Dentro do Espelho escrita por Banshee


Capítulo 3
Passando pelo fogo


Notas iniciais do capítulo

Olá gente! Espero que tenham curtido os primeiros capitulos e me desculpem a demora, estou trabalhando em um blog e se quiserem acessar: Abrindoaimaginacao.blogspot.com.br
Comente, curtam, mandem sinal de fumaça. Qualquer coisa.
Nos vemos mais tarde, abraços.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/526031/chapter/3

Meus batimentos cardíacos acalmavam-se enquanto observava os corvos se multiplicando. Pontos negros cortando o céu, batendo violentamente suas asas, admirando com seus olhos completamente negros, exalando um cheiro familiar. O cheiro da morte. Como demônios esperando para ceifar minha alma. O que querem dessa vez?
Um deles saltou em meio ao ar, seguido de outro, e mais outro. Observei a graciosidade devassa no modo em que planavam em bando. Corvos sempre voavam em grupo, nunca sozinhos, sua espécie não se adaptara a solidão. Quando se perdem dos seus, definham lentamente até que morrem, tendo sua carne devorada por vermes. Essa, meus queridos, é a doce e velha ironia da vida.
Iam cada vez mais alto, até pintarem o céu azul de preto, batendo suas asas e formarem uma ventania. Não havia percebido o que queriam até então.
Hope, ouvi um deles gritar. Hope gritou outro, e mais outro, até que estavam me ensurdecendo num coro macabro, cantando a mesma palavra.
Hope.
–– O que Esperança tem haver com isso tudo? –– Perguntei a eles.
–– Minha cara Skye... Esperança tem haver com tudo.
Virei para ver de quem veio à frase, mas não vi nada.
–– Quem é? –– Gritei, tendo minha voz abafada pelo vento provocado pelas aves. –– Apareça!
–– Tenho vários nomes. –– Disse a voz –– Mas nenhum que interesse agora.
Com isso, tudo parou. A ventania parou, a nuvem de pássaros se dissipou e tudo ficou calmo, como se nada tivesse acontecido, como se fossemos transportado para uma dimensão alternativa onde tudo fosse possível. Na época eu não sabia o que era a paz antes da tempestade.
Nas sombras abaixo das árvores, um vulto se movia. Pensei em fugir, mas se fosse um animal provavelmente me alcançaria. Aproximei-me lentamente, até que a vi com sua túnica cor de vinho completamente danificada, com a cauda batendo no chão. Suas mãos enrugadas, cheias dos mais diversos tipos de anel e na cabeça uma touca que impedia que visse seu rosto.
–– Quem... Quem é você? –– Nervosamente perguntei.
–– Do que adiantaria dizer meu nome? –– Sua voz era rouca como de um doente prestes a morrer –– Nomes são apenas palavras. Não tem o poder de nos mostrar quem realmente somos. Não podem criar ou destruir. São apenas sons decodificados pelo cérebro.
–– Isso é algum papo enigmático do Mestre dos Magos ou algo mais pra Stars Wars?
Ela riu. Uma risada áspera, um pouco gutural demais se querem saber.
–– Minha criança, o que há de enigmático nisso? –– Disse –– Amanda significa “Aquela que nasceu para ser amada”. Mas você não pode nomear sua filha de Amanda esperando que alguém a ame e a criar como um monstro. Nomes não significam absolutamente nada.
A mulher deu um passo à frente, e eu dei um pra trás.
–– Eu não vou te fazer mal, eu juro. –– Disse ela mostrando suas mãos –– O que minha querida Tessa queria dizer ao te nomear ‘Céu’? Isso teria haver com sua eterna batalha para exorcizar Lúcifer de seu corpo ou sobre algo mais oculto?
A frase foi um banho de água fria. Como sabia meu nome? Como sabia o nome da minha mãe?
–– Quem é você? –– Perguntei de novo.
A senhora balançou a cabeça em sinal de negação.
Obviamente você não aprende a lição. –– Disse –– Venha a minha casa, e talvez eu responda suas duvidas.
–– Mas, onde é sua...?
A porta do trailer ao meu lado se abriu antes que eu pudesse articular a frase. Olhei atentamente para ver se existiam fios ou outra pessoa lá dentro para ter aberto a porta. Nada.
Ela se moveu rapidamente e passou por mim, deixando no ar o cheiro de carniça.
–– Você vem? –– Perguntou, colocando o primeiro pé dentro de “casa”.
E agora? Até onde eu sabia ela poderia ser uma canibal, serial killer, estupradora de menininhas indefesas. Mamãe sempre disse para não dar atenção a estranhos... Mas há muito tempo deixei de dar ouvidos ao que minha mãe fala.



Pequeno e cheio de mobília velha, mesmo com o cheiro de mofo parecia ser confortável. As banquetas e moveis deviam ser de mogno antigo e algumas fotos se distribuíam sobre os objetos. Havia uma cama antiga encostada à parede esquerda e uma pia na direita. No ar pairava um cheiro familiar, mas nunca me lembrei do que era.
–– Sinta-se à vontade.
Sentei-me no pequeno banco próximo a janela lateral do trailer enquanto a mulher acendia o fogão.
Ouvi tranquilamente o som da chaleira fervendo.
–– Sabe... Um forno micro-ondas seria uma boa. –– Sugeri.
–– Tecnologia? –– Exclamou –– Não mesmo.
Ficamos caladas por alguns instantes, pude sentir cheiro de cidreira aquecida, como as que meu pai me dava quando caia em febre.
–– O que queres afinal? –– Perguntei por fim.
–– A questão não é o que eu quero, e sim, o que você quer.
–– Eu só quero saber que caminho tomar pra sair daqui.
–– E pra onde iria?
–– Pouco importa pra onde iria.
–– Nesse caso, pouco importa que caminho que deve tomar. –– Apagando o fogo, a mulher serviu-me a bebida –– Tome qualquer um, e tome esse chá também.
E por alguma razão o discurso me pareceu familiar.
–– Eu não vou tomar isso! –– Exclamei –– Amada, eu sou loira, mas não sou burra não. Acha que não saquei seu plano? Vou tomar isso como se fosse uma tonta, cair dura no chão e acordar numa mesa de cirurgia, daí você vai se mostrar ser uma cirurgiã demente e me transformar numa de suas experiências! Eu assisti A Centopéia Humana, querida.
Com uma gargalhada falsa, a mulher virou-se para a janela, deixando amostra parte das cicatrizes em seu rosto.
–– Você acredita em Deus, Skye? –– Perguntou.
Esse foi o segundo banho de água fria.
–– Ainda não entendi como sabe meu nome.
–– Você acredita em Deus, Sky? –– Repetiu –– O que esse nome significa pra você? Lembra-te algo.
Sim... Dor, ódio, náuseas, ira, rancor, sede por vingança... Mas não poderia responder isso.
–– Deus? Deus é tudo pra mim. Deus é aquela brisa da manhã que...
–– Não quero ouvir uma resposta decorada na escola dominical. –– Interrompeu-me –– De verdade? Qual é a imagem que você tem de Deus?
Terceiro banho.
–– Deus é... Ele é... –– As palavras negavam-se a sair, negavam-se a fluir.
Verdadeiramente, nunca soube qual era a imagem que eu tinha de Deus. Talvez um homem alto de olhos lilás, mas não era esse tipo de imagem que queria. Não era isso que nenhuma de nos queria. E após 11 anos, descobri a resposta para uma pergunta que eu nunca fiz.
–– Eu não sei quem é Deus.
As nuvens se abriram, deixaram a luz entrar e eu pude ver o que parecia ser um sorriso no céu.
–– Você sabia que 0,19% do sangue humano é composto de Au?
Au? Parecia-me familiar. Talvez tenha aprendido em biologia ou física. Artes, talvez? Tentei recuperar aquela lembrança. Estava lá, em algum lugar. Filosofia? Não. Matemática? Não. Química. Tabela periódica. Ru é Rutênio, Cu é Cobre, Ag é prata. O que era Au? Au. Au. A palavra ecoava até me lembrar de algo que a professora havia dito uma vez, algo sobre que nenhuma joia era feita de só um elemento, e sim vários misturados pra poder manter a peça intacta contra corrosão.
–– Ouro? Está me dizendo que há ouro dentro do nosso sangue? –– Perguntei.
Ela olhou para seus anéis, cada um com uma cor diferente, vários no mesmo dedo, exceto no anelar esquerdo, onde havia uma única argola dourada.
–– Quando é encontrado um bloco de ouro, ele é levado imediatamente para a purificação.
Purificação. A palavra me dava náuseas.
–– A purificação é bem simples: Pega-se o bloco e coloca-o no fogo.
A visão de ver alguém lançando um metal precioso no fogo me deu uma dor no coração.
–– Quando o ouro sai do fogo já está reduzido a um décimo do tamanho bruto, mas em compensação fica dez vezes mais caro.
Dez vezes mais caro. De acordo com meu relógio, já havia perdido a primeira aula. Coloquei-me de pé, juntei minha mochila.
–– Perdi minha primeira aula, e ate agora não entendi bulhufas do que me disse. Cadê o propósito?
–– Como ouro imundo, você vai passar pelo fogo. –– Ela respondeu, se colocando de pé. –– E se houver alguma pureza em você, irá sobreviver.
–– E se não houver?
–– As impurezas queimam, e se não houver nada puro...
As palavras não ditas pairavam no ar, não havia a necessidade de pronunciá-las, principalmente porque já havia ouvido aquela frase antes. Quando não há nada puro, você queima, disse o padre.
Abri a porta, mas não tive coragem de sair. Não ainda.
–– Você estava lá, não estava? –– Perguntei ainda de costas –– Você sobreviveu à Tragédia de Azazel... Eu não sei como, mas conseguiu.
–– Eles não estavam preparados. –– Sua voz estava carregada de uma pureza quase humana –– Confesso que também não estava, mas sobrevivi. Como? Nem os Grandes puderam me responder.
–– Me Deus... Quem é você?
–– Nomes não significam nada...
–– Sim, significam. Nomes não podem destruir ou criar, mas eles são dados a pessoas que podem. Um grande homem carrega um grande nome. Você me diz que seu nome é insignificante, mas quero saber qual é o tamanho da sua insignificância.
Um minuto de silencio tão calmo que era possível se ouvir os passos das aranhas nas paredes. Há quanto tempo ela não pronunciava o próprio nome? Há quanto tempo estava sozinha? Talvez fosse difícil voltar a falá-lo sem se lembrar da sua família, amigos... De tudo. Talvez o silêncio seja uma forma de som, onde dizemos o que não queremos dizer. O silêncio é um caos.
–– Meu nome é... Faith... Faith Deveux.
Eu ri. Não por causa do nome ou por causa da desgraça e sim pela doce e velha ironia. , para uma pessoa sem fé.
Não me despedi, apenas saí lentamente e acelerei gradativamente, indo em direção ao meu Inferno pessoal. Eu não só precisava de fé. Eu precisava de mais, muito mais. Eu acho que precisava de esperança.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!