoço de Karina, e distanciou-se imediatamente após chegar a cinco centímetros. “É… nossa, muito cheirosa mesmo!” exclamou, encarando o teto. A moça mordia os lábios e o encarava, enquanto isso.

“É nóis, velho!” disse Marcelo, e gargalhou. O amigo, que ia no banco passageiro, pôs a cabeça para fora do carro e gritou.

De repente, o carro começou a frear, estacionando próximo a uma conveniência. Marcelo e o amigo desceram do carro, mas as moças não, e Eric ficou preso em meio às duas.

“Velho, vamos comprar umas caixas de cerveja, firmeza? Fica aí com essas delícias e aproveita, que o fim de semana está só começando!” disse Marcelo, e entrou no estabelecimento com o amigo.

Karina, a loira, começou a passar a mão na coxa de Eric, aproximando os lábios de seu pescoço, enquanto a outra vinha pelo outro lado, dando beijos molhados perto de sua orelha. Nesse instante, sentindo-se desconfortável e olhando para fora, o inacreditável ocorreu a Eric: poderia aquele objeto em cima do balcão de atendimento da conveniência ser o mesmo cubo mágico que havia arremessado do terraço? Eric não pensou duas vezes, pulou para o banco da frente e saiu do carro, disparando em direção ao estabelecimento, com a mochila em mãos. As moças ficaram espantadas e irritadas com aquilo.

Era como se, de repente, a ideia de destino não mais tivesse aquele ar de mero devaneio. Parecia que o desafio de montar aquele cubo mágico, imposto por si mesmo e reforçado pelo garoto no terraço, estivesse perseguindo Eric. Ele entrou no local ofegante, com o coração a mil, e, assim que notou que o atendente estava mostrando aos rapazes onde estavam as cervejas, pegou o objeto e checou-o imediatamente, confirmando suas suspeitas: havia apenas dois quadrados de cor errada, era mesmo seu cubo mágico. Ele guardou o objeto dentro da mochila segundos antes de Marcelo e seu amigo verem-no.

“Pensei que eu tinha deixado claro que era pra você ficar no carro”, disse Marcelo, sério, com os olhos fixos nos de Eric. “O que você veio fazer aqui?”

“Eu vim dizer que gosto de vodka. Eu tinha falado que não bebo, mas é porque não gosto de cerveja.” Eric estava com as mãos nos bolsos, e quase gaguejava.

“Ah! Isso aí, velho! A gente compra uma vodka pra você, pode ficar tranquilo!” exclamou o rapaz, sorridente. Seu amigo também sorriu. Pagaram as duas caixas de cerveja e a garrafa de vodka, e voltaram para o carro.

As moças estavam paradas ao lado do carro, encostadas, com os braços cruzados e expressão de ódio. A mais velha chamou Marcelo para um canto e cochichou em seu ouvido por alguns segundos, enquanto o outro rapaz guardava as bebidas no porta-malas. Então, sérios, todos entraram no carro, reassumindo a mesma configuração de antes. Agora, no entanto, elas olhavam para fora, não mais dirigindo o olhar a Eric, que sabia que havia algo de errado. Marcelo deu partida e acelerou.

Durante vários minutos, um silêncio pesado tomou conta do ambiente. Enquanto não tinha que responder nada e não mais era encarado constantemente pelas moças, Eric tirou o cubo mágico da bolsa e começou a tentar resolvê-lo de uma vez por todas. As palavras do garoto que encontrou no terraço, sobre o cubo ser um teste e sobre não haver muito tempo para que fosse solucionado, martelavam em sua mente.

“Já que você quer tanto que eu faça isso, farei, mas me tire dessa situação!” rezou, em silêncio, segurando o cubo mágico e encarando-o, com a imagem do garoto na mente.

Eric, agora, olhava para o objeto com um olhar diferente: pela primeira vez, desde que começou a tentar montá-lo, viu-o como algo simples, fácil, claro; mesmo assim, não deixou de concebê-lo como importante. “Que teste estúpido”, pensou. “Mas é um teste, e estou cansado de falhar em testes.” Com seu novo olhar decidido diante do desafio, a resposta veio rápida, e Eric conseguiu deixar cada face do cubo inteiramente de uma mesma cor. Contente com a vitória que vinha buscando havia algum tempo, guardou-o na bolsa e começou a olhar para o chão, sorrindo, feliz da vida.

“Você é gay, Eric?” perguntou Marcelo, de repente.

“Como? Não… claro que não.” Eric ficou surpreso com a pergunta.

“Entendo… você não quer me contar a verdade, né? Sabe de uma coisa? Pra andar com a gente, a pessoa tem que ser de confiança”, disse, em um tom desgostoso. “Não é mesmo, Junin?” perguntou, olhando para o amigo, que concordou com a cabeça.

“É sério, eu não sou gay”, tentou explicar Eric.

“Não acha engraçado nossas mães serem amigas há tanto tempo, e a gente nunca ter dado rolê junto, cara?”

“Bom… a gente faz cursinho junto também, e…”

“Você não tem muitos amigos, né?” interrompeu Marcelo, olhando-o pelo retrovisor e fitando a mancha roxa ao redor do olho de Eric. “Pra sua mãe ter que ligar lá em casa e pedir pra minha mãe me fazer buscar você, pra estragar nosso rolê…” Ele agora mostrava-se furioso.

“Olha… desculpa por isso, sério! Minha mãe é doida. Se você quiser, pode me deixar em casa, eu falo que a culpa foi minha”, disse Eric, um tanto amedrontado.

“Não, de boa… sua mãe deve ter pensado em algo pra planejar isso tudo. Eu acho que ela quer que o filho dela aprenda a ser homem, vocês não acham?” perguntou Marcelo, olhando para trás. As moças concordaram, olhando Eric com desprezo. “Então você vai aprender a ser homem, hoje, Eric!” Junin soltou um urro másculo.

Eric desesperou-se, olhando para as moças como se pedindo ajuda, mas elas não se comoveram. O carro começou a frear, estacionando em um campo próximo a um casarão um pouco afastado da cidade. Marcelo puxou o freio de mão, tirou o cinto e desceu, abrindo as portas traseiras e pedindo para o amigo procurar algo grande e doloroso. As moças desceram do carro.

“Bora! A gente não quer te machucar, velho, só quer que você prove que está falando a verdade. Se você não é gay, então vai provar que não é, sacou?” disse Marcelo, recebendo um taco de sinuca do comparsa.

Eric desceu do carro, trêmulo, com os olhos cheios de lágrimas. “Cara, você não precisa fazer isso. Sério, eu não sou gay. Eu pensei que elas fossem suas namoradas, como eu iria fazer alguma coisa com elas?” choramingou.

“Não vem com desculpinha não, velho! Você deixou a Karina e a Mayara aqui muito, muito tristes, quando saiu correndo delas”, gritou, furioso, abraçando as garotas e beijando ambas no rosto, em seguida. “Agora você vai se desculpar com elas, não vai? A gente não quer ver essas duas delícias aqui tristes, né?” perguntou, com um sorriso sádico e louco.

Começou a garoar. Elas estavam com feições sérias. Marcelo gesticulou algo para Mayara, a mais velha, que tirou a blusa e a calcinha, ficando apenas de minissaia e sutiã. Seus peitos eram volumosos, com uma pinta bem localizada. Ela se apoiou no carro, olhando fixamente para Eric com uma expressão de cobrança.

“Tá esperando o que, velho?” bradou Marcelo, batendo o taco na grama, com força.

De um lado do carro havia o grande campo aberto, com dois gols posicionados nas extremidades: um campinho de futebol improvisado. Do outro, a grande mansão da próspera família de Marcelo. E de frente ao carro, a poucos metros, uma cerca de arame farpado, que separava o campo e o casarão de um pasto, onde, longinquamente, podia-se enxergar o gado pastando próximo a um antigo celeiro.

De repente, enquanto Eric desabotoava a calça, tomado por lágrimas e tremendo o corpo inteiro, algo inexplicável ocorreu. Uma névoa começou a surgir no horizonte, aproximando-se rapidamente e cobrindo todo o ambiente, tornando a visão a longo alcance comprometida em questão de segundos. Parecia que o nevoeiro havia tomado quilômetros e quilômetros de espaço, transformando as figuras mais distantes em meras silhuetas de contorno opaco.

Marcelo e Junin ficaram sem reação diante daquilo. O primeiro largou o taco de sinuca imediatamente e correu para dentro do carro, fechando e travando as portas, e tentando desesperadamente dar partida, enquanto o amigo batia raivosamente contra o vidro, pedindo para entrar. Karina entrou em histeria, gritando de pavor, enquanto Mayara procurava sua calcinha pela grama, aos soluços. Eric abotoou sua calça, assistindo perplexo àquilo tudo, e distanciou-se dos demais, de costas, com passos lentos.

As pupilas do jovem assustado dilatavam-se, enquanto, no horizonte esfumaçado, uma forte luz vermelha começou a brilhar. Eric caiu sentado na grama, apoiado pelos braços, e começou a rastejar de costas para longe da luz, que parecia vir de dentro do celeiro. Não conseguia tirar os olhos daquela aura rubra que emanava uma sensação jamais sentida antes por qualquer um dos jovens ali presentes.

Junin parou de bater contra o vidro do carro, deu alguns passos para trás, com o rosto inexpressivo, e caiu de joelhos na grama; então, apoiou-se com os cotovelos no chão e, de quatro, começou a vomitar sem parar, com os olhos arregalados, quase saltando para fora. Karina intensificou seus urros, e começou a arrancar os próprios cabelos, com as veias da testa e do pescoço saltadas, ameaçando explodir. Mayara caiu sentada na grama, com o olhar perdido, e logo desmaiou, com sangue escorrendo do nariz. Marcelo, por sua vez, ainda não havia conseguido ligar o carro.

Eric, de repente, parou de rastejar, não conseguindo mais mover-se, preso por aquela sensação esmagadora de incompreensão absoluta. Ficou ali, na grama, a uma distância suficiente dos demais para mal conseguir enxergá-los devido à névoa espessa. A chuva intensificou-se.

Uma torrente de sangue começou a jorrar pela boca de Karina, e seus globos oculares assumiram uma coloração vermelha intensa. Ela se apoiou de costas na traseira do carro, suas pernas começaram a dobrar-se, e seu corpo foi escorregando para baixo, sem vida. Os olhos de Junin acumularam tamanha quantidade de sangue que explodiram, e seu vômito passou a carregar pedaços de órgãos, até que caiu com o rosto na poça de sangue e bílis. Mayara não mais se levantou, apenas continuou deitada na grama, de olhos abertos e secos, com sangue escorrendo por cada orifício do corpo.

Retomando seus movimentos, Eric decidiu que precisava fazer alguma coisa. Estava apavorado com a morte iminente que parecia aguardá-lo, e a todo instante passava o indicador no nariz para checar se estava sangrando. Levantou-se e caminhou lentamente até o carro, com as pernas dormentes e a intenção de ajudar Marcelo a fazer o veículo funcionar, para saírem dali o mais rápido possível. Ao aproximar-se, desviou o olhar do corpo de Karina rapidamente, e apoiou-se com os braços esticados no vidro traseiro, encarando a grama, enquanto se recuperava da cena forte. De repente, ouviu um som estranho vindo de dentro do carro, olhou para dentro e não conseguiu enxergar absolutamente nada: o vidro estava repleto de sangue, pele e restos de Marcelo. O brinco de ouro escorria em meio à pasta humana, a centímetros do rosto de Eric.


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Notas finais do capítulo

No próximo episódio: como foi o início do fim para Elisa?

Baixe o PDF em: http://www.4shared.com/office/dP9Sw9mlba/Expurgo_-_T01E05_-_Pesadelo_di.html

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