Expurgo escrita por Jean Pereira Lourenço


Capítulo 3
T01E02 - A escritora


Notas iniciais do capítulo

Episódio 003 da série "Expurgo", de Jean Pereira Lourenço. Conheça Elisa, a escritora, rainha das criaturas fictícias e vítima dos impiedosos seres humanos. Conheça também seu cãozinho companheiro, Eulírico.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/534083/chapter/3

“Você está errada!” disse ela, e tragou o cigarro.

A imagem refletida no espelho mostrava uma mulher de quase trinta anos com cabelos longos e escuros, pele pálida, sobrancelhas e lábios finos, cílios compridos, olhos azuis, pescoço longo, peitos minúsculos e ossos desenhados com nitidez sob a pele, no corpo magro. Ela vestia uma folgada blusa branca de alça, short jeans e chinelos de dedo, e segurava o cigarro perto do rosto, com o braço esquerdo cruzado e o outro apoiado na vertical.

“Você está completamente errada, e sabe disso. Você… senhorita” Elisa apontava para o espelho, com os olhos apertados e um sorriso de canto. “Você é a escolhida. É o único caminho possível para você. Está pronta para seguir seu destino?” Ela agora cruzava os braços e forçava uma voz mais grossa. “Existe uma força sombria crescendo no vale, e só você pode impedi-la de dominar toda a Terra!”

“Mas… por que eu? O que eu tenho de tão especial?” disse, encenando uma expressão inocente, com a voz afinada e os dedos entrelaçados juntos ao peito. “Eu sou apenas uma garota inocente vivendo em um mundo cruel e impiedoso… o que eu poderia fazer para salvar o Reino?”

“Existe uma sombra crescendo no vale…” disse, novamente com a voz engrossada, o cigarro no canto da boca e as mãos na cintura. “Droga! Ele já disse isso”, refletiu em voz alta, com seu tom natural, tragando o cigarro em seguida. Então, escutou a água ferver. “Vou terminar de preparar o café”, disse, encarando o espelho e engrossando a voz novamente. “Você fique aí, mocinha!”

Enquanto Elisa despejava a água fervente na garrafa térmica através do coador, alguma parte de seu cérebro despejava ideias fantásticas em sua mente através de um filtro quase impenetrável: seu recente “bloqueio de escritora”, como ela mesma nomeava.

“O homem dentro da parede…” sussurrava Elisa, pensando alto, “um homem que vive dentro da parede… mas o que isso tem de mais?” Ela encheu uma caneca com café e sentou-se à pequena mesa de madeira de seu apartamento monoambiente. Acendeu um cigarro e passou a intercalar goles com tragadas e sussurros. “Aí ele faz ameaças. E a protagonista fica com um medo irracional, porque ele não pode sair de dentro da parede… droga! Isso não dá um livro!”

De repente, o celular tocou. Elisa foi pegar o aparelho e voltou à posição anterior, antes de atendê-lo. Estava sentada em uma cadeira com os pés em outra, e as pernas dobradas.

“Oi?” atendeu. “Oi! E aí, como vão as coisas?” Elisa abriu um sorriso. “Igualmente ruins,” disse, rindo, “mas por que não está bem? Aconteceu alguma coisa?” Ela escutou com atenção e expressão de surpresa, concordando. “Mas você tem provas?” E ficou mais alguns minutos apenas ouvindo. “Se você for lavar a roupa suja, não faz isso na frente das crianças, viu? De fato, ele é mesmo um canalha! Eu espero muito que tudo se resolva, que não tenha passado de um mal entendido; mas, se for preciso chutar ele pra fora, você tem que fazer isso!”

Quem falava com Elisa ao celular era Amanda, uma amiga de infância que estudou na mesma sala que ela durante o ensino fundamental. Após isso, haviam perdido contato por anos, mas voltaram a conversar esporadicamente quando o destino agiu de forma extremamente peculiar com as duas: o homem com quem Elisa viveu por três anos abandonou-a repentinamente e, depois de alguns meses, conheceu Amanda e foi morar com ela, seu filhinho e sua filha adolescente.

Quando a mãe descobriu sobre o relacionamento anterior do atual parceiro, não viu alternativa senão ligar para Elisa e pedir conselhos sobre como lidar com o contraste entre o charme público irresistível do homem e seu comportamento agressivo que deixava hematomas entre quatro paredes. “É um efeito colateral, mas meu menino precisa de uma figura paterna!” dizia Amanda, justificando-se por manter aquele homem debaixo de seu teto. Elisa não sabia como lidar com a situação: se aconselhasse a amiga a mandá-lo embora, ela podia pensar que Elisa o queria de volta para si – o que, em parte, era verdade.

“E eu? Bom…” hesitou Elisa, ainda falando com Amanda pelo celular, “estou em crise faz mais de uma semana, infelizmente. Eu saio só à noite, levo meu poodle pra passear e aproveito pra comprar cigarros e alguma coisa pra comer no dia seguinte.” Ficou ouvindo por alguns segundos, e então riu. “Pois é, às vezes ainda tenho esses apagões, mas é tranquilo… digo, quem é você?” E gargalhou. “Brincadeira!” Elisa escutou atentamente um conselho da amiga. “Não! Psicólogos e psiquiatras são mais loucos que os próprios pacientes, Amanda!” argumentou, em voz alta. “O quê?” indagou, rindo. “Uma bíblia? Como assim, Amy? Por que eu leria algo que impõe ainda mais regras à vida? Eu, hein! Já tenho problemas demais!” De repente, Elisa ficou séria e compenetrada. “Ele está aí? Tudo bem, depois nos falamos!”

Ela desligou o celular e ficou pensativa por algum tempo. Então, para distanciar-se do que se foi e aproximar-se do que ficou, foi até a estante de livros. Passava os dedos pelos exemplares guardados das cinco obras já publicadas, entre aventuras de fantasia medieval com criaturas mitológicas e histórias de terror com monstros cheios de tentáculos.

Elisa sempre foi fascinada pelas criaturas horrendas: uma mulher de coragens tão absurdas quanto seus medos. Sempre sentiu uma forte empatia com a escuridão, com as alturas, com a própria morte; uma relação amena com riscos, sejam eles reais ou fantasiosos, que a maioria das pessoas opta por não enfrentar. Por vezes, debruçava-se na sacada para fumar seus cigarros, apoiando-se na grade apenas pela cintura, com o torso pendurado para fora, e sentia-se confortável nessa posição, olhando o movimento da avenida. Apreciava tanto a turbulenta passagem dos incontáveis veículos durante o dia, quanto a exaltação da massa que invadia os bares e boates à noite. Tudo isso, é claro, à distância. Seu maior medo era lidar com mais de uma pessoa simultaneamente, uma verdadeira fobia de multidões e de estar presente fisicamente em ambientes abertos, onde poderiam observá-la.

Ela pegou um dos livros e olhou bem para a capa: o título era “Tentáculos debaixo da cama”, publicado sob o pseudônimo de Elisa Swan, com uma ilustração maravilhosa representando uma garota encolhida próxima à cabeceira, enquanto é ameaçada por tentáculos e mãos que surgem de baixo de sua cama. Era exatamente assim que Elisa sentia-se, dia após dia, presa em seu apartamento e apavorada por razões inexplicáveis, incompreensíveis, como se temesse um monstro com tentáculos que vive debaixo da cama: a realidade. Simultaneamente, mal podia esperar o dia em que algo sobrenatural ocorresse, como a aparição de um fantasma em seu apartamento, um holocausto zumbi, a vinda de Lúcifer à Terra, ou até mesmo o fim do mundo. Para Elisa, até a ficção que apavora a grande maioria revela-se mais confortável que o mundo real.

Enquanto folheava o livro, lembrava dos bons momentos de noites de autógrafos, entrevistas e reportagens advindos de suas publicações. Nada disso era real, agora. Parecia que tudo fora apenas um sonho. Mas, com o maço de cigarros e o isqueiro em mãos, preparada para acender mais um, seus pensamentos lamentosos foram interrompidos pela campainha, que soou pelo apartamento como um alarme de incêndio para Elisa, que se mantinha sempre alerta. Ela foi até o olho mágico e viu um garoto de cerca de onze anos de idade, pele escura, cabelo Black Power e roupas imundas. Pensou por uns segundos, mas logo julgou-o inofensivo. “O que poderia ser, afinal? Um pedinte?” refletiu, em silêncio, e abriu a porta para o moleque.

“Olá! Estou vendendo biscoitos para ajudar as crianças necessitadas da Rua 7 de Setembro…” começou a explicar o menino, sorridente. Ele não carregava nada nas mãos.

“Eu não tenho dinheiro aqui.” Elisa desconfiava de suas verdadeiras intenções.

“Mas elas estão com fome, e…”

“Olha, eu realmente não me importo”, afirmou ela, austera. “Eu preferiria estar com fome, agora, a ter todos os problemas que tenho. Ok?” Elisa foi fechando a porta, mas o garoto a segurou aberta.

“Eu sabia que você não seria caridosa, Elisa. Mas pensei que não custaria tentar”, disse o garoto, com a voz ligeiramente mais grave e um sorriso falso.

Elisa abriu a porta novamente. “Quem é você?” perguntou, espantada, escondendo parte do corpo atrás da porta.

“Eu sou seu subconsciente, e estou meio cansado de te humilhar. É divertido, mas cansativo. Eu sou a imagem refletida no espelho com quem sei que fala todos os dias, e não quero mais ouvir suas conversinhas cheias de desculpas.”

A escritora ficou com o olhar perdido, pensativa, e os lábios levemente trêmulos. “O que você quer de mim?” suplicou, com olhos lacrimejantes.

“Eu quero fazer uma proposta. Uma proposta misericordiosa, Elisa, porque sinto pena de você”, disse o menino, com as mãos nos bolsos e um sorriso de canto sarcástico.

“E qual a proposta?” Ela estava completamente sem reação.

“Eu quero saber se você está disposta a fazer algo aparentemente impossível para conseguir algo aparentemente inalcançável. Que tal?” Ele mantinha sua expressão e posição estáticas.

“Você está me dizendo que pode trazer de volta minha inspiração? Quebrar meu bloqueio de escritora?” perguntou Elisa, maravilhada, mas ainda assustada.

“Exatamente. Você só precisa passar em um teste.” A feição do garoto agora era séria, compenetrada.

“Mas espera… por que você parece um moleque de rua? Por que não se parece comigo, se é meu subconsciente?” Sua expressão era duvidosa, uma mão na cintura.

“Porque eu disponho apenas de recursos que se encontram no lado negro da lua, Elisa. Entende? Você já viu esse garoto, alguma vez, e não notou. Eu poderia assumir a forma de milhares de pessoas que já passaram por você despercebidamente.”

“Então, por que não assume outra forma, agora mesmo, pra provar?” Ela apertou os olhos e cruzou os braços.

“Elisa…” suspirou o menino, com desdém, “você esteve esperando por mim todos esses anos da sua vida, ou não? Porque, se quiser, posso dar meia volta e ir embora, agora mesmo, e nunca voltar. É isso que você quer? Ou prefere ouvir minha proposta?”

“Não, claro… pode fazer sua proposta”, disse ela, engolindo seco e levando uma mecha de cabelo para trás da orelha.

“Você tem cerca de vinte e quatro horas pra sair daqui e dar uma volta lá fora. Isso é tudo que precisa fazer. Simples, não é mesmo?” O garoto tinha um sorriso irônico estampado no rosto.

“Como assim?! Você sabe que eu não posso fazer isso! Sabe que eu não consigo! Isso é uma espécie de humilhação gratuita? Você sabe que eu vou falhar!” exclamou Elisa, gesticulando desesperadamente.

“Bom… se você vai falhar ou não, isso é um problema seu, não é mesmo?” disse ele, erguendo uma das sobrancelhas e tirando a mão direita do bolso. “Vou levar isso aqui”, afirmou, pegando o maço de cigarros e o isqueiro da mão dela. “Acho que vai ter que sair pra comprar mais em plena luz do dia. Estou certo?” O garoto sorriu e saiu andando.

“Como você espera que eu consiga fazer isso? Volta aqui com o meu cigarro!” esbravejou, da porta de seu apartamento.

“Depende do quanto você quer voltar a escrever. Boa sorte!” gritou o moleque, de costas, enquanto caminhava pelo corredor com as mãos nos bolsos.

Elisa entrou em seu apartamento e bateu a porta com força, cheia de raiva, provocando um estrondo. Sentou-se em um canto e pôs-se a chorar, com as mãos no rosto, descontroladamente. O som de seu pranto despertou Eulírico, seu cãozinho de raça poodle, que veio correndo em sua direção e começou a tentar lamber seu rosto. Elisa abriu um sorriso, limpou as lágrimas e começou a brincar com o animalzinho. Enquanto segurava suas patinhas e encenava um ritmo de valsa, viu em Eulírico uma possibilidade de cumprir com o acordo feito com seu subconsciente.

Ela foi até o banheiro, lavou o rosto e passou um pouco de blush. Trocou de roupa e saiu com um vestidinho azul-marinho com flores brancas, e Eulírico foi no colo. De certa forma, a companhia de seu animalzinho de estimação faria tão bem a ela quanto a própria dona faria a ele. Nos períodos de crise de Elisa, Eulírico quase não passeia, e fica o dia todo preso no apartamento com pouca luminosidade, assim como a dona. Elisa desceu pelas escadas, afinal tinha medo que o elevador ficasse preso e o oxigênio acabasse, o que a levaria à morte. Bom, na verdade, talvez temesse mais que o oxigênio tivesse que ser compartilhado com pessoas desconhecidas que a observassem.

Chegando ao térreo, estava tão apavorada com aquela enorme quantidade de pessoas, que esbarrou em um jovem mal arrumado. Elisa sentiu o mero esbarrão como uma ameaça de morte, começou a tremer e sentiu sua pressão baixar. Mas pensou novamente nos cinco livros já publicados, no conto parcialmente idealizado e na carreira que não poderia jogar fora. Olhou para Eulírico e imaginou o cãozinho dizendo que ela deveria seguir em frente. Elisa sorriu, olhou para o lado de fora, e foi. Eulírico levou sua dona para passear.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Baixe o PDF gratuito em: http://www.4shared.com/office/e_epPoiGce/Expurgo_-_T01E02_-_A_escritora.html

Curta a página oficial de "Expurgo" no Facebook: https://www.facebook.com/SerieExpurgo



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Expurgo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.