Várias palavras giravam pela minha mente, sons decodificados pelo cérebro que não faziam sentido algum. Hope; palhaço; corvos... Mate o Palhaço, ele é tão falso.
Falso?
Falso.
Livrei-me do torpor.
As lembranças da cena iam e vinham dentro da minha cabeça como um carrossel ... Onde está o início? Onde está o fim? Difícil dizer.
Sentada no banco em frente ao lago Thade, atrás do colégio. Matei a aula de sociologia por que simplesmente não tinha mais cabeça para Durkheim.
Quieta, observando o nadar de uma pequena família de patos que pareciam contentes. Talvez a irracionalidade seja a chave pra ser feliz, não é mesmo?
– Sky?
Voltei à realidade virando meu rosto em tempo de ver Gaby sentando ao meu lado, mas decidi ignora-la.
– É lindo, não? – Disse – Se lembra da época em que brincávamos aqui no recreio? Meu Deus, fazíamos torneio de quem jogava a pedra mais longe. Lembra que mamãe sempre nos disse que era brincadeira de menino?
Sim, eu me lembro. Desde o primeiro ano eu e Gaby fazíamos disputas, lançando pedras dentro do lago, mas ela sempre foi gordinha, por isso era mais forte e sempre ganhava de mim. Mas não disse isso, simplesmente permaneci em silêncio.
– Eu não sei se você lembra aquela vez que estávamos disputando quem fazia a pedra quicar mais vezes, você acabou acertando a cabeça de um pato e ele te atacou. – Disse gargalhando.
Eu me lembrava como se fosse ontem. Estava chorando como se não houvesse amanhã por causa do pobre pato, enquanto a Srta. Evans consolava-me dizendo que ficaria bem. Desde então nunca mais cheguei perto de um exemplar dessa maldita ave.
– O que você quer afinal? – Perguntei.
– Bem... Remissão dos meus pecados seria um bom começo.
– Eu não sei se você percebeu, mas não sou padre.
Deixou escapar uma risada melodiosa que me fez lembrar a época em que brincávamos juntas. Bons tempos... Eles nunca retornam. No fundo, bem no fundo, não passam de pegadas na areia que foram apagadas pelos ventos desérticos.
– Havia me esquecido o quão acida poderia ser, Delevingne.
– É mais fácil apenas dizer o que quer, Barros.
Gabriella pegou sua pequena Marrie Cult, abriu-a levemente e tirou um pacote embrulhado em papel presente multicolorido.
– Lembra-se da época em que brincávamos de bonecas? – Perguntou – Ah, isso não importa. Meu pai me disse que uma garota de 17 anos já não pode mais ter uma casinha de bonecas, então descartamos todas.
Meu coração ameaçou saltar. Eu amava aquelas bonecas. Podia me lembrar das horas e horas que passávamos com elas e dos maiores eventos do Mundo do Chá, onde chamávamos todas para as festas mais badaladas do nosso mundo fantasioso infantil. Não queria acreditar que as havia descartado assim, como se fossem nada.
– Você fez o que...?!
– Sem escândalos, Delevingne – Interrompeu-me – Eu pude salvar algumas coisinhas aqui e ali.
Gabriella me entregou o presente, o qual balancei, tentando de alguma forma descobrir o que havia no seu interior.
– E quer saber Skye? É difícil viver num mundo onde a inocência é revogada tão cedo. Se esconder, mentir, fingir ser o que você não é... É como criar um Inferno particular e se esconder dentro dele. E dói, dói muito. – Disse ela, num tom enigmático, ficando de pé e indo embora.
Ela se foi sem dizer adeus.
E eu não soube o que dizer, apenas sentir, continuar sentada em silencio por instantes, tentando lembrar qual das bonecas me entregou.
Talvez, bem no fundo, fosse só mais uma das brincadeiras patéticas do seu grupinho. Deveria ter algum animal morto ou coisa pior ali dentro.
Inspirei e Respirei, repetindo o processo inúmeras vezes. Desatei o nó vermelho e fechei os olhos, tirei o papel de embrulho. Respirei e inspirei novamente pra abrir a caixa. Peguei o objeto que ali estava, apalpei e deduzi que não era cadáver algum. Abri meus olhos e não pude crer no que eles me exibiam.
Melanie.
O presente era uma bailarina em cima de uma pequenina caixa giratória com uma chave âmbar acoplada. Utilizava um vestido perola e ficava nas pontas dos pés, tendo seus braços abertos como de uma garça. Seria apenas mais uma dançarina de brinquedo normal se não fosse pela sua cabeça: Dentes quebrados como de uma criança e várias sardas distribuídas pelo rosto. Seus lábios eram rosados, e suas íris realmente negras. mas o que realmente chamava a atenção não era o coração desenhado em sua bochecha esquerda, e sim, seus cabelos divididos em duas cores: Na parte direita era rosa chamativo, na esquerda se erguia um preto luto.
Quando criança eu me identificava com Melanie devido a sua pequena anomalia capilar. Queria ter sua graça enquanto girava em cima da caixa, ter sua beleza exótica, saber os segredos que as crianças lhe contavam.
Queria ser uma boneca de plástico.
Ah, e como me esquecer dela? Esquecer dos segredos que contei? Das gargalhadas que demos juntas e dos monstros que espantou? Como pude me esquecer das noites em que passei com Gaby e a pequena Melanie?
E as brincadeiras e as Feast of teas vibravam na minha memória como relâmpagos. Preparávamos as cadeiras e colocávamos os ursinhos pra beberem do nosso chá invisível, e o melhor é que eles sempre nos elogiavam no nosso mundo imaginário.
E as risadas ecoavam como relâmpagos numa caverna. E a música...
A música!?
Peguei a boneca e girei a chave em suas costas. Havia quantos anos que Mel não mostrava seu talento?
Eu a deixei no banco, com a mínima esperança que as suas engrenagens ainda funcionassem... E assim ela rodou, cantou.
Ei, menina, abra as paredes, brinque com suas bonecas. Nós seremos uma família perfeita.
A melodia e as palavras, a batida, a dança. Meu cérebro era uma maçaneta enferrujada, a sinfonia era a chave.
Quando você vai embora é que nós brincamos pra valer, você não ouve quando eu digo: “Mãe, por favor, acorde! Papai está com uma vadia e seu filho está fumando erva!”, Ninguém nunca ouve. O papel de parede brilha. Não deixe que eles vejam o que acontece na cozinha.
Eu tinha sete anos quando aconteceu. E eu lembro. Ah, sim... Eu me lembro daquela noite. Noite chuvosa de outubro.
Lugares, lugares, tomem seus lugares, ponham seus vestidos e façam cara de boneca. Todos pensam que nós somos perfeitos. Por favor, não deixe que olhem através das cortinas.
Joshua Delevingne tinha apenas 16 anos quando se assumiu gay. E os sábios conselhos vieram a sua mãe: “Ah, irmã! Você não pode deixar isso assim! Deus tem algo melhor pra sua família. Expulse o demônio. Salve tua casa!”.
Naquela noite meu pai mandou-me subir ao quarto, ler a bíblia, orar. Eu fingi estar dormindo e entrei no guarda-roupa do meu irmão antes da sessão começar.
Foto, foto, sorria para a foto, fique ao lado de seu irmão, seja uma boa irmã. Todos pensam que nós somos perfeitos. Por favor, não deixe que olhem através das cortinas.
Chamaram o Bispo Castello e lhe explicaram a situação. Amarraram Joshua na cama para exorciza-lo. A humanidade é tão patética que sempre terá que culpar um Deus ou um Diabo pelas coisas que acontecem consigo. Coisas que às vezes não podem ser controladas, forças da natureza que não podem ser contidas.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
E enquanto Josh soluçava devido à dor em seus pulsos graças às algemas, o bispo perguntava seu nome... E ele respondia. Mas não era o nome carnal que deveria ser revelado.
– Demônio, em nome do Deus Triuno eu ordeno que revele seu nome! – Gritava o homem.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
O senhor de fé disse “Se não vir pelo amor, virá pela dor!”, e a primeira chicotada foi dada nas costas do garoto.
Eu me encolhi e chorei junto a ele, tampei meus ouvidos para não ouvir. Ninguém queria ouvir.
Ei garota, olhe pra minha mãe, ela está com tudo em cima. Ah, as joias ofuscam seus olhos.
E Tess observava a dor como um ritual sodomita, onde o ódio e a ira eram venerados. Afinal, talvez isso lhe mostrasse um ardor animal que mais nada poderia dar. A selvageria... Talvez essa fosse a real natureza humana.
Quando você se vira ela pega a garrafa e esquece a infidelidade dele.
Eu ouvi os gritos de pânico e o choro preso em sua garganta. Detalhe por detalhe. Não, aquilo não iria embora tão cedo.
E o homem de Deus continuou sucessivamente. O servo obedeceu a alguém, e se esse alguém realmente existe, terá que implorar meu perdão.
Ele agrediu o meu herói, o meu alicerce, como se fosse um animal. Não, animais não são tratados com tamanha crueldade! Eu estava ruindo. Minhas lágrimas mostravam que eu estava desabando. E eu senti pânico, senti tristeza... E acima de tudo: Senti ódio.
Mas as coisas deram errado.
Oh-oh, ela está vindo para o porão, plástico! Voltem a ser de plástico! Ninguém nunca ouve, papel de parede brilha. Um dia eles verão o que acontece na cozinha.
Um grito agudo ecoou pelo quarto e eu quase pude ver a glória satânica brotando das veias do meu irmão. Sangue, muito sangue. Fechei os olhos pra não ver a cena, tapei o ouvido mais forte pra não ouvir o pânico selvagem. Houve silêncio, mas por um instante... Até que surgiram as sirenes de policia.
Lugares, lugares, tomem seus lugares, ponham seus vestidos e façam cara de boneca. Todos pensam que nós somos perfeitos. Por favor, não deixe que olhem através das cortinas.
Josh fora internado em estado grave e o bispo foi preso. Duas semanas depois, o Homem de Fé foi sentenciado à morte por crime hediondo, minha mãe e pai foram absolvidos com a desculpa de que foram induzidos religiosamente ao ato e que na verdade o bispo usara da sua fé pra manipula-los. É incrível como adultos podem ser tão cegos quando querem.
Foto, foto, sorria para a foto, fique ao lado de seu irmão, seja uma boa irmã. Todos pensam que nós somos perfeitos. Por favor, não deixe que olhem através das cortinas.
Ele passou por uma cirurgia emergencial, mas não houve outra escolha: Seu braço direito teve que ser amputado. Após isso foram seis meses no hospital se recuperando, tendo consultas tanto com médicos quanto com psicólogos.
Um dia após ganhar a alta hospitalar Joshua fugiu. Foi quase um ano em sua procura, os policiais rondaram a cidade toda, todas as cidades vizinhas, foram colocadas fotos nos jornais de quase todo estado, mas de nada adiantou.

Eu não vejo meu irmão há 10 anos.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
Durante os quatro anos seguintes, vivemos normalmente, fingindo que Josh na verdade nunca existiu. Papai destruiu tudo que sobrara de sua identidade, todas as fotos, os cadernos e até o quarto perdeu sua energia. As coisas iam bem... Pelo menos até aquela noite.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
Chovia muito do lado de fora e os relâmpagos já não mais assustavam uma garota de doze anos. Muita mudou.
Papai e mamãe discutiam chamar o padre pra exorcizar o Sr. Knackfuss com a desculpa que levava meretrizes pra casa e que seus três cães na realidade eram as três personas de Cérbero.
Os cães estavam agitados graças à tempestade e mamãe já estava estressada com sua chefe, Jesabel Lee. Papai saiu na chuva pra mandar os cães calarem a boca e aí aconteceu.
Ei, menina! Ei, menina, abra as paredes, brinque com suas bonecas. Nós seremos uma família perfeita.
Elo foi atacado pelos cães, o cadeado do portão do Sr. Knackfuss estava frouxo. Cachorros ferozes voaram contra seu corpo, destroçaram –no sem que tivesse a chance de se defender.
Após o termino do caso os cães foram sacrificados, e nosso vizinho veio a se mudar... Mas marcas de dentes humanos foram encontrados no corpo de Robert Delevingne, e quando acordei parecia-me que uma nuvem de chuva entrou no meu quarto e inundou tudo.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
C-A-S-A-D-E-B-O-N-E-C-A-S. Eu vejo coisas que ninguém mais vê.
Mel deixou de rodar em cima da caixa e musica cessou... Nunca percebi o quão macabra poderia ser a letra. Minha cabeça estava doendo.
Fiquei de pé e coloquei Melanie dentro do embrulho, fechei seus olhos mecânicos pela ultima vez e encarei o céu nublado.
Não precisava do brinquedo, me trazia lembranças que não precisava reviver.
Estava madura demais para brincar com bonecas.