Deusa Estelar escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 4
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Enfim! Mais um capítulo vitoriosamente concluído, prontinho para ser lido (peço mil perdões tanto pela demora em terminar a postagem quanto pela extensão do mesmo).
E agora estamos a apenas um passo (ou capítulo) da chegada DAQUELA que todos amamos e aguardamos ansiosamente... Vamos à leitura!



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"Deus vai dar-lhes asas para voar pelo universo inteiro."

Zohar 1: 1 2b

"Tien'lohn abriu os novecentos e noventa e nove abismos de fogo a seus olhos. E disse Tien'lohn a Kamori: Sou teu voo, irei contigo atravessar os abismos de fogo e lava, executarei vingança ao Nada Negro que devora toda a luz."

Hunshu Tsheng (4ª parte, cap. 27)

 

— Capitão na ponte!

Togo levantara-se da cadeira de comando no centro da ponte da Majorum, para dar lugar a Ghowrid, e sentou-se em sua cadeira à direita do assento do capitão. Líria ocupou calmamente a cadeira à esquerda de Ghowrid, ao passo que Gahud subiu a rampa em direção à Estação de Ciências 1, onde recebeu um PADD-corder das mãos de uma jovem e bela alferes de pele verde e cabelos cacheados cor de cobre amarrados num coque no alto da cabeça, caracteres biotípicos que a identificavam como sendo uma nativa orionte de Joharrar, um dos cinquenta Reinos Nebulares da área de M42, a Grande Nebulosa de Órion, localizada a 460 parsecs da União Solar. (Seus habitantes pertenciam ao ramo racial Valzahe, englobando todas as raças humanoides azuis e verdes da Humanidade Cósmica, pós-edhênica.)

A Majorum entrara diretamente em órbita solar, e ora circulava em torno de Kepler-78 a apenas 42 milhões de quilômetros da estrela. Era uma distância menor do que a de Mercúrio ao Sol, conquanto a anã amarela de tipo espectral G8V fosse ligeiramente menos massiva e mais "fria" do que nossa estrela-mãe. Mas isso carecia de importância. As múltiplas camadas que compunham o casco exterior da astronave - de filamentos de microespuma de durânio, tritânio, polímeros-cerâmicos, zílio e silicato de berílio monocristal - , em rede com uma série de conduítes de jaquetas de molibdênio servindo de guias de ondas para o campo trifásico de integridade estrutural secundário, proporcionavam todo o isolamento térmico e antirradiação ultravioleta a fim de proteger a nave e seus ocupantes, podendo mesmo aproximar-se a cinco milhões de quilômetros de um sol do tipo espectral G, sem o risco de serem incinerados. (Em caso de necessidade, um poderosíssimo escudo protetor metafásico capaz de suportar a tremenda pressão de radiação energética da coroa estelar permitiria à nave imergir com segurança na parte mais externa da atmosfera de uma estrela da classe G, que possui temperaturas da ordem de um milhão de graus!)

— E que tal a reunião com a turma do C.S.I.? - Togo perguntou casualmente para Ghowrid, assim que este se acomodou na cadeira de comando.

— Intelectualmente estimulante - respondeu laconicamente o capitão (por som dirigido). - Tivemos de p-branas se aproximando ao ponto de se roçarem e se afastando até um ou mais viajantes multiversais, um de matéria e outro de antimatéria, como possíveis explicações para o que foi observado em todos os quadrantes galácticos e rastreado até este sistema estelar. Ah, e sem esquecer a mais bizarra de todas, que é nada mais, nada menos que um presente de uma super-raça de engenheiros cósmicos para o nosso distinto Dr. Dharz!

Togo deu uma risada seca e disse: - Já é hora de por à prova essas hipóteses.

— E por que outra razão estamos aqui? - redarguiu Ghowrid. Virou-se para o oficial de ciências: - Sinjoro Dal, relatório preliminar das sondagens dos sensores e das sondas de telemetria!

— Leituras normais - informou Gahud, concentrado em seus instrumentos. - Radiação cósmica de fundo, eletromagnética, de neutrinos e vento estelar. Tudo normal. Nenhuma evidência de presença alienígena nesta área do sistema estelar. Tampouco o resultado da espectrometria de átomos acusou a presença de compostos de positrônio ou quaisquer materiais constituídos de átomos exóticos, como muônio, piônio, tauônio ou protônio. - O quodariano, cujos ascendentes de sangue morvin há mais de oito milênios arriscaram-se a colonizar uma "Superterra" duas vezes maior que o nosso próprio planeta, olhou para Ghowrid. - Continuamos a receber dados dos sensores dos drones-sondas, capitão.

— Obrigado, Sinjoro Dal. Sinjoro Lorphall, o senhor chegou a captar padrões de ondas cerebrais de fora da nave?

— Não, senhor - respondeu o piloto erthusino. Seu cérebro adicional (ou "consciência vigilante", que permaneceria em atividade mesmo enquanto dormisse), fonte de seus excepcionais poderes mentais, permitia-lhe entrar em contato com outros erthusinos portadores de tal hardware orgânico dentro de um raio de 30,67 parsecs e tomar parte em conferências telepáticas de Homo sapiens hypercerebralis. - O espaço à nossa volta está repleto de um silêncio psíquico em todas as direções. Nenhum impulso mental de outrincons pode ser sentido neste sistema estelar. Pelo menos até agora.

Ghowrid olhou ligeiramente para Líria, que assentiu em concordância.

Sinjoro Thai - ordenou ele, dirigindo-se ao alferes nietzschiano que substituía a Tenente Vieira naquele turno como oficial de operações - coloque todos os sistemas de sensores remotos direcionados, em força total e em operação contínua até segunda ordem. Além de ressonância quark, de alta resolução óptica e escaneamento em banda larga E.M., execute varredura com feixes de táquions para detectar sinais de uma nave camuflada. Quero todo o espaço daqui até o centro de gravidade do sistema estelar passado a pente fino.

— Sim, senhor! - respondeu prontamente o Alferes Sigurd Thai, sentado ao lado do Tenente Lorphall em seu console de navegação. De olhos verde-azulados e cabelos loiros encaracolados, pertencia a um praido pequeno e pouco conhecido, os Wolverines, e era bastante jovem ainda, de quinze para dezesseis anos terrestres, tendo os três pares de espigões ósseos nos antebraços um pouco mais curtos do que os de um macho antelluriano-nietzschiano médio, de pura raça. (Como não era um estabilizado mental, nem usava um hipnobloco, Líria lia-lhe os pensenes com a mesma facilidade com que leria um holopad ligado; e o rapazola estava excitadíssimo.)

Ghowrid recostou-se em sua poltrona de comando.

— Decepcionado, capitão? - perguntou mansamente Líria, que não podia ler os pensamentos de Ghowrid por ser ele um mentalmente estabilizado (tornado imune a telepatia e influência psiônica por meio de uma avançadíssima técnica cirúrgica).

— Porque não encontramos nada ainda, tal como a Drª. Woogong havia antecipado? - redarguiu Ghowrid, com um laivo de ironia na voz. - Não há como negar que a descoberta de uma nave ultradimensional constituída de positrônio ou outro "ônio" e vinda de outro Multiverso, e em nosso próprio espaço, seria do maior interesse estratégico para a Federação. Mas como oficiais da Frota Estelar nós temos a missão de investigar e descobrir a verdade dos fatos. E, na falta de evidências concretas até o momento, parece lógico pressupor que a explicação mais correta para o hiperfenômeno seja a de um casual roçar de branas, como quer a Drª. Woogong. Pelo menos até que surjam evidências contrárias.

— Capitão, o senhor conhece o princípio lógico-filosófico e científico que os humanos chamam de Navalha de Ockham? Ou "Princípio da Parcimônia"?

— A explicação para qualquer fenômeno deve supor apenas as premissas estritamente necessárias à sua explicação e descartar todo o restante. Ou, nas palavras do próprio Guilherme de Ockham, um humano empirista e minimalista - um monge - que viveu no século VI antes do Voo: "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor." A partir daí os estudiosos dos séculos posteriores passaram a aplicar o princípio ao método científico, chamando-o de "Navalha de Ockham". Todos nós o utilizamos corriqueiramente em nosso cotidiano, mesmo sem perceber.

— Correto. Se formos aplicá-lo a esta situação, podemos excluir de saída a hipótese da "Arca Cósmica de Tesouros" enviada por amigo do Dr. Dharz em outro Multiverso e nos focarmos nas outras duas hipóteses menos implausíveis - fenômeno natural ou ação de uma dupla de saltadores dimensionais, um de matéria e outro de antimatéria? A primeira delas é estatisticamente lógica, validada por simulações em computadores de última geração, mas que nunca foi observada antes. É puramente teórica. Já a segunda, embora envolva pressupostos mais complicados e bem mais exigentes do que a primeira, tem a vantagem de já ter sido evidenciada empiricamente, ou seja, é fato registrado que isso já aconteceu antes, só que em outro universo. Seria uma grande coincidência que o fato se repetisse no nosso próprio Universo - o que é difícil, mas não de todo improvável. Qual das duas explicações passaria na Navalha de Ockham?

— Apenas a título de exercício intelectual, e conquanto "simplicidade" seja um critério pessoal e subjetivo, a primeira delas - a do fenômeno cósmico raro, porém natural, já que é a que contém menos pressupostos. E quanto menos pressupostos, menor a chance de que algum esteja errado. Simples questão de lógica.

— Pois se há uma coisa que aprendemos em mais de cinco séculos de exploração científica do Cosmos é que a natureza não tem vocação para a simplicidade - replicou Togo num tom triunfal. - Não teríamos a Teoria-M, nem a exploração de universos paralelos ou sequer viagens interestelares superluminais se apenas aplicássemos literalmente esse tipo de reducionismo na ciência. Ossos de Drago! Pela Navalha de Ockham, os humanos ainda estariam acreditando no sistema geocêntrico de Ptolomeu, já que, pelas observações de um referencial terrestre, é o Sol que se move ao redor da Terra e não a Terra ao redor do Sol.

— Na realidade, Sinjoro Togo, como o senhor e eu sabemos muito bem, Terra e Sol giram ambos em torno de um centro de gravidade comum, que é o centro de gravidade do sistema solar - contrapôs Líria, com um sorrisinho sonso no canto da boca. - Pelo fato desse ponto de equilíbrio de massa estar mais próximo do centro de Sol, com Terra fazendo a maior órbita, convenciona-se dizer que é Terra, um planeta, que gira em torno de Sol e não o contrário.

— Você sabe perfeitamente o que eu quis dizer, Sinjorino Lemos. Nem sempre a explicação mais simples ou mais fácil e mais bonita é a explicação correta. Se nos contentássemos sempre e somente com as respostas mais simples para determinado fenômeno natural ou não, parando de investigar, a busca pelo conhecimento e pela verdade dos fatos estagnaria.

— Por exemplo?

— Por exemplo, o chamado "fenômeno U.F.O." no planeta Terra, no século I depois do Voo. Já li muito sobre os chamados "discos voadores" que assombravam os céus de Terra quinhentos e tantos stanrevs atrás. Hoje em dia já sabemos que boa parte daquilo, juntamente com outros fenômenos incomuns - aparições de anjos e fantasmas, milagres, visões de seres estranhos etc - , não passava de um tipo de sofisticado "mecanismo de controle" usado pelos manodins do Hipercontinuum Q para manipular a evolução consciencial da humanidade terrana - como vinham fazendo desde as épocas mais remotas - , lançando mão de campos neurogênicos para induzir o cérebro humano a produzir alucinações hiper-realistas. Mas também sabemos que apenas uma pequena porcentagem dos U.F.O.s de fato eram naves camufladas ou exploradoras robotizadas tanto dos Éticos quanto dos agentes dos Primordiais, sem esquecer obviamente dos sedops kaladorianos ou asgardianos renegados - da Galáxia Anã de Antlia - à cata de "padrões genéticos perfeitos" com os quais haveriam de criar seus híbridos de pseudo-humanos geneticamente alterados.

— Que por sinal foram os meus antepassados - Líria atalhou suavemente, ainda mantendo o sorrisinho sonso nos lábios. - E por vias tortas, considerando tantas viagens no tempo e no espaço, também dos neoasgardianos meta-humanos extradimensionais que chegaram a ser adorados como deuses pelos antigos germanos e vikings.

— Isso mesmo. Mas o ponto central não é esse. Apesar das evidências claras, a ciência terrana daquele tempo não aceitava a realidade dos U.F.O.s, negava o quanto podia a origem extraterrestre ou "ultraterrestre", interdimensional, dos mesmos. E mais! A grande maioria dos cientistas humanos de então, bitolados por preconceitos e pelo simplismo aparente do conceito da Navalha de Ockham, ridicularizava e zombava dos relatos de avistamentos e abduções, preferindo refugiar-se em explicações prosaicas do tipo balões, aeronaves fabricadas pelo homem, efeitos meteorológicos ou atmosféricos, ou até perturbações mentais. Conhecimento é poder, mas essa postura nada científica de comodismo e preguiça intelectual manteve a humanidade terrana ignorante, indefesa perante as forças alienígenas em ação no planeta, além de dar margem ao surgimento de certas seitas e cultos de U.F.O.s, capitaneados por toda espécie de doidos, monomaníacos e vigaristas. Hoje em dia isso não acontece mais porque o treinamento da Frota Estelar nos habilita a lidar com as possibilidades mais fantásticas. De mente aberta e flexível, sem preconceitos.

— O senhor não deixa de ter certa razão em seu raciocínio, Sinjoro Togo - disse Ghowrid conciliadoramente. - A Navalha de Ockham é antes de tudo uma ferramenta, um instrumento lógico de escolha, e como tal deve ser empregado com muito cuidado. Não é, nunca foi um critério de prova sobre a veracidade de alguma hipótese ou teoria científica. O fato de ter sido mal empregada pelas "elites científicas" do passado para se livrarem de explicações "heterodoxas" não invalida a Navalha em si. E mesmo que algo seja perdido ao se usá-la, caso novas evidências da ciência surjam no futuro, uma conclusão incorreta será reajustada, a alegação anteriormente rejeitada será reavaliada e, se for o caso, aceita. Foi assim não só com o fenômeno U.F.O., mas também com a microbiologia e com a Teoria da Relatividade de Einstein, para não falar da Teoria-M de Hawking, da panspermia cósmica dirigida pela Primeira Raça Ancestral, Ellohi, ou ainda da instrumentalização genética dos primitivos hominídeos terráqueos com os genes anunnakis. O que é inquestionável é que o Princípio da Parcimônia se tornou de grande importância e validez para a metodologia científica, e a ciência é nossa arma mais forte para entender e explicar a realidade das coisas de modo racional e não-mítico. Só assim será possível remoldar o Universo que está à nossa espera, submetê-lo à vontade das inteligências que ele engendrou, ou seja, nós.

Líria acompanhava em silêncio o diálogo entre os dois oficiais comandantes da nave. Era interessante constatar que, não obstante terem assimilado a "Teática dos Princípios Cosmoéticos" em que a Frota Estelar baseava toda a sua filosofia, Ghowrid e Togo não deixavam de pensar como nietzschianos. Viam o Universo como um lugar hostil, perigoso e cruel, um adversário inesgotável, sempre à espreita, que deveria ser submetido com as armas do conhecimento e da eficiência, colonizando e terraformando mundos, criando novos habitats e novos ecossistemas para sustentar a vida de seres vivos das gerações futuras. E, sendo nietzschianos ou "ubers", ambos olhavam com uma condescendência tolerante para seus primos da raça Homo sapiens sapiens, os "humes" ou "homens comuns" que se autodenominavam solarianos e que - tendo logrado suprimir o excesso de violência no pátrio planeta, Terra - aprendiam desde cedo a valorizar a vida dos seres sencientes, o companheirismo, a felicidade e o bem-estar das pessoas. Em contraste, remoldar o Cosmos à sua vontade era o destino manifesto dos herdeiros de Iskander-Drago Museveni, uma raça de super-homens e supermulheres que tinha a alegria do engendrar como objetivo moral de sua vida, a realização produtiva como atividade mais nobre e a razão como seu único princípio absoluto.

Por outro lado, como bons antelluriano-nietzschianos que eram, eles nutriam uma profunda desconfiança em relação aos superseres parafísicos como os Qi Mu*ur, os AkhUiU das Fendas Espaciais, os Yshrenitas da megasfera no centro de Andrômeda e todas as superinteligências cósmicas ultraterrestres que pareciam gostar de jogar com as espécies evolucionárias "menores", mortais, e testá-las até ao limite das suas forças para ver como lidavam com seus problemas. Deuses? Quem precisa deles?

Antellurianos! Faltava-lhes - ela o sabia - conquistar a si mesmos. Desbravar o seu próprio universo interior. Desbravar e conhecer a si próprio, eis a Sabedoria, o Verdadeiro Poder. Mas os antellurianos-nietzschianos, o povo de Ghowrid e de Togo, apenas se expandiam, espalhando-se como vírus pelo Universo. Sobrevivência é tudo!

Por ser sapiencior - por não ser humana - Líria não tinha dificuldades em entender-lhes a psique. Sua própria herança genética alienígena, híbrida, extra-humana, fizera dos sapienciores uma raça caracterizada por uma frieza desapiedada somada a uma inteligência superior e imensos poderes telepáticos e telecinéticos, que priorizava a sobrevivência dos mais capazes bem como a eliminação dos rivais ou dos incapazes. E foram os humanos terranos - que paradoxalmente haviam sido uma das espécies mais nocivas e mais violentas do planeta - a lhes ensinarem não só a necessidade mas as vantagens de uma coexistência pacífica e de uma "simbiose" amigável entre as espécies. Essa coexistência pacífica e duradoura entre espécies diferentes de seres inteligentes representou o primeiro passo vitorioso na senda da compreensão e aceitação mútua, foi uma inspiração essencial para a criação de uma pacífica e benigna Federação Estelar de Planetas Unidos. A Natureza é amoral. Bondade e compaixão... Amizade, altruísmo, lealdade e autossacrifício... Foi o que aprendemos com os humanos.

E quem poderia imaginar que "os imundos humanos", "os belicosos humanos", "os racistas humanos" seriam capazes de reinventar a si mesmos e o seu mundo?

A existência da Federação Estelar - e com ela a prevalência dos valores da liberdade, igualdade, paz e justiça, fraternidade universalista e cooperação interespécies - significava senão o fim dos conflitos, pelo menos a minimização dos mesmos, a sua redução a níveis toleráveis e mais facilmente controláveis. Por conseguinte, cada novo descobrimento científico, cada conquista, cada vitória, cada realização obtida nesses tempos de recuperação pós-invasão e ocupação da Via Láctea pelos Prajâpatis, eram de capital importância estratégica para a Federação.

A ciência superior dos lendários Astroengenheiros desaparecidos - ou quiçá de viajores procedentes de um antiuniverso paralelo - seria um fator decisivo no futuro desenvolvimento da Federação Estelar Unida e seu avanço para metas mais altas.

— Bem, seja como for, a sondagem espacial do sistema estelar interior ainda não foi concluída - disse Togo, bem-humorado. - Os sistemas sensores da Majorum são especificamente desenhados para localizar e identificar qualquer objeto físico em nosso Universo, seja energia ou matéria ou átomo exótico. Assim como nossos drones. Se houver algo lá fora, nós encontraremos.

— Quem sabe? Talvez haja um grão de verdade na história do tal do David Zero e sua "Arca Cósmica" dos Astroengenheiros, tão cara ao Dr. Dharz - comentou Líria. - Como Sinjoro Togo fez questão de nos lembrar, uma hipótese não é necessariamente falsa só por ser fantástica.

— Sim, por que não? - retorquiu Ghowrid com os olhos escuros cravados na grande tela holográfica frontal, onde chamejava ameaçadoramente no espaço o astro-anão Kepler-78, acompanhado de seu planeta infernal, Muspelheim. - Estou me lembrando do que costumava dizer um escritor terrano do século I: "Escolher lentilhas é uma ação útil, as pedras são impróprias para consumo. Mas nada prova que certas hipóteses excluídas e certos fatos 'escandalosos' não sejam nutritivos. Nós não trabalhamos para os débeis, os alérgicos, mas para todos aqueles que têm bom estômago."

Quatro drones robotizados - com invólucro externo composto de coltan-titânio e alumínio transparente, propulsores de microfusão a deutério e telemetria subespacial - sobrevoavam a superfície derretida de Muspelheim a cerca de 200 quilômetros de distância da mesma, transmitindo suas imagens para os holorreceptores da Majorum.

Nas holotelas da ponte, a pequena bola incandescente de rocha derretida negro-avermelhada que era o planeta Muspelheim ficava cada vez maior contra a imensamente flamejante laranja dourada do sol Kepler-78, donde jorravam com fúria explosiva labaredas de plasma com centenas de quilômetros de extensão e aquecidas a mais de dez mil graus, em contraste com o negrume estrelado do espaço sideral ao seu redor.

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(Hall de entrada do Bar Panorâmico.)

— Caraca, cara! - exclamou Alxxyn Lewz para o amigo, por meio da transmissão de som dirigida. - Você tá com alguma nanonave, micronave energética dos thunthua passeando pelos seus neurônios? Sim, porque é a coisa mais doida que eu já ouvi desde... Sei lá, desde o caso daqueles mutantes psi-gamma e psi-kappa dos klinzhaîn, digo, dos klingons, que se diziam "possuídos" por consciexes megassediadoras de um Universo anterior ao nosso. Ufa!

— Pois pode me acreditar, caríssimo Alxxyn, porque é a mais pura verdade - retrucou Karl Dharz, usando do mesmo sistema de comunicação privativo. - Claro que você não tinha como saber isso... Você e o Major Ralph Tuor, do Corpo de Fuzileiros da Frota Estelar, mais o tal do Norman Stern, do Birô de Investigações Temporais, andavam às voltas com aqueles cronoterroristas vindos do futuro, do século XXXVIII, ou melhor, do século XIX depois do Voo... Aqueles mutantes aliens disformes, os Shoza, que obedecem religiosamente àquela inteligência artificial ultra-avançada, o Arssen. Lembra-se?

Os chamados Arssen - uma corruptela de A.R.S.S., "Automatic Reprisal Security System" - eram uma rede de supercomputadores interligados formando uma única inteligência coletiva, construída por uma raça humanoide extinta num holocausto termonuclear planetário promovido pela Frota Imperial Sorgalt há mil stanrevs. Seus comandados, os Shoza, não passavam de humanoides deformes que foram "construídos" utilizando-se de genes contaminados de cadáveres radioativos que fora tudo que restara dos criadores do sistema computrônico Arssen. Eram eles que - usando temponaves com moduladores de fase de anti/superespaço para viajar rumo ao passado e ao futuro - davam suporte às atividades terroristas dos radicais Frighen, que há décadas lutavam contra a escravidão tecnológica dos clones e andromanos e, secundariamente, contra a quimeromogênese, a androgênese e a engenharia genética em geral.

Humpf, se me lembro?! Cada detalhe - resmungou Lewz. - Data estelar 89186.007, planeta Sartari, a "favelona" da Galáxia: Stern, Tuor e eu desbaratamos o plano da megainvasão arquitetado por Arssen aos planetas-chave da Federação, via rede de stargates estrategicamente instalados pelos Frighen com apoio logístico Shoza. Sem contar que eu ainda sinto calafrios só de pensar nos corolários e desdobramentos que uma tal Alteração de Nível 1 causaria dentro da Linha Temporal Base. - Ele tinha consciência, assim como Dharz, de que a inusitada aliança intertemporal Arssen-Shoza-Frighen visava à derrocada prematura da F.E.U., a fim de abortar a criação do que viria a ser a Convenção Galáctica, mais poderosa e cosmograficamente muito mais extensa, dali a seiscentos stanrevs. (A descoberta e destruição dos retransmissores de sinal envoltos numa esfera isocrônica no subespaço fizera com que as hostes Arssen se desmaterializassem para sempre.) - Mudanças de Realidade de Nível 1, de Nível 2, a loucura da Guerra Fria Temporal e a História das Galáxias, pra não mencionar a da Terra, convertida numa autêntica "salada mista de frutas", com combates entre facções rivais - Patrulha do Tempo versus cronoguerrilheiros, Arssen versus União Comercial da Galáxia - pra manipular a linha do tempo estendendo-se um bilhão de anos terrestres pro futuro e o passado!

— E a "sacrossanta" Diretriz Temporal Primária que se exploda! Taí uma "metalei" que não pegou - observou mordazmente Dharz. - É o tipo da coisa que faz o cérebro de um pobre humano entrar em parafuso, né?

Uhum! Uns pobres humanos do século I, ou melhor, do bom e velho século XX A.D.T.T., como nós - retorquiu Lewz, com seu sorrisinho malicioso de sempre.

— É, como nós, do longe de bom e velho século XX A.D.T.T. - concordou Dharz.

Alxxyn Lewz e Karl Dharz - que não se chamavam originalmente por esses nomes - entre si empregavam livremente expressões coloquiais e gírias originárias daquela era primitiva, bárbara e violenta, de barbárie mecanizada que haviam sido os vigésimo e vigésimo primeiro séculos da Era Cristã ou Era Comum (como se contava o tempo na chamada "cultura ocidental terrestre", pré-galáctica), a era natal de ambos. Não deles propriamente ditos, mas de seus originais inalterados, os quais faziam parte de um ativo grupo de fãs de ficção científica ou fanzine no Brasil de antanho. Estes, sem seu próprio conhecimento ou permissão, tinham sido completamente escaneados e "cronodificados" através de quinhentos anos terranos e 96 parsecs de espaço pelos amoralistas científicos baseados no Sistema de Canopus - uma raça de humanoides de pele metálica prateada e remota origem andromedana, assexuados, biomecânicos - que, valendo-se de avançadíssima ultratecnologia de "cronoscopia heurística" - escaneando o passado de sua própria linha temporal com tamanho detalhamento de precisão capaz de registrar o movimento de cada átomo que jamais existiu no "Universo factual" e com base nesta informação - ressuscitaram os membros do fanzine terrano do século XX, replicando-os através do tempo e do espaço na Canopus do século XXV. Sob novas identidades forjadas pelos computadores sintrônicos dos canopianos, e após terem recebido conveniente e intensiva instrução hipnotrônica - táticas de espionagem, principais idiomas lacteanos, autodefesa, hipercomunicações - seguida de deciclos de treinamento em ambientes simulados holográficos, os terranos "recriados" foram enviados por um portal estelar de face oculta - sem identidade eletromagnética - do tipo "espelho de Saroyam" até uma base secreta no calcinado e escaldante Kelvin, o planeta dos Nove Infernos. De lá - após numerosas peripécias envolvendo os inumanos Sahraks - , o intrépido grupo lançou-se em sua maior aventura até então - tendo se dispersado por toda a Galáxia a fim de coletar para seus "patrões" canopianos as preciosas informações necessárias para calibrar os perscrutadores lógicos e ajudar a prever os futuros possíveis por escolher as trilhas temporais estatisticamente mais viáveis. (A exemplo do "clássico" herói espacial Buck Rogers, os fanwriters cronodificados do século XX eram o tipo de gente sem passado no século XXV - ou século VI d.V. - , pois já haviam morrido "oficialmente" centenas de anos antes, e atenta a toda sorte de novidades tecnológicas. E justamente por isso, tendo superado o tremendo choque cultural, eles eram perfeitos para atuar como espiões dos canopianos.)

Mas aqueles que hoje conhecemos como Alxxyn Lewz e Karl Dharz não haveriam de se contentar com esta posição subalterna por muito tempo. Foi assim que, supostamente sem o conhecimento dos "masters" canopianos, Lewz e Dharz entraram em contato com os serviços de inteligência federados, que tiveram sua desconfiança despertada em relação ao súbito interesse canopiano pela realidade lacteana. Que propósitos escusos esconderiam aqueles sedops de pele prateada, pesquisadores curvados sobre as telas e modelos holográficos de seus cronovisores, voyeurs cósmicos a bisbilhotar a intimidade de seres inteligentes que morreram há séculos, ou há milênios, ressuscitando por cronodificação esses mesmos seres inteligentes para esvaziar-lhes os cérebros, e armazenar as mentes roubadas - pensamentos, sentimentos, energia - em bancos de dados sintrônicos?

Dessa forma, Lewz e Dharz acabaram por se converter em agentes duplos a soldo da F.E.U., com o objetivo de descobrir quais os reais motivos dos atuais habitantes de Lug, o quinto planeta de Canopus. (Há bilênios o sistema estelar de Canopus fora cuidadosamente isolado do resto da Galáxia por um monumental escudo esférico de cinco dimensões, uma bolha energética paratrônica com brilho de prata, fruto da ciência superior trazida de um dos mundos de Andrômeda e que não poderia ser transposta com qualquer dispositivo conhecido na Federação.)

Mas então sobreveio o terrível e fatídico acidente. Durante uma perseguição espacial a contrabandistas forgosinos e caçadores de zwings suspeitamente envolvidos no "tráfico de inteligências" dos canopianos, a nave auxiliar de Lewz e Dharz foi violentamente atingida por uma fonte de partículas - um tipo de anomalia espaço-temporal que emite jatos de matéria com movimento superluminal que lembra o emitido por um microquasar - e explodiu. Queimados e desfigurados, Dharz e Lewz foram resgatados no último instante e à beira da morte juntamente com outros dois humanos - todos os quatro digitalizados e convertidos em impulsos eletrônicos armazenáveis e reconstituíveis nos codificadores de impulsos - por uma nave dos Éticos, ou Vigilantes Cósmicos, que a tudo acompanhava de longe, vibrando num plano dimensional entre a terceira e a quarta densidade (ou entre a quarta e a quinta dimensão). Valendo-se de uma avançadíssima técnica de inversão da matéria que permitia que a nave ficasse parada enquanto o Universo girava na direção visada, os Éticos levaram os quatro solarianos para um planeta etérico chamado Mikdash Shel Gavish, "Templo de Cristal", que ficava na Orla Interior da Galáxia de Andrômeda - onde uma hierofante que tinha a forma de uma linda mulher dotada de doze asas prismáticas e vestida de branco e dourado, por meio de um delicadíssimo processo de cirurgia espiritual envolvendo transfusão biopsicoenergética (análogo ao fal-tor-pan vulcaniano, ou ao reincarnare umbriano), executou a transferência da essência das consciências de Dharz e de Lewz - a constante energética individual, hexadimensional, de cada ser, sua neshamah, seu katra ou que nome quer que se dê ao princípio consciente - de seus respectivos corpos para os dos outros dois homens, que na realidade eram oficiais do Serviço Secreto Solar e haviam entrado em coma irreversível. Os novos corpos físicos, pertencentes ao biótipo racial "terrano padrão" - a já chamada "raça morena" ou "raça dourada" - , estavam perfeitamente intactos, porém vazios de consciência lúcida, o que facilitou a transferência com todos os devidos ajustes biopsicoenergéticos.

Seguiu-se para Lewz e Dharz um longo período de convalescença naquele mundo pacífico e paradisíaco de "função" sacerdotal (devido à elevadíssima frequência vibratória do planeta e seus habitantes), e durante esse tempo ambos foram lentamente se adaptando aos seus novos somas ou corpos físicos. No entanto, ao serem devolvidos, sãos e salvos, ao continuum espaço-tempo normal e à Via Láctea, qual não foi sua surpresa quando constataram que não haviam decorrido mais do que dois centiciclos desde o momento em que foram abduzidos da nave auxiliar explodindo nos arredores da Trífide de Sagitário!

Eles foram resgatados sem demora por uma unidade de socorro dos G.R.I.M.s e repatriados para a União Solar.

Eles foram, por medida de segurança, literalmente virados pelo avesso por biossensores, nanossensores, escâneres de DNA e psicorregistradores solarianos - escaneamento celular, leitura cromossômica, áurica, de modelos de vibrações cerebrais, sondagem telepática, enfim, todo o arsenal de tecnologia biomédica e psicotrônica do século VI d.V. fora usado para determinar quem e o que eles realmente eram. A seguir, em razão de seus novos conhecimentos sobre a cultura sideral Ética, bem como sobre a raça canopiana e a insuspeita ligação da mesma com o inferno planetário de Kelvin, ambos foram alçados à categoria de especialistas em culturas alienígenas não-federadas e autorizados a participar de missões interestelares de exploração. Agora, eles eram de fato e de direito filhos do século VI d.V., cidadãos da União Solar e da Federação Estelar Unida. Suas seriéxis ou vidas pregressas - como "fósseis vivos" de uma era pré-galáctica, comparáveis aos dinossauros criados por clonagem vivendo nos "parques jurássicos" de uma Vênus terraformada - já nada significavam.

O choque do futuro, o abismo tecnológico e cultural de mais de quinhentos anos, tudo isso há muito ficara para trás.

— Não obstante, às vezes eu fico pensando - Dharz filosofou em voz alta, mas ainda usando a emissão de som dirigido para Lewz. - O que tem de mais bizarro e surreal com a cronodificação canopiana é que os nossos eus originais continuaram, ou continuam, a viver tranquilamente as suas vidinhas medíocres nos séculos XX e XXI, sem fazer a mínima ideia de que nós existimos. Nós, seus "duplos", possuindo todas as memórias e lembranças deles até o instante da observação por cronovisão, de repente reconstituídos no futuro distante, num autêntico admirável mundo novo muito além das suas mais delirantes fantasias!

— Continuando a viver uma nova existência daí em diante, participando de uma série de aventuras intergalácticas e conhecendo pessoas interessantes pelo espaço afora - acrescentou Lewz, os lábios repuxados num sorriso arguto. Seu olhar recaiu sobre uma belíssima jovem humanoide fêmea da raça orionte, de fina pele verde-esmeralda, cabelos negros lustrosos e lisos, levemente arroxeados, cintilantes unhas compridas feito garras e corpo escultural e curvilíneo coberto com joias cibernéticas e ornamentos magnificamente trabalhados em lugar de roupas (de conformidade com os hábitos e costumes de seu povo), além de um par de botas cravejadas de cristais até a altura dos joelhos. - Pessoas interessantíssimas, sem sombra de dúvida. - Logo em seguida, ele apertou os lábios, franzindo o cenho em desgosto quando bateu os olhos no garmiano impecavelmente fardado com o uniforme vermelho-carmim e grafite da Frota Estelar, que batia papo animadamente (em esperanto da F.E.U.) com a jovem beldade orionte: um sedop humanoide magro e alto de pele vermelho-rosada como um camarão, longa barbicha caprina, orelhas pontudas, um par de chifres negros curvos que despontavam da testa e uma cauda preênsil, comprida e terminada em ponta de flecha. - Ou nem tanto - disse. - Escapamos de ser descerebrados pelos "caras de prata" que nos cronodificaram nesta era. E de quebra, acabamos recebendo corpos novos do século XXV pra substituir os dos "bárbaros" do século XX, depois de driblar a morte mais uma vez!

Baruch Hashem, graças a Deus - replicou Dharz, rindo. - Não sei quanto a você, mas eu particularmente detestava meu corpo anterior, neste ou no outro século. Aliás, detestava, odiava a época e o mundo em que nascemos... Pra todo lado, só se viam macacoides paranoicos e autocentrados, sujando, poluindo, superlotando o planeta, perseguindo e matando-se uns aos outros. Lixo! E eu adoro demais esta era interestelar, cheia de raças e sub-raças alienígenas tão variadas, distintas e avançadas. Aliás - ele fez uma expressão zombeteira - com nossos novos corpos arrasaríamos naquele tempo tacanho. Comigo parecendo um jovem Leroy Gomez e você parecendo um jovem Billy Dee Williams!

Lewz sacudiu-se em riso silencioso. Leroy Gomez, Billy Dee Williams! Ele duvidava que um entre um milhão de solarianos sequer já tivesse ouvido falar desses nomes. Talvez, na melhor das hipóteses, algum historiador especializado na primitiva cultura de massas, na mídia primitiva do primeiro século da Era Espacial. Apesar de não ser tão radical quanto Dharz, Lewz também não morria de amores por sua época natal - uma das mais sangrentas da história da raça humana. Atraso técnico e científico, falta de cosmoética, industrialismo exacerbado, fanatismo religioso e ideológico, militarismo, nacionalismo, sexismo, racismo, especismo e outros tantos "ismos" inúteis... E o todo-vaidoso Homo sapiens, a "raça adâmica", condenando-se a se atrofiar em seu buraco terrestre, sob os grilhões do poço gravitacional da Terra - e de uma cadeia magnética de forças psíquicas negativas e destruidoras - , enquanto chafurdava na ilusão pueril de ser especial, de ser a única forma de vida sapiente nesta Galáxia, se não no Universo.

Lewz afastou tais pensamentos rapidamente. Agora, tudo aquilo não passava de história antiga. Quatrocentos stanrevs de programas educacionais conscienciológicos e convivência com raças de outrincons e sedops avançados (precedidos por ajustes na grade vibracional do próprio planeta Terra para introduzir uma frequência bioenergética mais elevada e positiva - uma intervenção direta dos cosmopsicólogos Éticos) haviam afinal conseguido expurgar a excessiva agressividade e a xenofobia humanas, ao menos em suas expressões mais extremas. Fome e miséria e opressão foram erradicadas há séculos, assim como a intolerância para com o diferente. Existia ainda a imperfeição e maldade, mas se fôssemos comparar com épocas anteriores, estaria fora de dúvida que a Humanidade Solar simplesmente se tornara um paraíso supertecnológico gerenciado por um coletivo de inteligências artificiais, com muita paz e fartura. As crianças terranas e solarianas, graças a uma educação moral hipnopédica, aprendiam desde cedo a valorizar a paz, o universalismo e o maxifraternismo. Nós progredimos rapidamente durante os últimos trezentos ou quatrocentos anos, e ainda estamos progredindo. Ainda não é Agartha, mas quem sabe dentro de uns três mil anos... Ou quatro mil anos...

E o Sklar, onde terá se enfiado? - Dharz indagou casualmente, embora no fundo, não estivesse nem um pouco interessado no paradeiro do cientista t'khasiano.

— Provavelmente enfurnado nos aposentos dele, meditando em contemplação do seu próprio universo interior, usando a disciplina mental do Kol-Inahr'u e toda essa coisa metafísica de vulcaniano - respondeu Lewz, com seu tradicional sorriso matreiro, sem desviar o olhar da bela e aprazível jovem de tez verde (que, exceto pelas botas altas e o arnês decorado com ciberjoias e pedaços de zircônio, estava completamente nua), agora sozinha, altivamente tomando um drinque de synthehol no balcão do bar e falando com alguém (em microforma holográfica) do outro lado da Galáxia, via hiperonda, num holocomunicador discoide translúcido que cabia na palma da mão. - "Sacumé", né? Nosso amigo orelhudo não consegue abrir mão do estereótipo do vulcaniano emproado e meio blasé, que não confraterniza com tvee'okh, com "bárbaros" emocionais... o que, no fim, são quase todos os não-vulcanianos.

(Eles continuavam a se comunicar privativamente usando a transmissão de som dirigida, graças aos integrados moleculares nanotec de suas roupas cibernéticas.)

Dharz assentiu. - Mais frio que a camada de gelo de metano, nitrogênio e dióxido de carbono de Éris. - Ao notar o interesse do amigo na garota orionte, seu rosto assumiu um ar malicioso. - Hmmm... Mudando suas preferências agora, de morenas pra verdinhas? Tá virando "vegetariano"?

— São os feromônios que elas secretam, quem resiste a eles? - retorquiu Lewz, sacudindo-se de tanto rir. Era uma referência bem-humorada ao fato de que os hormônios sexuais das fêmeas oriontes seduziam, encantavam e escravizavam os machos da maioria das espécies humanoides (se bem que certas drogas psiquímicas derivadas de neurotransmissores sylvanianos podiam agir como vacina antiferomônios). - De mais a mais, não é você que diz que devemos buscar ampliar e modernizar os nossos padrões estéticos de beleza feminina? E, a julgar por alguns dos seus holoprogramas favoritos, devo concluir que o amigo aderiu pra valer ao furry fandom?

— Tecnicamente, a Sábia Loba Horo não é uma furry. E eu sempre gostei dela.

— Pelo que me consta, a sua praia eram as "vulcanoides" de orelhas pontudas e olhos puxados, tipo protomongólico... e as vampirinhas!

— O termo politicamente correto é "hematófagas". Allukans, ou, se preferir, a subespécie Homo sanguinus, são meta-humanos com necessidades especiais. Mas tá, eu curto extra-humanas, sejam elas allukans, vulcanianas, olimpianas, oriontes, Bressin ou MecOrgans. Pelo menos elas vivem por séculos, não embagulham nem envelhecem depressa como as fêmeas humanas.

Lewz esteve prestes a dizer que no terceiro milênio, com os avanços da biotecnologia, da gerontologia, os machos e as fêmeas humanos viviam tranquilamente mais de cento e cinquenta anos na União Solar, e até cento e oitenta anos em Avalon, sem jamais aparentar sua idade real. E a genengenharia e a cirurgia cosmética avançada faziam dos humanos desta era verdadeiros Apolos e Afrodites. Mas preferiu não dizer nada. Para evitar que fossem exacerbados os mudos rancores de Dharz contra as mulheres humanas (os quais ele trazia de sua existência anterior: sequelas de rejeições, bullying...).

"Talvez aquele contrato de casamento por três stanrevs com Ella Roveri - aliás, Samantha Smith - não tenha sido uma boa ideia, afinal de contas. Ela é humana, mesmo que cronodificada como o restante de nós."

Um sedop humanoide de mais de dois metros de altura com pele azul-clara, ombros largos, cintura de vespa, cabeça ovoide e calva com olhos saltados, trajando o que parecia ser uma malha de rede de fios prateados, subitamente saiu de uma parede, passou apressado pela dupla de humanos e desapareceu dentro da parede oposta. Era um habitante de Ormatran, um dos Planetas Neutros, e que, como todos de sua raça, podia atravessar a matéria sólida (mas não campos de força) utilizando-se de sua habilidade inata de dissociação atômica sob controle consciente.

— É, parceiro, parece que não estamos mais no Kansas - ironizou Dharz.

— Mas e aí, Karl, que tal me contar mais sobre suas extraordinárias e exóticas aventuras numa Terra alternativa do Multiverso de Nível 3 junto com esse seu amigo que você chama de David Zero, e o que tudo isso tem a ver com a ruptura na continuidade do nosso espaço-tempo? - Lewz disse em tom conspiratório, depois de sair do caminho de um sedop atarracado e de ombros largos, de pouco mais de um metro e meio de altura, metido em um bizarro traje espacial blindado, que rescendia a cloro e movia-se pesadamente na direção do turboelevador que ficava ao fundo do bar panorâmico. (Por um instante, Lewz viu um rosto inumano em formato de sapo, de olhos esbugalhados e vidrados, por detrás do visor do capacete embaçado por uma camada de gás amarelo-esverdeado.)

— Olha, como eu disse lá na sala de reuniões, é uma longa história - disse Dharz, observando um trio de caitianos parecidos com grandes gatos bípedes, medindo dois metros e meio de altura, com uma bela pelagem fulva, longas caudas e olhos fosforescentes de expressão selvagem, todos trajados com o uniforme azul-cobalto de Ciências da Frota Estelar, que o fizeram recordar-se da Alferes Mrriim (a tripulante caitiana de seios imensos, voz ronronante, longa cabeleira em forma de juba dourada e cauda ágil como um chicote, com mil e uma utilidades!). - E tem a ver com a Horo. Ou, pelo menos, com uma versão real dela que vive numa dimensão paralela do Multiverso de Nível 2.

— Tudo bem, sem problema... Vamos tomar uns drinques, e aí você narra como foi o imbróglio envolvendo seu amigo David, você e sua Horo.

— OK. Só que não era minha Horo, era a Horo dele. Do David.

Lewz apertou os lábios e rolou os olhos. - Eu preciso de uma flûte à fitohydra!

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— São os domínios do Fogo.

Arjuna Ghowrid verbalizou o pensamento que lhe veio à mente quando viu o planeta de lava crescer na holotela panorâmica principal. Estranhamente imaginou que era como estar nos primórdios da criação dos Nove Mundos da Mitologia Nórdica, quando só existia o grande vazio de Ginnungagap, e, em lados opostos do vácuo, Nifelheim, o Mundo do Gelo Eterno, e Muspelheim, o Mundo do Fogo. É como se fosse uma jornada iniciática da alma por um campo de batalha cósmico. Toda a história do Universo se explica pela batalha entre o Fogo e o Gelo, eternos antagonistas.

Apesar de ferozmente antiteísta, como todos os seres de sua raça, o capitão antelluriano-nietzschiano da Majorum, que já conhecia uma grande parte da Galáxia - e até de outras galáxias - , não podia furtar-se ao sentimento de admiração sem limites perante a grandiosidade do Universo e os paradoxos do tempo e do espaço. Ghowrid refletiu que assim deviam se sentir quase todos os solarianos e outros humanos que professavam a Religião Cósmica Einsteiniana ou "O CAMINHO" - e acreditavam quer em um Deus-Cosmos panteísta, quer em um Criador Universal panenteísta - perante a Criação.

Togo, por seu turno, comentou secamente: - Se Dante Alighieri vivesse hoje, certamente confinaria seus condenados nesse "Planeta Inferno".

Muspelheim - que fora inicialmente denominado de Kepler-78b por ter sido descoberto em 44 d.V. a partir das observações feitas pelo telescópio espacial Kepler, da antiga N.A.S.A. - era um planeta rochoso de tamanho aproximado ao de Terra, tendo uma massa de 1,69 vezes a massa terrestre e um diâmetro equatorial de 15.000 km. A sua densidade de cerca de 5,5 g/cm³ indicava a existência de um núcleo de ferro fundido constituindo até 40% da massa planetária. Ou seja, Muspelheim possuía uma densidade quase idêntica à de Terra, composição geológica similar e uma magnetosfera forte o suficiente. Mas aí terminavam as semelhanças com o planeta pátrio do Homo sapiens. O raio da órbita de Muspelheim equivalia a apenas três vezes o raio de Kepler-78. Ou, em outras palavras, Muspelheim girava 40 vezes mais perto da estrela-mãe do que Mercúrio do Sol - menos de 1,6 milhão de quilômetros! Por orbitar tão próximo de Kepler-78, Muspelheim não demorava mais do que oito horas e meia - tempo terrano - para completar uma revolução em volta dessa estrela, o que significava que seu "ano planetário" durava ridículas 8,5 horas, em contraste com os 365,4 dias do ano padrão terrano. Em consequência de tamanha proximidade da fonte de calor solar, a temperatura média era de 2973 K, ou 2700º C, o que tornava o planeta uma grande bola de rocha derretida e incandescente, sem qualquer traço de atmosfera e, por isso mesmo, totalmente à mercê dos intensos bombardeios de raios cósmicos e dos esterilizantes raios UV. (Em compensação, seu campo magnético era suficientemente forte para desviar o vento solar procedente de Kepler-78.)

A "miniórbita" de Muspelheim acarretava outra consequência: a perda do movimento de rotação axial por causa do poderoso efeito de maré produzido por Kepler-78. O que significava que na face do planeta virada para sua estrela hospedeira imperava a luz de um dia eterno e na face oposta, a escuridão de uma noite sem fim.

E agora, quase meio milênio depois de sua descoberta por meio de uma tecnologia ainda incipiente e arcaica de sondas-telescópios espaciais, a tripulação na ponte da Majorum — valendo-se de sistemas sensores infinitamente mais avançados - recebia as imagens enviadas pelos drones robotizados por milhões de quilômetros através do espaço, podendo admirar em suas holotelas tridimensionais toda a beleza terrífica, cosmicamente dantesca daquele mundo de magma permanentemente imerso nos fulgores de plasma escaldante da coroa solar. Um globo infernalmente quente que podia ombrear com outros campeões de inospicidade tais como o planeta de lava Zhi, da classe X, e o "Urano Quente" Karkadann, da classe Q, ambos orbitando a anã amarela COROT-7, ou os tórridos planetas de ferro Ladon, de Kepler-10, e Peleu, de KOI-1843, ambos pertencentes à (ainda mais inóspita à vida) classe Y.

Nas telas de holovisão global surgiu uma paisagem calcinada, surreal e horrível, que parecia saída diretamente do Mordor de J. R. R. Tolkien. O hemisfério eternamente banhado pela luz implacável de Kepler-78 se achava coberto por um vastíssimo oceano turbilhonante de magma fundido desgaseificado, rebrilhando em todos os tons ígneos de vermelho, laranja, amarelo-dourado e branco, com imensas ondas pastosas ardentes - verdadeiros tsunamis de "fogo líquido" - que se quebravam contra praias costeiras formadas por sedimentos de rubra lava fumegante, na estreita zona crepuscular, fronteiriça, entre a face diurna e a noturna. Essa área, por sinal, era constantemente vergastada pela fúria primal dos elementos, devastada por imensas nuvens de vapores rochosos e metálicos - monóxido de silício, silicatos, titânio, ferro, alumínio e muitos outros - provenientes da crosta em ebulição no lado iluminado, superaquecido voltado para o sol em direção ao lado escuro, onde se condensavam caindo em forma de chuva de rochas incandescentes. Esquálidas planícies de crosta semifluida vermelho-escura, desprendendo fumarolas, onde alucinantes torrentes de fogo e lava candente dourado-alaranjada a mais de três mil graus centígrados serpenteavam em angulosos meandros, espraiavam-se sob um céu que não era negro retinto - como seria de se esperar em um mundo desprovido de ar - , mas permeado de uma levíssima aura azulada por entre a miríade de estrelas meio ofuscadas pelo sol Kepler-78 que fulgurava em toda sua esplendorosa potência - quarenta vezes maior do que o nosso Sol visto de Mercúrio e cem vezes maior do que quando o vemos em Terra - , qual cegante esfera de metal incandescente que nunca se punha no horizonte baixo. (Com apenas 750 milhões de anos em tempo terrestre, Kepler-78 é uma estrela mais jovem que a nossa e tem maiores manchas estelares.) No hemisfério em que reinava a eterna escuridão da noite, exposto ao frio mordente do vácuo do espaço sideral - onde, luminosíssimas e paradas, as estrelas apresentavam-se como milhares e milhares de pequenas bolas de luz perolada - , havia uma massa de rochas magmáticas - como gabro, granito, granodiorito e basalto, entre outras - parcialmente derretidas e fundidas umas às outras formando uma fina crosta negra ainda extremamente quente, arrebentada por violentas erupções de gêiseres de lava, de cem milhões de vulcões ativos vomitando caudalosos rios de fogo, corroída por milhões de lagos de lava fervente.

Era a própria quintessência do Gehinnom; o bíblico Tophet numa escala global.

— Impressionante! - murmurou o jovem Alferes Thai, sentado em seu console de operações. Ele já vira na Starnet as holoimagens estarrecedoras das paisagens sulfúricas de Io, a lua vulcânica de Júpiter, com lagos de enxofre derretido e rios de lava com dezenas de quilômetros de extensão; e soubera dos rumores medonhos acerca das devastadoras tempestades de calor de 400 quilômetros por metrociclo que a cada nascer do sol varriam a linha do terminador de Crematória, o famigerado planeta-prisão do Império Kadarita. Nada disso, porém, podia se comparar com a visão aterradora daquele gigantesco caldeirão incandescente de rochas em ebulição, continuamente bafejado pelo mortífero hálito ardente de sua voraz estrela hospedeira, e fadado a ser por ela devorado e consumido, inexoravelmente, num futuro ainda longínquo.

— Faz as terras calcinadas de Mercúrio, Kelvin e até Azor, com todas aquelas planícies de lava dura, parecerem os spas de Pava, ou os resorts de nudismo de Baritt - o Tenente Lorphall comentou meio ao acaso, sentado relaxadamente em sua confortável poltrona ergonômica frente aos controles virtuais pseudo-holográficos do console de navegação e leme. Com a Majorum movendo-se em uma órbita estável em torno da Kepler-78, o piloto/astronavegador erthusino monitorava os sensores de navegação (a fim de rastrear possíveis riscos de voo, como micrometeoroides) e, graças ao seu prodigioso cérebro adicional mutado, mantinha suas invisíveis "antenas" de prospecção telepática ligadas perscrutando a vastidão do espaço exterior em redor da nave, auscultando em busca de eventuais sinais de atividade psíquica alienígena.

— Não é impossível - opinou Thai - que outrincons baseadas em silício, como os Sahraks de Kelvin e as Salamandras do Fogo de Herbst, kodhrins de Hoddhar, hurghund de Karanlaqi, verxigs de Hammerstein ou horseshoes de Maynard, conseguissem subsistir bem no hemisfério escuro, que apresenta temperaturas médias abaixo do ponto de fusão do silício.

— Aquelas chuvaradas de rochas incandescentes não são nada amigáveis à vida - contrapôs Líria. - Mesmo para os seres quartzosos ou silicosos que conhecemos. Já para outins plasmáticas ou energéticas, que habitam os sóis e se alimentam de energia pura é frio demais, pelo que seria mais provável preferirem o hemisfério iluminado.

— Cosmicamente falando, Kepler-78 é uma péssima mãe - observou Togo, com laivo de ironia. - Dois filhos, e a nenhum ela dá vida. Sufoca e consome lentamente num mortífero abraço de fogo sua cria legítima, ao passo que o "filho adotivo" permanece à distância, no frio e nas trevas, negligenciado e esquecido. Sinjoro Dal!

O oficial de ciências quodariano, que controlava os telerrobôs e holodrones de sondagem simultaneamente através de um link subespacial (pelos movimentos dos olhos com um cibervisor levíssimo e transparente de realidade aumentada em 3-D), entendeu como uma deixa para discorrer sobre o astro infernal cujas imagens terrificantes estavam sendo exibidas no holovídeo (afinal, era um especialista em planetologia e astronomia estelar).

— De acordo com as mais recentes teorias e simulações em computador, dentro de 2,75 a 2,8 bilhões de stanrevs o planeta Muspelheim será destruído pelas forças gravitacionais e de marés que reduzem cada vez mais o tamanho da sua órbita, até se precipitar na estrela hospedeira; e quando isso acontecer, ele será rasgado e destroçado - disse Gahud, um tanto didaticamente. - Quando os astrônomos terráqueos primitivos detectaram este sistema planetário com sua tosca tecnologia de telescópios espaciais, há quatrocentos e setenta e nove stanrevs, ficaram baratinados: Muspelheim, que naquela época ainda era chamado de "Kepler-78b", não poderia ter se formado na órbita atual, pois que quando a estrela central, Kepler-78, formou-se, ela foi maior do que é agora, o que colocaria o planeta recém-nascido DENTRO das camadas externas da própria estrela inchada; igualmente, não poderia ter "migrado" de uma órbita mais distante para outra mais perto do sol, ficando mais quente ao ponto de perder toda sua água e quase toda a sua atmosfera. Em suma, um mundo que não deveria existir de acordo com as teorias de formação planetária daquele tempo! Pior ainda, outros "planetas de lava" foram descobertos na mesma década, todos ostentando massa e raio terrestres, mas com períodos orbitais assustadoramente curtos, de menos de doze horas terrestres, ou cinco metrociclos. Para aqueles astrônomos antigos, tratava-se de uma nova categoria de planetas, o que hoje chamamos de classe X e que foi adicionada à Escala Bergkvist junto com a classe Y, especialmente criada para os "planetas de ferro" superpesados, que igualmente são, na maioria dos casos, planetas ctônicos... - Ele interrompeu-se quando notou a expressão contrafeita, patente no rosto do Comandante Togo (que não compartilhava de seu entusiasmo por planetologia comparada de mundos exóticos). Thai e Lorphall riam baixo, disfarçando com uma tosse discreta. Pigarreando e gaguejando, Gahud tratou de concluir às pressas sua explanação: - A mais moderna e aceita teoria científica defende que Muspelheim tenha sido originalmente um gigante joviano da classe Q, R ou S que uma supercivilização alienígena acima do nível A20 moveu para perto de seu sol, a fim de aquecer e "descascar" as camadas exteriores de hidrogênio e hélio, deixando a descoberto o núcleo metálico ou rochoso de 15.000 km de diâmetro. Isto pode ter sido parte de um projeto de astroengenharia com vistas a criar um novo habitat planetário neste sistema solar ou simplesmente uma fonte de matérias-primas minerais para durar milhões de stanrevs. Mas aparentemente o megaprojeto foi abandonado, ou então a civilização alienígena se extinguiu há eons.

Gahud calou-se, fatigado por ter falado tanto. Togo suspirou audivelmente e relanceou um olhar para o Capitão Ghowrid, como que pedindo socorro. A esta altura Thai e Lorphall já riam abertamente. Líria escaneou os rostos (e as auras mentais) dos colegas tripulantes, demonstrando certo interesse científico. (A Frota Estelar não era e nem pretendia ser um sistema hierárquico militarizado. A rígida disciplina vigente nas forças militares do passado terráqueo era desconhecida, e mesmo a manutenção de uma estrutura de postos e patentes inspirados na hierarquia naval era tão só uma bela tradição herdada dos primitivos dias anteriores às viagens interestelares e que, por sua vez, remontava aos velhíssimos tempos das embarcações a vela.)

Ghowrid sorriu, exibindo dentes perfeitos como pérolas. - Sinjoro Dal, por mais interessantes que sejam as informações astronômicas e astrofísicas do seu cabedal sobre este sistema estelar, estou certo de que o que o Sinjoro Togo solicitou foram os dados frescos colhidos pelas sondas e drones nos últimos vinte e cinco centiciclos de sobrevoo em órbita de Muspelheim. Algum sinal de atividade alienígena?

— Negativo, capitão - Gahud respondeu de pronto, assumindo uma postura mais formal. - Nada que indique a presença de tecnologia avançada extrafederativa, pretérita ou presente. Nem positrônio, nem qualquer outro ônio. A varredura de feixe de táquions também não acusou a presença de algum veículo espacial camuflado, seja na superfície, seja no espaço orbital. Zero.

— Procurou igualmente por indícios de naves usando camuflagem de fase?

A camuflagem de fase ou por faseamento era uma tecnologia baseada em mudança de frequência vibratória que - utilizada há milênios por Éticos, Céticos, cylons e outras civilizações superiores - não apenas tornava a nave estelar invisível e indetectável aos olhos e sensores, mas também modificava radicalmente a estrutura atômica da mesma e de seus ocupantes, deixando-os "fora de fase" com o espaço-tempo normal, tornando-os tão intangíveis e invisíveis como puros espíritos, ou melhor, consciexes, e permitindo-lhes atravessar qualquer material, inclusive estrelas e planetas, como se eles não existissem. Dentre as nações estelares da Via Láctea no século VI d.V., somente a F.E.U. e os impérios galácticos de Klingon e Sorgalt, além dos romulanos de Khaldan, é que possuíam tal tecnologia ultra-avançada - e das classes de naves da Frota Estelar, somente os pequenos cruzadores-robôs esféricos vogelfrei da série Anak é que estavam equipados com o gerador de interfase que combinava um inversor de fase molecular com um dispositivo de camuflagem.

— Não, capitão - respondeu Gahud. - Teoricamente, é possível identificar e anular a camuflagem por fase usando anyons e outros tipos de partículas exóticas, uma vez que as mesmas são capazes de remover a radiação cronotônica liberada sempre que alguém ou alguma coisa fora de fase transpõe matéria sólida. Mas para tanto é necessário que o objeto ou veículo camuflado esteja em movimento, de modo a emitir crônotons que possamos varrer com o emprego de partículas anyons. Podemos inundar o espaço ao redor do planeta, a superfície e o interior de Muspelheim com um dilúvio maciço de partículas anyons, mas isso por si só não garante sucesso na busca por uma nave equipada com dispositivo de camuflagem de fase - se existir - , a menos que ela se mova através do planeta ou de algum objeto material: um cometa, um asteroide, um fluxo de meteoroides, uma nuvem de plasma procedente de uma erupção solar...

— Faça-o assim mesmo - ordenou Ghowrid.

— Sim senhor.

Togo virou-se em direção ao console de navegação e falou em voz alta, sem usar a transmissão dirigida de som: - Sinjoro Lorphall, a culpa é sua.

— Minha, comandante?! - exclamou Lorphall, apanhado de surpresa.

Togo assentiu. - Sua e de todo o seu povo. Vocês e suas pílulas de Espavina. É a Espavina erthusina, combinada com o método de Condicionamento Lasmhoriano, que permite ativar áreas cerebrais "pré-gravadas" com conhecimentos específicos. E foi assim que o nosso mui distinto oficial de ciências transformou o cérebro dele num perfeito computador bioquímico, e virou, ele próprio, um banco de dados ambulante, dez metrociclos por quadron, que esbanja erudição sem que pra isso precise estar plugado no sistema de computador da nave, nem conectado na Starnet através de indutor psicocibernético. Estou certo ou errado?

Passado o instante de perplexidade, Lorphall logo compreendeu que o primeiro-oficial estava zombando dele e se uniu ao coro de risadas que se alastrou pela ponte. Foi quando o súbito soar do alerta perimétrico requisitou sua atenção para a tela holográfica virtual no painel de sua estação. - Capitão, comandante! - anunciou o astronavegador. - Sensores de longo alcance detectaram objeto se movendo em nossa direção.

Um feixe de raios do conjunto de sensores da Majorum, que girava ininterruptamente em varredura passiva (em estado de prontidão permanente), fizera contato com um objeto não-identificado, tendo sido refletido por este e desenhado um ponto verde na tela holográfica bidimensional que ora flutuava acima do console de navegação; e um milissecton após o surgimento do ponto verde, disparara o alerta perimétrico.

E alguns microciclos depois: - A procedência do objeto é a coroa estelar de Kepler-78.

Togo soltou uma interjeição, o que lhe valeu um olhar estupefato da conselheira. - Estávamos tão focados no planeta que nos esquecemos de checar a estrela - resmungou o imediato.

Ghowrid foi o primeiro a recuperar-se do choque.

— Sensores táticos! - ordenou peremptoriamente.

— Os movimentos do objeto estão sendo controlados - reportou a Tenente Lyang, que, em pé, operava o console do posto tático na parte traseira da ponte. - Trata-se de um veículo espacial. - Suas mãos e seus olhos trabalhavam em conjunto para mover por comandos gestuais e oculares as telas holográficas com os dados dos sensores em busca de novas coordenadas. - Distância um milhão de quilômetros. Velocidade impulso total. Não em alcance visual, mas trata-se de um objeto esférico. Diâmetro ... - Hesitou por um microssecton, como se não pudesse crer em suas leituras. - Diâmetro de trinta quilômetros. As leituras de energia ultrapassam minhas escalas! Seja o que for, deve ter o poder de um sol... usar a potência energética equivalente de uma estrela inteira. - Sem desgrudar os olhos das pequenas holotelas adejando pouco acima do console de armamentos e posto tático, a MecOrgan ginoide murmurou: - Eu suaria frio, se pudesse. Mas apaguei de meu software sensorial a sub-rotina responsável pela sensação de sudorese fria. Muito inconveniente.

— Alerta amarelo em toda a nave - determinou Ghowrid. - Todos a seus postos.

Líria notou a respiração pesada do capitão. Perguntou-se se desta vez a briosa tripulação da nave estelar Majorum havia abocanhado mais do que podia mastigar.

Sinjorino Lyang, coloque na tela principal - ordenou Ghowrid.

Luna rapidamente tocou seu painel virtual, mas a grande tela holográfica à frente de Ghowrid mostrou apenas o negror do espaço disseminado de estrelas. - Zero-cinco-dois, marco sete. Componente de deslocamento em nossa direção. Ali está!

Na tela, uma diminuta, difusa mancha de luz aumentava de tamanho e tomava forma à medida que se aproximava. Tornou-se um grande ponto branco-prateado, em rápido crescimento contínuo. A experimentada tripulação da ponte observava a imagem nítida e tridimensional com vivo interesse.

Ghowrid deu ordem para abrir frequências de saudação.

— Transmita "paz" e "saudações" em todas as línguas conhecidas.

Em seguida, dirigiu-se ao oficial de ciências. - Sinjoro Dal, faça os drones-sondas irem ao encontro da nave desconhecida, se é realmente uma nave, reprograme-os para recolher o máximo de dados a respeito.

— Sim, capitão - respondeu o quodariano massudo e negro em sua estação. Com o visor de realidade aumentada sobre os olhos amarelos cintilantes, operava por gestos e movimentos oculares o impalpável painel virtual pseudo-holográfico (visível somente para o usuário, mas capaz de alterar forma e função de modo interativo conforme a tarefa ou necessidade atual). Caso necessário, podia plugar seu cérebro diretamente ao núcleo do computador principal, via cabo neural, conectado na nuca (onde se achava a porta de dados para inserção deste), e adentrar o cibermundo virtual do NCP.

Na grande tela central, o objeto prateado redondo crescia mais e mais. No entanto, parecia ter um formato curiosamente elíptico devido aos tênues anéis em seu redor.

— Distância de tiro será alcançada em cerca de 200 a 40 microciclos - anunciou Luna. Um tenso silêncio tomou conta da tripulação da ponte.

Quando a nave alienígena havia se aproximado a uma distância de cerca de quatrocentos mil quilômetros, o Tenente Lorphall anunciou: - Capitão! Estou captando atividade de uma entidade psiônica extremamente poderosa.

— Procedência? - indagou Ghowrid.

— É o objeto alienígena, senhor. A grande nave esférica.

No momento seguinte, Líria falou, com um misto de surpresa e satisfação: - Eu também posso senti-la, senhor. Uma inteligência poderosa como jamais encontrei.

— Inteligência diferente da nossa... ou superior à nossa?

— Ambas as coisas. Recomendo o máximo de cautela ao procurar contato.

— Anotado. Alguma resposta da esfera gigante, Sinjorino Lyang?

— Negativo, capitão. Nada no tradutor universal simultâneo. Nossas tentativas de comunicação falharam em todas as frequências subespaciais e hiperespaciais.

— Seja quem o que forem esses outrincons, eles parecem não querer conversar - Togo observou, secamente.

— Pelo Espírito Cósmico! - Lorphall sussurrou pasmo.

Na grande tela holográfica, a esfera reluzente cresceu rápida e vertiginosamente até encher por completo o campo de visão - como se em questão de microciclos uma sombra de prata baça engolisse a escuridão estrelada (o Alferes Thai, sentado em seu console de controle, chegou a inclinar-se para trás). Uma esfera artificial com trinta quilômetros de diâmetro que parecia feita de metal líquido fluido! O tamanho aterrador daquela monstruosidade alienígena paralisou os tripulantes da ponte, que contemplavam atônitos e maravilhados, como que postados diante de algo imensamente grande, extracósmico, transcendental demais para que eles pudessem abarcar.

— Nave alienígena desacelerando - disse Lorphall, pausadamente. - Distância de cinquenta quilômetros.

— Todos os motores, parada total - ordenou Ghowrid.

Um momento depois, o ciclópico globo interrompeu sua trajetória em direção à Majorum, parou e permaneceu lá, imóvel no espaço vazio do sistema estelar interior, confrontando a nave federada reduzida a um naviozinho insignificante em face de sua refulgente grandiosidade. Um titã do cosmos diante de um pigmeu.

— Por todos os ossos da primeira encarnação genética de Iskander-Drago! - murmurou Thai, emocionado (em comparação com os outros oficiais da ponte, era um jovem inexperiente e novato). - Aquilo já nem é uma nave cósmica; é do tamanho dum asteroide. Faz lembrar a ainda mais gigantesca cidade-fortaleza orbital que é a menina dos olhos do Vice-Rei de Typhon.

— Permissão para erguer escudos defletores e armar torpedos e matrizes phasers, capitão? - solicitou Luna, no console de armamentos e posto tático.

— Negativo, tenente - respondeu Ghowrid, firmemente. - Não tendo nenhuma ideia de quem está a bordo dessa nave, e se de fato for um construto interdimensional dos Astroengenheiros ou de outro Multiverso, é preferível evitar uma atitude que possa ser interpretada como beligerante pelos alienígenas. A superioridade técnico-científica e militar deles nos esmagaria. - Levantou-se da cadeira de comando. - Computador, reduzir imagem. Magnitude 18,5. Quero vê-la por inteiro.

O eficientíssimo computador de bordo prontamente cumpriu a ordem dada. Em dois microciclos a tela diminuiu o tamanho da imagem até ficar como o capitão queria. A esfera alienígena, agora com o tamanho aparente equivalente ao dobro de uma bola de futebol, pairava serena no negrume do espaço sideral, circundada por um conjunto de luminosos anéis equatoriais rebrilhando em todas as cores do arco-íris. Era como olhar para uma versão prismática dos anéis de gelo do glorioso Saturno do Sistema Solar, ou dos ainda mais largos e numerosos anéis meteóricos do gigante joviano Dagon, orbitando dentro do vasto cinturão de poeira estelar em torno de Fomalhaut, a 7,7 parsecs da União Solar.

— Com que então é esse o "culpado" tanto pelo mega-apagão cósmico quanto pela inutilização das redes neurais positrônicas dos androides e de todo o maquinário em Nifelheim? - Togo estava de pé com os braços cruzados, e fitou a grande tela central com seu olhar duro e curioso. O brilho do sol Kepler-78 refletia-se no casco prateado da imensa espaçonave globular, que parecia feito de mercúrio líquido, ou poliliga mimética - com a qual são fabricados os metamórficos espiões-androides dos cylons e do Yela - , os anéis prismáticos, iridescentes, circundando-lhe a cintura, girando alucinadamente em sentido horário.

— Incidentalmente, de acordo com o Dr. Karl Dharz - retorquiu Ghowrid. - Parece que ele ou o Dr. Sklar tinham razão, afinal de contas. A causa de todos esses fenômenos são seres estranhos e avançados de fora do nosso Universo. Curso e posição da esfera, Sinjoro Lorphall?

— Distância de 49.988 metros, posição constante - respondeu o mentálico, checando os instrumentos. - Em aparente imobilidade à nossa frente. Sem beligerância.

— Você consegue fazer a sondagem telepática no que quer que exista dentro dessa coisa? Quem ou o que eles são?

— Estou captando pensenes poderosíssimos, mas é só isso. Senhor, em minha opinião trata-se de uma I.A., uma inteligência artificial incrivelmente avançada. Posso senti-la em minha mente. Algo como nossas naves esféricas sencientes da série Anak, se bem que muito mais complexa e poderosa. Sinjorino Lemos pode confirmar isso.

— Conselheira?

— O mesmo relatório, capitão. Prospecção telepática esbarra com um poderoso holopensene que ofusca tudo o mais... Essa é com certeza uma nave autoconsciente, uma I.A. que possui um Q.I. da ordem de várias centenas de megapsis. Numa comparação, diria que está para nossas máquinas pensantes como o Homo sapientioris está para o Homo sapiens.

— Mas você pode facilmente se comunicar com essa entidade, essa I.A. por via telepática, não pode?

— Sim, eu posso.

— Faça-o. Sinjoro Lorphall, você dará reforço telepático à iniciativa da Conselheira Lemos para entabular um contato mental com o alienígena. Queremos descobrir suas intenções em nosso espaço-tempo.

— Sim senhor.

Sinjoro Dal, o que tem para nós?

— Não muito, capitão, mas é significativo. As sondagens dos sensores mostram a existência de um campo energético protetor n-dimensional envolvendo a esfera gigante, campo esse cuja estrutura pode ser calculada matematicamente, mas não pode ser imitada ou reproduzida pela nossa capacidade tecnológica atual. Nossos computadores teorizam tratar-se de um campo energético hexadimensional - da sexta dimensão.

— Isso explica como foi capaz de sobreviver incólume às grandes massas ardentes da coroa solar - disse Togo. - Uma nave protegida por essa armadura de isolamento de um espaço-tempo superior ao nosso poderia subsistir confortavelmente, indefinidamente dentro da atmosfera exterior do sol Kepler-78 ou de qualquer outra estrela.

— Exato, comandante. Nossos escudos metafásicos ou quadridimensionais, que são o suprassumo da nossa tecnologia de campos de força, permitem que se leve uma nave tripulada a apenas 0,1 raios estelares acima da superfície de uma estrela, ou seja, bem nas profundidades da coroa estelar, mas só por um período limitado de tempo - não mais que poucos metrociclos. E ainda assim, sofrendo interferências dos campos de sobreposição de vibrações da própria estrela nas funções mecânicas.

— Interessante. - Ghowrid comprimiu os lábios moderadamente carnudos, enquanto seu intelecto geneticamente engendrado processava a nova informação e seus corolários para o futuro da Frota Estelar. - E quanto à análise da composição da esfera?

— Eis outro ponto, capitão. Os sensores de massa dos drones mostram que é sólida, mas a decodificação espectroscópica registrou uma substância desconhecida para nós: impenetrável, dura e leve, como se fosse constituída apenas de massa, mas não se comporta como a matéria normal. Não é plasteel, não é alguma liga de metalplástico ou bioplástico/cristalina, nem poliliga mimética. Também não é positrônio molecular ou outra qualquer forma de matéria exótica contendo tanto matéria quanto antimatéria. É algo que foge de qualquer classificação.

— E com isso descartamos a hipótese do Dr. Sklar. Não é uma nave de um universo-espelho de antimatéria. Sinjoro Dal, quero que especule: o que pode ser essa substância misteriosa ligada a outras dimensões do Multiverso?

Os olhos amarelos de Gahud cintilaram. - Luz congelada! Luz em estado sólido, energia plástica ou energia de forma. Pelo menos é a coisa mais próxima que existe para descrever a substância que compõe a astronave globular com que nos defrontamos. Na realidade, já existem precedentes bem conhecidos por todos nós, neste grupo local de galáxias. As espaçonaves de luz sólida dos Éticos, que habitam Andrômeda, e dos Céticos, aqui na Via Láctea, são feitas de energia moldada. E as espaçonaves dos Zraajj da Galáxia Anã Irregular de Pégaso, assim como toda a sua tecnologia e os seus próprios corpos consistem de energia pura em formas rígidas. Os anéis rodeando a nave, por outro lado, são compostos de uma espécie de energia plasmática, similares aos "anéis de plasma" em torno do planeta interestelar errante Tertaria e das principais luas terrestroides do sistema de Typhon, Lalande 21185. No entanto não faço a menor ideia do processo pelo qual são produzidos os anéis, muito menos a fuselagem, as paredes e conveses constituídos de pura energia lumínica moldada em forma de matéria. Atualmente, a construção de naves estelares ou dimensionais usando luz sólida está além da capacidade tecnológica da Federação.

— O que é mais uma razão para nos apossarmos dessa nave, desde que ela permaneça no espaço federado. Talvez seja realmente um legado dos Astroengenheiros do Dr. Dharz. Sem leituras de formas de vida?

— Nossos sensores não conseguem penetrar no casco da nave. Lamento, capitão.

— Nem sequer os sensores de neutrinos? Sensores de múons?

— Absolutamente nada, senhor. Sei que parece inacreditável, já que os neutrinos e os múons atravessam qualquer material até o interior dos átomos e muito além dos núcleons. Talvez seja por causa desse enorme campo energético hexadimensional que protege a astronave globular e cria formidáveis frentes de interferências...

Subitamente, um facho de luz branco-azulado saiu da gigantesca nave alienígena em direção à Majorum. A luz invadiu a ponte, iluminando e delineando detalhes nos objetos e pessoas com uma precisão espetacular. Apesar do assombro dos presentes, a cujas faces o facho azulado frio emprestava uma palidez quase mortal, tratava-se de uma experiência inócua, indolor e sem efeitos colaterais. Ghowrid voltou-se para Líria, seu semblante tomado por uma expressão intrigada e surpresa.

— Capitão - disse Líria - , estamos sendo analisados por uma sonda sensorial-telepática excepcionalmente poderosa. - Podia sentir o sensor imaterial investigar, penetrar, escanear no mais profundo do seu "eu" multidimensional... Seu holossoma... Até a matriz celular de seu DNA físico e energético... Energossoma, psicossoma, mentalsoma... E ela sabia que o mesmo acontecia simultaneamente no resto da nave, com cada ser vivo tendo suas vibrações celulares e mentais características perscrutadas.

— Sensores internos confirmam que fomos invadidos e analisados por sonda não-mecânica, senhor - relatou Thai, de seu painel de operações. - Todos os conveses e até os alojamentos. Até o bar panorâmico.

O exame durou apenas três centiciclos. Quando a luz azulada esmaeceu, Ghowrid voltou rapidamente para sua cadeira de comando e tocou a tela no controle virtual de sua linha de intercom. - Todos os postos - falou. - Relatório de condições. Relatório de danos.

— Nenhum dano aparente, capitão - Luna respondeu rápida.

— Nenhuma baixa - disse Líria.

— Todas as funções da nave inalteradas e operando normalmente, senhor - informou Thai.

Um sinal soou no painel virtual do braço esquerdo da cadeira de comando. Ghowrid tocou um dos controles da tela sensível ao toque. - Aqui é o capitão.

No mesmo instante houve um bip agudo e a voz do Tenente-Comandante Lewz ecoou exaltada pela ponte. - Capitão Ghowrid, aqui é Lewz! O Dr. Dharz acaba de desmaterializar-se em pleno bar panorâmico! Deve ter sido abduzido...!

A expressão de choque tomou o rosto moreno de Ghowrid; mas o nietzschiano recompôs-se quase imediatamente. - Computador-mestre, qual a localização do Dr. Karl Dharz?

E a impessoal voz feminina sintetizada do computador respondeu: - O Dr. Karl Dharz não se encontra a bordo desta nave.

— Alerta vermelho! Levantar escudos! - ordenou Togo.

No mesmo instante as sirenes de alerta encheram a nave. Os dedos esguios de Luna Lyang voaram pelas teclas holográficas do console de armamentos e posto tático, armando os escudos energéticos defletores conforme ordenado. Numa questão de microciclos a Majorum envolveu-se no pentaescudo padrão da Frota, que consistia de cinco estratos de escudos multifásicos regenerativos, além da armadura ablativa nanotec de ultralênio, antirreflex, e do casco polarizado. Um campo esférico de invisibilidade fotônica - usando de teletransporte de luz - ocultou por completo a nave do universo exterior. - Prontidão de combate total, senhor.

Capitão e primeiro-oficial entreolharam-se, um lampejo de entendimento nos olhos de ambos, e viraram-se para a tela principal da ponte no centro da parede frontal.

A espaçonave gigante!


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Notas finais do capítulo

Saiu muito maior do que o originalmente previsto (typical me! Querer espremer o proverbial elefante dentro da igualmente proverbial casca de noz), mesmo após eu ter excluído certas partes, a serem eventualmente incluídas em capítulos futuros; e não posso prometer que os capítulos seguinte não atingirão dimensões comparáveis - se eu achar que isso se fará necessário.
Metade deste capítulo (mais ou menos) está focado na dupla Lewz & Dharz: quem são e de onde (ou melhor, "de quando") vieram, como pensam etc etc; Dharz, em particular, será um personagem de capital importância para os próximos capítulos.
OBS.: as cenas do encontro com a nave gigante desconhecida constituem um clichê (ou, como diria Alexis, "I.J.U.", "Ideia Já Usada") copiado descaradamente tanto do episódio da série "clássica" de Star Trek ("The Corbomite Maneuver") quanto do episódio-piloto da "Nova Geração" ("Encounter at Farpoint"), e até c/uma pitada de Perry Rhodan (P-298 "Amok dos Hibernados").