Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 4
T01E03 - O religioso


Notas iniciais do capítulo

Episódio 004 da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. O recrutamento segue adiante. Milton, o homem de fé, também recebe uma estranha visita.



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“Então… eu não acho que ele tenha feito por mal… não, de forma alguma. Ele apenas usou seu senso próprio de justiça. Ele te ama, sabia? E é por isso que vou tentar ajudar da forma que puder. Eu sei que você se preocupa com ele, eu também me preocupo. Por isso mesmo… por isso mesmo que vou rezar por ele, e Deus irá proteger sua alma. Olha, pode contar com isso, tudo bem?” dizia Milton, sentado em uma cadeira acolchoada, gesticulando e forçando um sorriso.

“Senhor… o horário está para terminar”, anunciou uma jovem enfermeira, com apenas a cabeça ao lado de dentro do quarto.

“Eu vou ficar mais um pouco”, afirmou Milton, com sua voz grave.

Ela apenas concordou, com um certo medo, e recuou. É compreensível que a enfermeira não tenha insistido na discussão, pelas características físicas de Milton: um homem de trinta e poucos anos com porte guarda-roupa, de músculos imensos, quase dois metros de altura, pele negra, careca, de lábios grossos e olhos escuros. Nesse dia, assim como nos demais, ele vestia uma camisa de cor neutra e manga curta, calça jeans de cor clara e sapatos velhos amarronzados. Ninguém gostaria de arrumar encrenca com ele por pouca coisa, e, por isso, Milton sempre ganhava alguns minutos a mais nas visitas.

Mas sua aparência talvez fosse apenas fachada para manter certos problemas distantes. Milton é um dos homens mais pacíficos a habitarem a cidade. Sempre carrega consigo sua fiel bíblia, frequenta a igreja três vezes por semana e zela com todas as forças pelas pessoas que ama. Foi palestrante em uma organização que luta contra diversos vícios por três anos seguidos, até que um ou dois imprevistos acabaram forçando-o a abandonar a prática. Nesse instante, havia acabado de ler um trecho da bíblia para a pessoa que visitava. Era sua rotina. Tudo isso era sua rotina.

“Você vai ficar bem, não vai? Eu prometo que volto amanhã, no mesmo horário. Eu sempre venho, você sabe. Não se esqueça, de maneira alguma, que eu te amo muito! E, claro, eu vou me agasalhar bem se esfriar mais tarde. Hoje vai ser o batismo daquele garoto de quem te falei. É um garoto de sorte, os pais são maravilhosos. Essas coisas me deixam muito feliz”, dizia Milton, segurando a mão de uma mulher mais velha, também de pele negra, que descansava inconsciente em uma maca, ligada a vários aparelhos. “Acho que vou precisar ir embora, infelizmente”, lamentou ele, olhando pela porta aberta e vendo enfermeiros conversando e observando-o. “Nos vemos amanhã, mãe”, despediu-se, e beijou sua mão, deixando uma lágrima escorrer.

Milton saiu da sala com um sorriso terno no rosto, tomado por uma pureza que se reabastecia naquelas visitas, mas que se esvaía ao longo do dia, obrigando-o sempre a voltar no dia seguinte. Passou pelo balcão de atendimento e notou que uma enfermeira lia um livro chamado “Tentáculos debaixo da cama”, com uma ilustração terrível na capa, representando uma garota encolhida próxima à cabeceira, enquanto é ameaçada por tentáculos e mãos que surgem de baixo de sua cama. Milton não conseguiu entender o motivo de alguém ler um livro como aquele, e cogitou falar com aquela enfermeira sobre a palavra de Deus, mas já estava atrasado para o trabalho.

–--

Horas mais tarde, lavando pratos na cozinha do restaurante onde trabalha, Milton pensava no quanto gostaria de receber qualquer forma de retribuição por seu bom comportamento, por jamais cometer deslizes, por ser sempre um Bom Samaritano. Ele estava no caminho certo, disso jamais teve dúvidas. Milton vivia envolto por sua fé inabalável, algo extremamente raro de se encontrar nas pessoas. Mas, às vezes, sentia um cansaço que ameaçava fazê-lo desistir de seguir no caminho do bem. Ele, de vez em quando, sentia-se usado por Deus. Trabalhara pelos últimos anos de sua vida em torno de mandamentos deixados por Ele, adaptara toda sua vivência em função da palavra de Jesus, mas jamais recebeu sequer um sinal de gratidão em que realmente pudesse acreditar. Tudo isso martelava em sua cabeça, enquanto ensaboava um prato sujo com restos de macarrão.

“Senhor, e eu?” sussurrou bem baixinho.

“Miltão!” gritou um colega de trabalho, entrando na cozinha.

Milton deu um pulo de susto, derrubando molho e sabão no avental que vestia.

“Tá assustado?” perguntou o colega, em tom sarcástico. “Tem uma loirona lá fora querendo falar com você”, disse, sorrindo e apontando para a porta dos fundos.

Milton abanou as mãos em cima da pia e foi checar quem o estava visitando. Sabia que não seria uma loirona, obviamente. Ao abrir a porta, deparou-se com um garoto de cerca de onze anos de idade, pele escura, cabelo Black Power e roupas imundas.

“Quem é você?” perguntou Milton, suspeitoso, enquanto enxugava as mãos no avental sujo de molho.

“Quem você espera que eu seja?” indagou o garoto, com um olhar sagaz. As mãos nos bolsos da bermuda suja e rasgada.

“O décimo quarto moleque de rua que vem pedir comida aqui, hoje”, respondeu o homem, firme.

“Eu acho que você não sabe com quem está falando”, retrucou o menino, com um sorriso de canto.

“Você sabe?” Milton aproximou-se dois passos, com um olhar ameaçador e os punhos fechados.

“Eu sei muito bem, Milton”, respondeu o garoto, olhando-o de baixo, com um sorriso convicto. “E vim falar com você porque preciso da sua ajuda. Você tem provado ser digno da missão que trago. Está pronto para isso?”

Milton franziu sua testa com indignação e hesitou por alguns segundos, tentando formular uma resposta. “Você é Ele? É quem estou pensando que é?” Afastou-se dois passos e apoiou-se no muro com uma das mãos.

“Sim… acho que sim. De certa forma.” O menino balançou os ombros.

“Mas, então…” suspirou Milton, com uma expressão terna, “como posso saber que você não é o outro?”

“O outro?” indagou o garoto, intrigado, levando as mãos à cintura.

“O inimigo. Ele dispõe de tantas armas quanto o Senhor”, explicou o religioso. “Ele também sabe meu nome, e não teria problemas em tentar recrutar um servo de Deus para fazer o mal, tentando se passar pelo Pai.”

O moleque gargalhou até ficar sem ar. “Tudo bem… não quero questionar suas crenças, Milton”, disse, recuperando o fôlego. “Sua fé é justamente o que te faz tão especial pra mim.”

“E então?” insistiu Milton, sério.

“Milton… se esse inimigo possui os mesmos poderes de Deus e é indistinguível d’Ele aos olhos do ser humano, então como você pode ter certeza de que não são iguais? Ou melhor: de que são uma coisa só?” O garoto ainda parecia segurar risada.

“Porque eu tenho fé no Senhor! Eu saberia reconhecer uma manifestação de sua glória. Se você duvida disso, então não deve saber muito mais que meu nome.” Milton ameaçou ir embora, voltar ao trabalho. Ele rangia os dentes.

“Ah, eu sei sim muitas coisas sobre você, Milton. Sei que você espera presenciar um milagre todos os dias, antes de vir trabalhar. Você espera que sua mãe acorde do coma, olhe nos seus olhos e diga que está tudo bem.” O menino estava sério, agora, voltando as mãos para os bolsos.

Milton encheu os olhos de lágrimas e, boquiaberto, escorou-se no muro e deslizou até sentar na calçada. “Eu não entendo… por favor, qual deles é você?”

“Vamos fazer assim: digamos que sou os dois, ao mesmo tempo. Digamos que eu seja um meio termo”, explicou o garoto, sensibilizado, indo até Milton, abaixando-se ao seu lado e tocando-o no ombro.

“Então você é humano, como eu?” O homem franzia a testa, perplexo, encarando alternadamente o rosto do garoto e a mão que repousava em seu ombro.

“O quê? Você precisa de provas? Eu esperaria mais de alguém com sua fé, Milton!” disse o menino, também franzindo a testa.

“Talvez eu esteja errado… talvez eu não reconheceria Sua presença. Se você realmente for Ele, peço perdão! Mas não consigo sentir… eu não consigo ter certeza.” Milton estava confuso, com o olhar perdido.

“Você não precisa ter certeza de que sou quem ou o quê espera que eu seja. Você só precisa ouvir o que tenho para dizer, Milton.” A voz do garoto havia tornado-se reconfortante, suave.

“O que você veio me dizer?” O homem olhou-o nos olhos, suplicando por respostas.

“Eu vim dizer que se aproxima o dia em que você fará cada terço rezado valer a pena. Cada oração antes de suas refeições, cada prece dedicada a outras pessoas, cada confissão de seus pecados; nada disso terá sido em vão, em breve.”

“O que eu preciso fazer para isso?” Os olhos de Milton voltaram a encher-se de lágrimas.

“Preciso que você passe em um último teste, antes disso.”

“Eu venho esperando por esse dia há tanto tempo”, desabafou o homem, entregando-se ao pranto que guardava no peito. “Eu faço o que for!”

“Eu te entendo. Acredite, eu sei tudo pelo qual você tem passado. E tudo que peço é que você deixe de esperar por milagres. Eu quero ver um milagre sendo realizado por você, Milton.”

O cozinheiro limpou as lágrimas com o avental sujo de molho e retomou o fôlego. “Você acha que eu seria capaz?” perguntou.

“É você quem tem que saber”, respondeu o menino, com um sorriso. “Você não tem muito tempo.” Levantou-se e foi embora, insensível, com as mãos nos bolsos. Parecia estar apressado.

Milton ainda passou alguns minutos ali, sentado na calçada, pensativo. Certamente fora muita informação de uma só vez. Algumas pessoas passaram por ele, moradores dos apartamentos baratos situados na viela, comentando sobre o suposto novo morador de rua. Milton não reparou que era dele que falavam, só deu por si quando chamaram lá de dentro da cozinha.

“Ô, Miltão! Vem logo, rapá! Sabe que a Vevê faltou… tem um monte de pratos sujos aqui, pô!”

Enquanto o religioso, com sua fé posta em cheque, levantava-se apoiando-se de costas na parede, um objeto caiu do céu, diretamente em uma caçamba a poucos metros dali. Milton aproximou-se e procurou entre as milhares de folhas secas que lotavam a caçamba, até encontrar o objeto, que provavelmente teve sua queda amortecida e, por isso, estava intacto. Ele o pegou com a mão direita e levou para perto do rosto, tentando entender o que acabara de acontecer. Olhou para os lados, para cima, mas não teve ideia de onde aquilo poderia ter surgido. Obviamente devia ser um sinal. Milton voltou para o trabalho, levando consigo o cubo mágico que caiu do céu.


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Notas finais do capítulo

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