Cigarro de lástima escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 1
CIGARRO DE LÁSTIMA




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Sentou na mesa deixando o café esfriando na bancada, acendeu o cigarro, o cigarro de lástimas, como de costume, sempre que algo a incomodava, ela acendia um, para queimar seu pavio e suas lágrimas.
Esperou eu iniciar alguma conversa, porém estava centrado na mesa, em estado de vegetação, procurando algum sentido vago de razão.
Virou a face para o lado esquerdo e assoprou profundamente a fumaça que engolfava aos poucos os seus pulmões, não bastaria dias e ela estaria morta, como mais uma fumante.
Lembro que quando a conheci seus olhos eram azuis puros, porém naquela mesa, naquele dia nublado, seu aspecto negro combinava com a minha alma. Para quebrar o pior grito que sempre será o silêncio, tive que falar.
— Eu não aguento mais.
— O que você não aguenta mais? — Clarice questionou.
Impactou o cigarro contra o cinzeiro, deixando cair algumas cinzas na superfície, olhou para os meus olhos em uma tentativa arruinada de tentar me entender.
— O que me incomodava antes era que algo mudasse, agora... É que nada mude.
— Não cansa de falar em enigmas? — Sabe como irritar alguém? Diga tudo e ao mesmo tempo nada.
— Por que ninguém se abre comigo? A minha pior dor é não me sentir importante.
Agarrei nos dois lados da pequena mesa redonda, e estiquei o pescoço para perto dela e do seu cigarro, a fumaça percorria minha espinha e o ônus de mais uma dor incompreendida pesava meus pés. Continuei:
— Há dois tipos de dores, aquela que te fortalece, e a dor inútil. Por que simplesmente não termina com a minha dor? Acione o botão, a porra do botão! Faça-me sentir vivo!
Retomei meu lugar na cadeira e tornei o controle, deixei o coquetel de euforia se esvaziar aos poucos, suei frio naquele dia sem calor. Ela me olhava com um tom sem espanto, como se soubesse que sempre seria o meu despoletador. Fumava seu cigarro como se andasse tranquilamente no parque. Não disse nada, esperou eu continuar meu discurso ignorante.
— Desculpe. — Rendi-me.
Apagou o cigarro na própria mesa e o pôs no cinzeiro, sem sair do lugar tirou a trava da garganta.
— Nunca peça desculpas, nem para a sua mulher.
Comecei a rir, não sei se foi uma risada satírica, sarcástica ou cínica, simplesmente ri, olhei para o teto que simbolizava o meu céu e disse com toda veracidade:
— Eu amo essa mulher, mais do que tubarão ama sangue!
(Silêncio)
Levantei a face e olhei para ela, ficamos naquele olhar frenético por um bom tempo.
(Silêncio)
Contradizendo o esperado, não fui eu que levantei e fui olhar o mundo pela janela, foi ela, acima da pia ficava a janela da cozinha, a janela da minha alma, naquele local sempre foi onde eu tive minhas melhores inspirações, foi onde aconteceram as minhas piores crises existenciais.
Nada aconteceu por um bom tempo, nós refletimos sobre tudo, sobretudo em silêncio. Ela finalmente olhou de volta ao meu pedaço de cadáver e disse:
— O universo é um amontoado de coisas, é sinergia pura, sabe o que acontece quando alguém se junta ao pedaço morto de terra? Ele entra em desnível, ele caí. Demora anos, talvez séculos para ele se recompor, pode ser a morte do papa ou a sua que vai trazer o seu sepulcro. Sabe o que isso significa D? Não importa o seu papel no mundo e sim as suas ações. Nunca será visível a todas as pessoas... Se você existe para mim, a sua vida já valeu, agora vai limpar essa cara, e lavar a sua roupa, ela cheira cigarro.
Disse tudo como se fosse uma mãe aconselhando o seu filho, eu já disse que eu amo essa mulher?! Ela então pegou a sua bolsa marrom na bancada e partiu para o trabalho, levantei da mesa sem ao menos agradecer, fui ao banho, deixar molhar minha alma. E não é verdade, a água é solvente universal.

FIM

25/04/14


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