Brazilian Horror Story: Campus escrita por Math Green


Capítulo 4
Episódio 4 - Fígado de Inocentes


Notas iniciais do capítulo

Por favor, visite o link para ver um dos teasers da fanfic:
http://s1288.photobucket.com/user/matheusgreenburg/media/teaser-papagaio_zpslzpiflmo.mp4.html

e visite meu perfil para ver os pôsteres fanmade.



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– Está servido. – Vera colocou o prato na frente de João. O pedaço da filha, pequeno, escuro, cru, que ele botou na boca de uma vez só. Era extremamente apetitoso, o sangue explodindo na boca e escorrendo pela lateral do lábio. Doce, metálico, ainda quente da menina.

– O que você fez com o corpo? – perguntou ainda mastigando.

– Joguei no lago.

1708

Vera viu a garganta do homem contrair enquanto ele engolia o fígado da filha. Um trovão rugiu acima da casa. Ele se sentiu melhor instantaneamente.

– Não tinha coisa mais pura nesse mundo que aquela criança. – ela disse, andando pela cozinha e se sentando ao lado dele. – Você se deu saúde e imortalidade, mas matou a própria filha e praticamente matou sua esposa de tristeza. Você é um homem muito ruim, João da Fonseca, e o Céu um dia irá puni-lo.

O homem olhou-a enquanto ela disparava as palavras como um tapa. Sabia que era verdade. De repente, sentiu um mal estar terrível, e começou a tossir, com ânsia de vômito. Cuspiu uma coisa prateada, nojenta, com sangue escorrendo.

– Mas... O que é isso? – ele perguntou, assustado, a boca suja de sangue.

– Isso é o seu fígado. Ou o que sobrou dele. Você deverá guardá-lo, pois ele é sua vida. – ela disse. Pegou um pote de vidro e, usando garfo, arrastou o fígado até atingir o fundo do pote. Entregou ao homem. – Esconda bem. Nem eu quero saber onde irá guardá-lo.

Ele segurou o pote com cuidado, e talvez nojo.

– Onde está Fátima? – perguntou.

– Correu para o quarto. Ela nunca mais vai ser a mesma, se prepare. – respondeu a mulher. João, que já estava ficando irritado com a mulher se intrometendo na sua vida, levantou-se.

– Você foi de grande ajuda, Vera. Vamos ao escritório para que eu possa assinar sua carta de alforria e então você pode ir embora.

– Ir embora nada. Eu não quero ir embora. Você vai me libertar e eu vou morar aqui – sorriu – como uma madame.

– O que? Isso não estava no acordo...

– Estamos falando da sua vida, por favor, pare de ser tão idiota. Agora, vou beber uma das suas cachaças enquanto você, por favor, assina minha carta de alforria. – ao vê-lo, incrédulo, ainda sentado, gritou - Vai, homem!

Enquanto isso dona Susana ouvia tudo do corredor.

– A escrava morando aqui, conosco! – fechou o punho de raiva – não posso suportar. Preciso... dar um jeito.

Andou até seu quarto, que era luxuosamente decorado com uma enorme cama, uma poltrona perto da janela, uma penteadeira e um quadro seu quando era mais jovem, com João nos braços. A melhor parte da decoração, porém, era Mouro, um escravo negro como café que geralmente sentava-se no chão embaixo da janela. Susana caminhou até ele e sentou-se na poltrona.

– Mouro, querido, massageie meus pés. – o escravo engatinhou até ela, sério, e pegou os pés da idosa, massageando enquanto ela se abanava. – Beije-os, como fizemos ontem.

O escravo obedeceu, e Susana passou todo o seu pé pelo rosto do escravo. Depois empurrou a cabeça dele para trás e pediu que ele ficasse de quatro, para que ela pudesse apoiar os pés em suas costas.

– Estou precisando relaxar. Feche a porta do quarto. – O escravo, com cuidado, retirou os pés da senhora e colocou-os no chão, depois trancou a porta e levantou-se até ela. Ela passou a mão pelo tronco do escravo e baixou suas calças, passando a mão pela virilha e apertando as nádegas fortes do rapaz.

– Gosto muito mais quando está assim. – os olhos percorreram o corpo dele até chegarem em seus olhos escuros - Tire meus vestido, isso. Agora, me carregue até a cama. Venha, deite-se comigo. – abriu a gaveta e retirou três cordas, que usou pra amarrar os pulsos, os pés e a boca do escravo.

Mouro, já sabendo do gosto da rainha, virou-se de bruços. Ela pegou mais uma coisa na gaveta, sentou-se em suas coxas e passou a mão pelas costas dele, toda marcada de cicatrizes. Ergueu a mão – um pequeno chicote.

– Agora, vamos brincar.

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Era hora do almoço. Estavam sentados à mesa Susana, João, Fátima, Guilherme, e para o desgosto de todos, Vera. Ao menos ela tinha porte – não colocava muita comida nem comia com ferocidade como faziam os outros escravos. Fátima falava sozinha, murmurando.

João colocou sua mão sobre a dela.

– Com quem você está falando, meu amor? – ele vinha tentando ser o mais doce com a esposa o possível, desde que ela saíra do quarto.

– Com minha filha! Minha linda menina. – Um calafrio percorreu a espinha de João. Ela sorria e passava a mão no nada, como se acariciasse um bebê em seus braços. Silêncio na mesa – Quem é a menina linda? É Manu, sim! – virou-se para eles – ela é especial, precisa de cuidados especiais. Vou amamentá-la, licença.

Retirou-se da mesa e andou em direção ao quarto da criança.

– Mas o que foi isso? – Susana parecia confusa e um pouco irritada - Ela enlouqueceu?

– É a minha irmã, Manuela. – disse Guilherme, segurando a colher. – Ela é uma bebê especial.

– Ótimo, agora a criança também enlouqueceu. Parece que precisamos de um médico – e mais que nunca ela falou com um forte sotaque português;

– Isso é o preço que você paga por matar e comer da própria filha – falou Vera, apontando para ele com o garfo. – O espírito e a lembrança dela vão te perseguir para sempre. Se prepare.

João baixou os olhos. Susana retirou-se da mesa, por ter perdido a fome, e Vera acompanhou Guilherme para dar-lhe um pouco de doce de goiaba visto que ele havia acabado o almoço. Sozinho, ele se permitiu chorar, mas só por um instante. A dúvida de se tinha feito a coisa certa lhe incomodava, mas ele convenceu a si mesmo que sim, e afastou o pensamento. Nesse instante, o capataz José invadiu a cozinha para chamá-lo.

– Patrão, os cavalos. – falou arfando. João olhou-o sem entender. – Fugiram, ou foram soltos por alguém. Já encontramos dois, ainda há um perdido, e o que encontramos está com a crina e a calda cheia de nós.

– Obrigado pelo aviso, José. Irei verificar em instantes. – liberou o capataz com um aceno da mão, que desapareceu pela porta tão rápido quanto entrou.

Levantou-se e pegou a garrafa de cachaça. Colocou-a na boca e tomou três grandes goles. Fechou a garrafa e andou em direção aos estábulos, passando pelo canavial e pelo moedor da cana. Chegando lá, viu os dois cavalos que haviam sido capturados, porém o cavalo que ele próprio costumava usar estava desaparecido. As crinas dos cavalos estavam embaraçadas, trançadas e amarradas em nós. Obviamente alguém havia feito aquilo. Passou a mão pelo dorso de um dos cavalos quando ouviu o som de alguém pisando na palha no chão.

Flor.

Ele ficou em choque. Pisou em falso, tropeçou e caiu. Ela aproveitou o momento para mostrar o que segurava na mão – um chicote de cipós, que ela jogou contra ele.

– Você morreu. Como...?

– Você não é o único imortal a habitar essas terras agora, Fonseca. – ela disse, as palavras saindo com força – Não se esqueça de mim. Alimentei seu filho, e hoje ele está forte e saudável por mim. Sou quase madrinha dele, sua comadre. Minha vingança virá. Prepare-se para sentir a ira da Comadre Florzinha.

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O corpo estava exibido num caixão de madeira escura, coberto de margaridas brancas e flores do campo amarelas. O corpo de Marcelo estava vestido com uma blusa social branca e com um colete preto, muito formal, e levemente maquiado no rosto para esconder a brancura da morte. Enquanto um padre falava algumas palavras sobre a morte, Deus e lembranças, Fernanda estava encolhida em um canto com Petúnia, que trajava um vestido rico em cores que mais parecia um sári indiano. Seus cabelos longos e ruivos estavam soltos e ela parecia ser a mais radiante de todo o velório.

1960

– Você acha que vão investigar a morte dele? – perguntou, enquanto tremia ao segurar um lenço nas mãos.

– Não, todos parecem conformados com o fato dele ter cometido suicídio. – Ela falou casualmente. - Ele tinha uma vida difícil, é verdade. A filha dele...

– Ele tinha uma filha? – Fernanda soou incrédula.

– Sim, e ela é... especial. A esposa dele é aquela ali. – apontou para uma mulher elegante, com cabelos sedosos pretos em cachos. Ela chorava desesperadamente, fazendo Fernanda sentir-se pior.

– Com licença, preciso de um pouco de ar.

– Você vai fumar? – disse Petúnia - Deixe-me ir com você, também estou precisando dar umas tragadas. Nada como um pouco de ervas para estabilizar a harmonia.

Fernanda se deixou cair num banco enquanto Petúnia se apoiava numa árvore e fumava um de seus charutos misteriosos. Ela cobriu o rosto com as mãos, como se estivesse envergonhada, imaginando o que tinha feito. Petúnia sentou-se ao seu lado.

– Ei, moça. – passou a mão por seus ombros num abraço – Todos nós sofremos com a perda de um colega. Faz parte. Não se deixe abater. – Levantou-se e puxou-a pelas mãos. – Talvez seja hora de voltarmos para casa. – Fernanda concordou com a cabeça e saiu do velório sem se despedir do resto dos colegas que ficaram.

Em seu carro, a professora tentou não pensar muito. Concentrou-se em observar a paisagem, ver que tipo de exemplos ela poderia usar em suas aulas. Viu um motel, luzes neon agora apagadas por estar de dia, viu a Justiça Federal erguendo-se imponente no meio de um campo liso e árvores. Perto da universidade, viu uma lanchonete com pista de dança, e na frente uma pessoa com uma fantasia de papagaio dançando ao som da música que saia da loja.

Ela era uma assassina. Mas... Em legítima defesa, ela pode sim matar uma pessoa. E Vera ainda pedia que ela matasse o diretor...

Estacionou o carro no estacionamento do colégio e desceu. Assim que pôs o pé no território do campus, Vera apareceu ao seu lado.

– Não posso matá-lo, Vera. – disse assim que sentiu sua presença. Ao passar pela entrada da escola, ela viu amarrados na grade vários homens negros, com calças de flanela encardidas. Enforcados. Ela já havia se acostumado com as visões – Vera explicava que era apenas um reflexo da crueldade que havia acontecido por tantos anos naquele território, e que agora ela via tudo isso de uma vez só. – Ele é mais forte que eu... Posso sentir a carga que ele carrega de seu passado e que há algo de errado com ele, mas não consigo.

– Não é bem matá-lo. – disse Vera, sentando-se numa cadeira junto à Fernanda. – Me deixe explicar.

– Você já disse, ele é o papa-figo. – Fernanda soou impaciente, e apoiou o queixo na mão.

– Sim e não. Eu o amaldiçoei. Eu era escrava dele assim como todos esses que você vê, mas eu era curandeira e sempre tive contato com os deuses e entendi de magia. Então ele adoeceu e precisou de um tratamento. Aproveitei o momento para vender uma maldição com imagem de benção. Dei a ele a imortalidade, desde que ele comesse o fígado de um inocente com certa frequência. Ele não vai mais comer o seu fígado porque você matou uma pessoa.

– Obrigada por lembrar. – disse com remorso no rosto.

– Mas ele precisa ser contido. Eu atei a vida dele com o seu fígado, que ele vomitou e guardou num pote. Se você destruir esse fígado, ele morre no mesmo instante.

– Se ele é tão perigoso, então por que você não o matou antes? – Fernanda estava cansada demais. Talvez conversar com Vera roubasse sua energia - Por que você deu a ele o poder da imortalidade? Por que eu tenho que matá-lo?

– Porque você é a única que pode me ver e me escutar que já pisou nesta escola.

– Eu não escolhi ser assim. – suspirou – Eu vim para cá como uma simples substituta, para ganhar meu dinheiro e tentar construir uma carreira, quem sabe fazer um concurso para efetivo. Então eu piso em sala de aula pela primeira vez nessa instituição e tenho aquela visão abrupta de negros enforcados e pendurados no teto, - ela já estava sem ar pela enxurrada de palavras - e então você chega e aparece toda hora em todo canto e fica repetindo “você tem que matá-lo, tem que matá-lo”...

– Matar quem, professora? – uma voz masculina falou atrás dela. Vera olhou para cima, mas seu rosto estava impassível. Fernanda se virou.

–Ah, Antônio. Por favor, avise aos alunos que não estou bem. Na verdade, estou tendo alucinações e preciso ir ao psiquiatra. Ficou de pé, abriu a bolsa e pegou a chave do carro. – Obrigada.

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Jéssica colocava fórmulas no quadro para que pudesse responder aos exercícios propostos. O giz riscando o quadro somado ao som dos lápis arranhando papéis era reconfortante, assim como o leve cutucado do cano do revolver na coxa da perna.

Pegou o livro didático e começou a desenvolver a questão, os alunos olhando-a como uma plateia olha a dançarina no cabaré. Não conseguiu reprimir a lembrança de seu passado, que piscava em sua mente como um letreiro.

Plumas, tantas plumas. As dançarinas seguravam os leques de pluma escondendo o rosto e o corpo dela, deixando à mostra apenas as pernas, cobertas pela meia calça fina e sapatos de salto alto. As plumas vibraram quando o apresentador gritou:

– Senhores, conheçam, por favor, nossa amada Jéssica!

1940

A plateia gritou quando os leques de pluma voaram e deixaram Jéssica, a Amada exposta. Usava um maiô bordado com pedras vermelho com franjas curtas nas pernas e no decote. Tinha um grande coração dourado em cada peito, e usava um adereço de plumas na cabeça, os cabelos curtos e loiros no corte Channel, moda da época.

Jéssica desfilou enquanto gritos voavam pela plateia assim como notas de dinheiro. Tinham tanto a oferecer – e ela também tinha muito para dar. Era a concubina mais disputada do clube – curvas, charme e talento faziam dela a estrela do show.

Chegando à frente do palco, permitiu-se descer devagar até o chão e sentar-se à beira da plateia, curvando-se para exibir o decote. Num movimento rápido e sensual, girou as pernas e cruzou-as, e então já estava engatinhando pelo palco. Levantou-se em câmera lenta, para que o clube admirasse seus belos quadris, dançando ao som do jazz em seus saltos. Juntou-se às dançarinas para concluir a coreografia, e gritou seu bordão:

– Dizem que amor não se compra, mas aqui se compra todo o amor do mundo. – sorriu e fez uma falsa cara de dúvida - Quem quer o amor da Jéssica hoje?

Gritos e gritos masculinos disputando pelo amor da Jéssica. Amor, ah, amor. Isso era coisa de poeta. Jéssica não amava, não tinha amor nem dava amor. Ela só fazia amor. E tinha um bom olho para escolher alguém que pagasse bem. Julgava tudo, dos pés à cabeça. Vasculhou a multidão dentre os que gritavam e viu um homem logo no meio, na frente. Ele não pulava nem chamava seu nome, mas segurava uma nota valiosa junto com um relógio de ouro. Vestia um belo terno.

Jéssica deitou-se no chão e arrastou-se até ele, ficando cara a cara. Ele não era exatamente novo ou bonito, mas era bem rico. Sim.

– Você quer o amor da Jéssica? – perguntou baixinho.

– Eu quero dormir com a Jéssica. – ele respondeu, sorrindo de volta. Estendeu a nota. Ela pegou e enfiou no decote, e puxou-o pela mão para subir ao palco.

– Este é o escolhido da noite! – ergueu a mão dele, e então baixou e segurou em seu braço. – Mas amanhã tem mais, não se esqueçam!

Com um coro de alegria, saíram pelos portões do amor do palco, e Jéssica levou-o ao quarto de luxo. Ele tinha bastante dinheiro, a ponto de ter direito a tudo. Tudo.

Sentaram-se, beberam vinho e conversaram. Ele era professor da Universidade Federal, chamado João, um homem inteligente e cheio de personalidade. Conversaram sobre o que ele gostava de fazer e sobre o que ele Gostava de fazer. Jéssica riu e fez graça também, até passar a mão pelo peito dele e arrastá-lo pela cama. Talvez, pela primeira vez no seu trabalho, ela sentiu prazer naquilo tudo. Não precisava fingir, se ela era boa de cama, ele também era. Rolaram pelo quarto até que, no fim da noite, ela estava apaixonada.

João visitou-a várias outras vezes, e chegaram até a se encontrarem fora do clube. Por ele, Jéssica, a Amada, concluiu os estudos e formou-se em física, conseguindo uma vaga no Colégio de Aplicação também da Universidade Federal. E então...

– Professora – um aluno interrompeu a lembrança. – Eu tenho uma pergunta.

– Claro que tem. – soou frustrada, colocando o livro na mesa e sentando-se no birô. Fungou. – Sim?

– Como funciona um revólver? – a pergunta pegou-a de surpresa. Será que o pestinha... não, estava muito bem escondido e ela havia sido cautelosa, foi apenas uma coincidência.

– Ora, eu não sei. Eu tenho cara de quem já toquei num revólver, Jorge? – respondeu, tentando contornar o assunto. Estava aflita, nervosa. – E eu não quero ser a responsável se você for um assassino e matar seus colegar de classe.

Assassinato. Era isso que ela ia fazer.

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Antônio colocou o prato em cima da mesa onde o patrão estava sentado. Ele obviamente desconfiava da tal doença que o professor tinha e desse tratamento estranho, mas não falava nada.

– Aqui está, senhor. Vai comer cru mesmo?

– Sim. – João pegou o garfo e a faca e partiu um pedaço. Colocou-o na boca e estremeceu com o sabor e o sangue. – É o ideal para o tratamento, assim ele não perde nenhum nutriente no processo de cozimento.

– É ruim? O gosto.

– Os de boi crus são os piores. – Respondeu. Na verdade, não havia nada que apreciasse mais que um fígado cru de criança, pois são os mais apetitosos, porém não podia simplesmente matar crianças para comer o fígado assim. Já bastava todo o problema com o último corpo. – Antônio, vá verificar os alunos, por favor.

– Sim, senhor. – ele fez um aceno com a cabeça e retirou-se.

Enquanto colocava mais um pedaço do fígado na boca, ouviu passos no corredor e uma menina entrou na copa, pelo mesmo lugar que o funcionário teria saído há pouco. Não devia ter mais que 16 anos. Sentou-se à frente de João e observou enquanto ele comia. João sorriu para ela, e colocou sua mão por cima da mão da garota. Ela puxou o braço para junto de si.

– Que bom te ver, minha filha! – falou baixinho para ela.

– Não gosto quando você come isso. – ela disse com raiva. – É errado.

– Eu sei. – ele respondeu. – Se eu não comer, eu morro.

– Você devia estar morto, como eu.

– É verdade. Mas eu sei que você tem se divertido muito na escola. Tem aparecido para mais alguém?

Manuela havia morrido com meses de idade, mas por maldição o Céu permitiu que seu espírito crescesse no campus e pudesse atormentar a vida do pai enquanto ela durasse. A garota não havia sido curada de sua doença, coisa que hoje em dia João sabia que era diagnosticado como Síndrome de Down.

– Alguns meninos gostam de mim. – ela sorriu. – Eles são bonitos. Eles me tocam.

– Eles podem te ver?

– Eu deixo que eles me vejam. Eu gosto. – Uma sombra passou por seu rosto. - Alguns tem medo de mim porque sou feia.

– Você não é feia, meu amor. – passou a mão pela bochecha da filha, e ela se deixou levar pelo carinho paterno. – Você é especial.

– Especial é diferente. Eu quero ser bonita como as meninas que estudam aqui.

– As meninas que estudam aqui não são como você.

– Eu sei. Eu não gosto delas. – pensou um pouco, como se estivesse imaginando. Nesse intervalo, João concluiu o fígado que estava comendo - Eu quero ser uma Aline Braga.

– Você gosta dela? Ela é minha aluna. Ela não é muito comportada.

– Eu sei, eu assisto as aulas. Mas ela é bonita que nem eu quero ser.

– Você não pode fazer nada em relação a isso, certo? Você sabe disso, querida.

– Eu posso fazer muitas coisas. – colocou as mãos sobre a mesa, as unhas grandes manchadas de sangue. – Eu já faço.

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Lucas estava andando pelo corredor em direção ao banheiro, para pode verificar se seu cabelo continuava em ordem e ajeitar qualquer erro no topete, quando viu o garoto que fez dupla com Aline na aula de artes, Tobias, também em direção ao banheiro. Quando entrou, ele estava no mictório, e um som de líquido escorrendo indicava que ele estava urinando. Esperou até que o colega terminasse e se juntasse a ele em frente ao espelho para falar.

– Então, você é ou não é? – encostou-o na parede ao por a mão em seu ombro. O garoto pareceu surpreso. - Vi como você estava falando com minha namorada na aula de artes outro dia. Não foi muito do seu tipo.

– Você tem uma namorada muito linda, é verdade. – ele desviou de Lucas, libertando-se. – Não é fácil de resistir. Vocês se merecem.

– Não mexa com ela.

– E se ela quiser mexer comigo? – ele sorriu ao ver que havia instalado pânico no rosto do rapaz. – Eu estou apenas brincando. Ela não faz meu tipo.

Os ombros de Lucas relaxaram e ele pareceu aliviado.

– Desculpe. Estou tenso. – admitiu. - Você deve saber do que aconteceu no lago no início do ano.

– Soube sim. Você parece estar precisando relaxar. – colocou a mão no braço de Lucas, um simples gesto, mas como um convite. – Eu posso ajudar.

Ele olhou para os lados antes de dizer:

– Tudo bem.


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