'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 29
Que Se Proclame o Vosso Nome


Notas iniciais do capítulo

Como prometido, o final do caso. E aqui podemos gritar ALELUIA!
Depois de dois anos planejando e enrolando com esse capítulo, finalmente o concluí como queria. Foi muito trabalhoso, muitas fontes de pesquisa e muitas horas dedicadas à escrita. Mudei quase que completamente o que inicialmente havia pensado em fazer e sinto que poderia ter ficado ainda melhor, mas devido a correria não fiz tantos ajustes quanto gostaria. Espero que vocês gostem e que eu tenha compensado os meus inúmeros atrasos e promessas que não cumpri.
A essa altura, não espero mesmo muitos comentários, mas seria bom que ao menos vocês sinalizassem que estão aí. Eu dedico tanto amor a essas fics que passei cinco dias seguidos escrevendo esse capítulo, em meio à loucura de fim de semestre, dormindo pouquíssimas horas por dia. Mas o fiz de coração e realmente estou muito feliz por finalmente conseguir postá-lo. Dedico-o a todas as minhas leitoras e espero que gostem tanto de lê-lo quanto eu gostei de escrevê-lo. Arrisco dizer que esse é, de longe, meu capítulo preferido até então.
Algumas referências que me influenciaram e inspiraram: os filmes A Múmia (1999) e O Retorno da Múmia (2001), e a atual série da Netflix, O Mundo Sombrio de Sabrina.
Minhas inspirações para os personagens (mas sintam se livres em imaginá-los de outra forma):
Evan Peters, como Brendon Toth;
Meghan Fox, Ísis;
Jake Gyllenhaal, Osíris;
Jessica Kennedy Parker, Sekhmet;

Enfim, espero que gostem. Boa leitura!



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09h27min

Entroncamento entre corredores

— Ela não morreu, por muito pouco foi enfraquecida – dizia Regina, andando descalça pelo chão gelado. Lacrara o fosso para impedir que as víboras saíssem, mas, segundo afirmava, estavam vivas mesmo após o fogo.

— Bom, o principal foi termos sobrevivido – Dean parou na bifurcação entre túneis – Vou por aqui, foi aqui que deixei Zoe.

— Não devíamos nos separar, Dean – contestei, argumentando que, devido às circunstâncias, era melhor que permanecêssemos juntos.

— Eu sei – retorquiu ele – Mas de nada adianta perdermos tempo passeando em grupo pelos túneis. Seria melhor que formássemos duplas. Evitem galerias e câmaras escuras, sim?

— Arre! Que loiro mandão! – fez Regina – Se é assim, vá com Grammy, Ruby. Vou atrás dos outros.

— Não, Regina, nenhum de nós devia ficar sozinho – Graham fez menção de puxá-la pela mão – Venha, vamos tomar a direita.

— Não! Sou bruxa, independente, bem-resolvida, sei me virar. Cuide bem da Ruby. Ou melhor, cuide bem do Graham, ele bem pode topar com outra víbora mutante.

Soltei um risinho. As orelhas de Grammy queimaram.

— Por que não contou a eles? – perguntou, após Regina se afastar e retomarmos a caminhada.  

— Sobre o ritual? Não acho que deviam saber, pensando melhor.

— Por quê? É egoísmo não compartilhar...

— Eu sei. Mas sinto que devo privá-los dessa informação. Qualquer pessoa que saiba demais se encontra em risco.

— Bem, você me colocou em risco, não foi?

— É – ri – Mas foi você quem perguntou.

— Hum. – ele silenciou por uns instantes. Depois me ofereceu uma expressão fraternal – O Gancho tem sorte, sabe? Não se encontra garotas valentes e astutas em qualquer esquina.

— Você encontrou a Regina!

Ele enrubesceu. Balançou a cabeça.

— Não deu certo com a Regina... Ela é meu oposto!

— Mesmo? Até onde sei, vocês são igualmente teimosos! – parei, fitando-o com um sorriso traquinas – Você sabe que ainda se gostam. Leve-a pra sair!

— Só pode estar brincando! – ele balançou a cabeça. Estava rindo, mas não senti seriedade em seu riso; eu diria que, no fundo, levava minha proposta a sério – O que foi? Ruby... Não me olhe assim...

— Assim como?

— Com essa expressão convincente!

— Bem, se estou sendo convincente, você está inclinado a pensar nisso, não? Eu e Killian podemos arranjar tudo, basta que você a convide.

— Arranjar o quê? – Gancho dobrou a esquina ao mesmo tempo que nós. Pulei para trás de susto.

— Gancho! Caramba!

— Desculpe – riu ele – Onde é que se meteram?

— Não vai querer saber – gemeu Grammy, ainda abalado pelo recente acontecimento.

— Pra começar, Dean caiu num fosso de víboras e Grammy quase foi morto. A Regina ficou toda afetada.

— Ela não ficou não! – replicou ele, suas orelhas queimando – Foi uma preocupação passageira... Ei, Gancho, que foi isso no seu braço?

Havia um enorme arranhão nele. Gancho deu de ombros.

— Zoe e as unhas dela. Enquanto os senhores fugiam dos escaravelhos, eu tive de dar suporte à ruiva. Ela cismava que fossem entrar em seus ouvidos... Em todo caso, Gold e eu descobrimos uma coisa...

Ao fim de um corredor sem saída, Gold tateava a parede. Entalhadas na pedra, figuras ornavam a mesma como um painel decorativo.

— Ah, aí estão vocês! – o mais velho girou o pescoço ante a nossa aproximação – Os escaravelhos surtiram efeito em nos separar, mas no fim das contas até que foi útil.

— De alguma forma, August atravessou essa parede – explicou Killian. Graham franziu a testa, ironizando.  

— Ah, quer dizer que Aug desencarnou e agora assombra os túneis?

— Não, idiota! É uma passagem secreta... – basicamente, Gold apertava as figuras em relevo, buscando um botão que ativasse a abertura da parede – Ele atravessou sem intenção para o outro lado. Foi rápido demais para que o seguíssemos.

— Pensamos que possa ser uma câmara secreta – Gancho continuou – Um lugar em que estejam mantendo meu irmão e as crianças.   

— Ah! – fez Grammy – Bom, mas se Aug atravessou sem intenção, porque é que vocês intencionalmente esperam que a passagem se abra?

Gold o encarou sem entender, ao que o Caçador o afastou da parede. Pedindo que Gancho o empurrasse, testou a teoria de que a passagem só se abria se alguém trombasse com ela acidentalmente. Falhou na estratégia.

— Bom raciocínio – riu o mais velho, retomando o exame atento das reentrâncias na pedra – Eu diria que estamos perdendo tempo, mas é nesse tipo de estratégia que os deuses esperam que a gente falhe.

— Vocês ainda estão aí?! – a exasperação de Zoe era perceptível até em seu cabelo: ele eriçara, como se os próprios fios se indignassem – Em algum momento August descobrirá como sair, devíamos nos concentrar em sair desse maldito labirinto.

— Não tenho pretensão de resgatar August, eu só quero ver o que há do outro lado – respondeu Gold, com a tranquilidade de quem retira cera do ouvido.

— Ninguém se importa com a segurança do meu amigo! – histericamente, Graham espalmou as mãos na parede, berrando – Aguente firme, Aug, eu irei salvá-lo!

— Ai, menos Graham... – a ruiva girou os olhos – Vem aqui, Ruby, preciso trocar uma palavra...

Ela me guiou até um corredor no qual não seríamos ouvidas. Ajeitou o cabelo, parecendo ansiosa.

— Ruby, você vai ajudar Regina com a invocação das ancestrais.

— Eu?! – apontei para mim mesma. Eu, um ser humano comum, performando feitiços de invocação? – Por quê? Você é a bruxa aqui, lembra?

— Você não precisa ser uma bruxa para invocar espíritos – ela deu um meio sorriso, divertindo-se com meu ar de surpresa – Ruby, é você! Tem que ser... enquanto eu estiver fora...

— Fora? Como assim fora?

— Vou usar minha carta, lembra? Chegou a hora... Não há outro jeito – ela piscou, seus olhos intensamente azuis fitando os meus – Na choupana na floresta, quando Anúbis me colocou aos pés do altar, me disse que meu corpo tinha de ser purificado...

Assenti, lembrando-me do que ela dissera, pouco depois de deixar a choupana. Ela fez uma pausa, que a mim pareceu um tanto dramática. Drama não combinava com Zoe. Ela me parecia um tanto...aterrorizada.

— Ruby... eu sou receptáculo de Toth!

Minha boca caiu em assombro. Não era tão chocante quanto entender o plano dos deuses, mas era inesperado.  

— Pensei que Brendon fosse receptáculo de Toth.

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

Temporariamente. Você sabe o que vai acontecer... Sabe porque Brendon é especial.

Bom, eu vinha amadurecendo minhas teorias, não tinha total certeza de que estavam corretas.

— É, eu cheguei à mesma conclusão... – continuou ela – O fato é que não posso permanecer de braços cruzados. Eu sinto isso. Sinto que é minha missão.  

— Zoe, você não vai se entregar como receptáculo!  

— É nossa única chance! Escute, eu estive pensando... Eu sou forte o bastante para resistir a Toth. Ele tomaria o domínio do meu corpo, mas eu faria uso da astúcia dele, de sua força e posição entre os deuses. Eu vou acabar com o plano, Ruby!

Por Deus, ela já soava confiante. Estava mesmo levando aquela ideia a sério.  

— Ele é um deus! – redargui – Você se deixou hipnotizar por Anúbis.

— Aquilo foi diferente! Encantamento por saliva... Receptáculos se tratam de possessão. Eu consigo resistir. Minha mente foi treinada pra isso, manipulação mental não é algo que funcione comigo – como eu não a levasse a sério, ela revirou os olhos, um tanto irritada por meu descrédito – Ruby, eu estudo magia negra desde criança... uma garota órfã, criada por tios não-bruxos tinha de saber se defender. Eu consigo! Você devia confiar em mim!

— É neles que eu não confio!  

Mentira! Meu problema era o apego. Eu não queria que Zoe se sacrificasse. Ela tinha plena consciência disso.

— Você não pode ser uma caçadora e egoísta ao mesmo tempo! Você conhece o Dean, esse é o problema dele.

— Eu não sou caçadora, Zoe. Já repeti um zilhão de vezes!

— Pra você mesma! É assim que tenta se enganar, não é? – ele me pegou pelos ombros, uma tentativa baixa de me convencer pelo meu Ego – Dean tentaria me impedir, mas estou contando com você porque sei que não vai me privar de tentar.

— Mesmo? – cruzei os braços – Estou inclinada a fazer isso!

— Ah, vamos lá, não seja teimosa! Estou depositando toda minha confiança em você.

— Zoe...

— Eu faria de qualquer forma, não preciso de sua permissão. Só estou lhe contando porque preciso que faça algo – ela deu uma pausa, na qual me encarou com tanta seriedade que eu senti meu estômago revirar – Se eu não resistir... no momento certo você vai me ferir.

— Como...  

— Você vai me ferir o suficiente pra danificar meu corpo. Isso seria distração suficiente para Toth, eu retomaria o controle da minha mente...

— Você ficou louca?!

— Ruby, prometa! Não é por mim, é pelo bem de todos.

— Não pode me jogar essa responsabilidade!

— Não seja egoísta! Você vai lidar com isso. Não importa que eu morra, é minha escolha... Não pode me privar disso, entendeu?

Assenti, embora contra a minha vontade.

— O que vai fazer?

— Vou aceitar ser receptáculo de Toth – ela disse, simplesmente, como quem se conforma com o destino que se coloca em seu caminho – Terei meu corpo purificado e serei possuída por ele. Como hospedeira, terei total acesso ao meu hóspede; compartilharemos da mesma mente e corpo, não pode ser muito difícil fazer uso das forças dele.  

— Ele vai estar no ritual, com certeza!

—  Você certamente tem um palpite de onde ele vai ser ministrado... – fiz que sim com a cabeça – Ótimo! Esteja lá pouco antes do meio-dia, para se preparar.

Assenti outra vez, meus olhos nebulados pelas lágrimas, que insistiam em ser eliminadas. Antes que eu pudesse me conter, abracei a ruiva, que retribuiu com a mesma intensidade.

— Boa sorte, Zoe!

— Não se preocupe! – ela enxugou uma lágrima, rindo – Ainda vou ser eu, só que com a mentalidade de um homem. Cuide do Dean, está bem? Ele precisa de atenção redobrada, o paspalhão.

Ela se afastou em seguida, desaparecendo à distância. Sentia como se parte de mim tivesse sido arrancada.

Por que é que o apego doía tanto?

***

10h01min

Entre painéis de Ísis

Perdida nos túneis, já não sabia mais por que caminho eu viera com Zoe. Minha única certeza era de que não passara antes por aquele corredor, cujas paredes retratavam cenas com a deusa Ísis. Não parei de modo a analisar os desenhos, atribulada por pensamentos e sentimentos mistos.

Lá pela metade do túnel, um vulto se precipitou de uma porta, me sobressaltando e se sobressaltando na manobra.

— Puta merda, eu me assustei! – Regina pôs uma mão ao coração – Por que está vagando por aí sozinha? Você por acaso viu a Zoe? E que carinha é essa?

— Zoe se entregou aos deuses...

— COMO? ELA SÓ PODE TER FICADO LOUCA!

Expliquei o receptáculo e a conversa que tivera com Zoe. Regina fez cara de quem concordava com o desejo da ruiva, embora assumisse um ar maternal protetor.

— Bem, eu compreendo o raciocínio – disse – Mas como é que ela espera que a gente vá feri-lá?  

— Um tiro, talvez?

— Pode ser. Bem que eu gostaria de atirar no Winchester, ao invés…

— Zoe disse que eu precisava ajudá-la com a invocação das ancestrais - abaixei a cabeça, sentindo-me impotente - Não sei se posso fazer muita coisa… A minha força reside na minha intuição.

— Ruby, não se subestime! A sua intuição foi de grande utilidade. Venha, vamos performar a invocação.

Ela entrou pela porta da qual saíra. Tratava-se de uma saleta na esquina do corredor. Cada canto da planta quadrada era iluminado por um fraco archote, de modo que o centro se encontrava em sombras. Regina riscara no chão um pentagrama, bem como símbolos cujo significado eu não conhecia.  Aberto no chão, encontrava-se o Grimoire.

— Zoe não me deu muitas instruções de como fazer isso - ia dizendo a Rê - Eu esperava que ela fosse me encontrar aqui para me dizer o que fazer. Acho que precisaremos de uma intuição aflorada, ao invés.

Ri, pois ela me lançava um olhar significativo.

— Vocês depositam muita confiança na minha pessoa - falei, aproximando-me do livro.

Apanhei-o. Era pesado e se encontrava aberto em uma página na qual se lia, em latim: Conjuração do Desencarnado. As instruções se referiam à invocação de espíritos, no geral. Não fazia qualquer menção à bruxas. Lia-se:

 “Qualquer que for o caso, o ministrante do feitiço precisará de três velas: brancas, caso for puro o espírito; negras, caso for maligno. Deposite as velas em uma superfície plana, formando um triângulo cuja ponta esteja voltada para o ministrante. Convém fazer uso de um pentagrama, ou símbolo de igual potência, para ornar proteção. As velas devem ser acesas no centro do ornamento, o ministrante se posicionando fora dele.

Meditando em função do morto cujo espírito deseja alçar, em um tom de voz alto e claro, dirija-se ao desencarnado fazendo menção de seu nome e sobrenome. Convém repeti-lo mais de uma vez, visando verter força à pronúncia. É desejável que se mantenha uma vibração em alto padrão de frequência; para tanto, convém que o ministrante equilibre suas energias, realizando uma limpeza aurática”.

— Bom, não é nada complicado – disse, terminando a leitura –, mas vai funcionar com as bruxas? Quero dizer, imaginei que precisássemos de um encantamento que nos provesse de força; esse me parece ser voltado ao contato com espíritos.

Regina assentiu, suspirando.

— Eu pensei o mesmo, mas foi o melhor que encontrei… Zoe deve ter usado um encantamento específico do Grimoire de família. Diria até que se tratava de magia negra – ela depositou uma vela amarela derretida no centro do pentagrama, balançando a cabeça – De qualquer forma, não estou certa de que vá funcionar. Só encontrei uma vela em um candelabro, toda a iluminação aqui é proveniente de tochas e archotes.

— Bom, o feitiço exige uma vela branca... amarela, de todo jeito, não funcionaria.

— Eu pensei que talvez a cor da vela, em si, não importasse. Se eu conseguir tornar a chama branca, pode ter o mesmo efeito. Mas não vejo como vá funcionar, sem conseguirmos formar o triângulo.   

— Aqui diz que é preciso uma limpeza aurática… Só para o ministrante ou para o auxiliar também?

— Por via das dúvidas, melhor eu purificar suas energias - ela me pegou pelas mãos; respirou fundo, fechando os olhos - Está bem, feche os olhos! Eu quero que se imagine em uma sala como a que nos encontramos, porém extremamente iluminada, cheia de uma luz branca ofuscante e tranquilizadora. Visualize uma porta branca... Agora, alcance a maçaneta e gire. Você abre a porta e adentra uma escuridão que engloba todo o ambiente, com exceção de uma orbe no centro da negritude. De que cor é a luz proveniente da orbe?

A primeira cor que me veio à cabeça foi:

— Violeta… quase azulada.

— Muito bem! Visualize essa luz deixando a orbe, preenchendo e afastando a escuridão… Tudo vai clareando, purificando em meio à essa luz… Pouco a pouco, não resta mais nenhum resquício de penumbra… Muito bem, pode abrir os olhos!

Pisquei, topando com a escuridão dos olhos de Regina. Ela sorriu abertamente, percebendo em que estado eu me encontrava. Incrivelmente, aquilo me acalmou os ânimos. Era como se uma lufada de vento arrastasse do meu coração todos os meus medos e fraquezas; me senti, outra vez, fortificada.

— Uau! – foi tudo o que consegui exclamar – Nunca pensei que fosse tão simples.

— Magia é como escovar os dentes – ela deu de ombros – Bom, não sei dizer se é a sua força combinada a minha, só sei que me sinto inspirada. Não vou usar essa vela, vamos improvisar.

Depositando o Grimoire fechado no centro do pentagrama, Regina ficou de pé a uma das pontas da estrela, onde se encontrava seu topo. Nos demos as mãos e, pouco antes de fecharmos os olhos, ela me instruiu a repetir tudo o que ela dissesse com bastante clareza.

— Espíritos do submundo, irmãs desencarnadas, vertei-nos de força! Nós invocamos o poder ancestral! Venham, irmãs de sangue, auxiliem nossa missão! Provenham-nos de bravura, guiem nossa intuição. Venham, irmãs de sangue, auxiliem nossa missão! Eu invoco proteção, invoco sabedoria, invoco um fio de sustento. Venham, irmãs de sangue, auxiliem nossa missão!

Sem abrir os olhos, ouvi as chamas dos archotes tremerem e avultarem, emitindo calor. Uma vibração no ar, semelhante a uma corrente de vento, circulava em nosso entorno.

— Eu invoco as irmãs de Salem, invoco as irmãs de Asgard… Venham as que padeceram na forca, as que queimaram nas piras acesas… Venham, irmãs de sangue, auxiliem nossa missão! Eu invoco Cora Mills, invoco Eva Blanchard! Invoco minhas primas, invoco minhas tias! Invoco meu sangue derramado! Invoco a ira das ancestrais abatidas!

O solo tremeu fracamente, mas o suficiente para nos vibrar a espinha. O ar pesou, a temperatura aumentando, conforme as chamas dançavam no ar. Abri os olhos ao sentir uma presença na sala.

De pé ao meu lado, Cora me ofereceu um sorriso.

Formando um círculo que abrangia Regina, eu e o pentagrama, entidades vertiam energia em nossa direção. De mãos erguidas, ministravam luz e acalento, todas sorrindo afetuosamente. Eram cerca de dez ou doze mulheres, todas trajando mantos brilhantes, cada um de uma cor. Opacas, se assemelhavam a fantasmas, mas ao mesmo tempo eram nítidas como um reflexo num lago.

— Obrigada! – agradeceu Regina, vertendo lágrimas. Descobriu Cora parada atrás de nós e transfigurou o rosto numa careta dolorida – Mãe… eu sinto muito… Você me ensinou muitas coisas…

Cora apenas sorriu. Não parecia ser provida de emoções, mas seus olhos brilhavam como se estivessem marejados. Ela trajava um manto azul-cobalto e, pela primeira vez na vida, vi seus cabelos soltos formando cachos sobre os ombros.

— Ela não pode falar? - perguntei em um sussurro.

— Talvez ela não queira ou não esteja apta… A fala é uma condição humana; ela agora é um ser desencarnado.

E será que apenas espíritos presos à Terra conservavam a capacidade de comunicação?

— Tia Eva – Regina se dirigiu a uma mulher de aparência jovem, volumosos cabelos cacheados e maçãs do rosto salientes; tinha a mesma expressão doce de Branca: quase pareciam irmãs –, Mary precisa da sua presença. Por favor, conforte-a, permaneça ao lado dela.

Eva sorriu e prestou um aceno de cabeça, desaparecendo em um brilho prateado. Regina soltou minhas mãos. Apanhou o Grimoire.

— Vocês podem nos guiar? Podem nos mostrar uma solução?   

As presenças começaram a deixar a sala, Regina e eu seguindo-as de perto. Nos túneis, elas formaram duas filas indianas, como correntes de proteção. Cora vinha por último, no meio do corredor. Caminhamos alguns metros, até toparmos com Dean, Graham e August, que pareciam estar no meio de uma discussão.

— Ora essa, não fui eu quem passou metade do tempo desacordado! – bradava Dean com insolência. Ele nos avistou e mudou a expressão carrancuda para uma demonstração de alívio – Mas onde foi que vocês se meteram?

Graham girou no lugar para ver quem se aproximava. Sorriu quando topou comigo e Regina.

— Eu disse que elas estavam bem!

— Cadê a ruiva?! – Dean procurou Zoe com o olhar, mirando o final do corredor como se esperasse que ela viesse atrás de nós.

— Bancando a heroína! – respondeu Regina – Não se preocupe, Winchester, Zoe não precisa de um cão-de-guarda!

— Cadê ela? – pondo-se cara-a-cara com Regina, o loiro mediu forças com ela. Imediatamente, uma das ancestrais se aproximou, fazendo menção de intervir. Não foi preciso. Estremecendo, Dean arregalou os olhos, sabendo do que se tratava – Quê isso? Quem está aí?

— Você não vê? – perguntei, elevando as sobrancelhas.

— Eu vejo! – Gancho se aproximava, seguido de perto por Gold. Encarando bruxa por bruxa, ele avistou a última delas – Cora?! O que diabos vocês fizeram?

— Cora está aí?! – Graham arregalou os olhos, esquadrinhando o ambiente como se esperasse topar com ela – Por que só o Gancho consegue vê-la?

— Talvez eles tenham assuntos inacabados – sugeriu Gold, as mãos à frente do corpo, narinas infladas. É, ele não era lá muito partidário de Cora, ele mesmo.

— Aproveitando sua estadia no inferno? – Killian ofereceu a ela um sorriso cruel, que foi recíproco. Deslizando pelo corredor, ela parou ao lado de Graham e assoprou em seu ouvido. O suficiente pra que ele emitisse um guincho aterrorizado, agarrando-se a August.

— SAIA, ESPÍRITO IMUNDO!

Cora sorriu em ar endiabrado quando Grammy ofereceu a ela os indicadores formando uma cruz. Refreei uma risada, ao contrário de Regina, que gargalhou em alto e bom som.

— Ela está morta, seu boboca, devia ter medo enquanto era viva. Comporte-se, mãe.

— Pelo amor de Deus! Invocam assombrações e permitem que Zoe aja estupidamente. O que vocês têm na cabeça?!

— Cale a boca, Winchester! São entidades bruxas, não assombrações.

— Ah! - fez Gold - Boa jogada!

— Elas estão nos guiando… Saiam do caminho e mantenham-se em silêncio.

Nós seguimos pelo corredor, protegidos pela marcha das bruxas. Gancho entrelaçou uma mão à minha, enquanto Graham me deu um braço.

— Não que eu esteja com medo – sussurrou ele, olhando para os lados –, mas sua presença me tranquiliza.

Gancho soltou um risinho.

— O que é que você espera, Grammy? Não é como se um tigre fosse saltar sobre nós…

Gancho devia aprender a calar a boca…

— Quê isso? – à frente do grupo, August parara quando o eco de batidas percorreu os túneis.

— Não parem! – Regina se adiantou em empurrar August, tomando a frente – Nada pode nos ferir!

— Como é que você pode ter tanta certeza? - questionou Pinóquio, hesitante e desconfiado.

— Não tenho! Eu apenas sei.

— Hã?       

Ao nosso redor, as bruxas pararam. Regina achou conveniente cessar a caminhada, aguardando. Cascos reverberaram no assoalho, seguidos do som de rodas preenchendo a vaziez dos túneis. Dali a pouco fomos surpreendidos pela visão de Ísis em uma biga, uma antiga carruagem de guerra de duas rodas. Ricamente vestida, Ísis açoitava com um chicote os dois cavalos que a puxavam. Eram adornados por acessórios e plumagens dourados, assim como a biga, que ornava coloridos entalhes artísticos.

Se deslocando a toda velocidade, ela guiou os cavalos em nossa direção, rompendo o cordão de proteção criado pelas bruxas. Empurrei Graham para o lado, enquanto Gancho saltava para fora do caminho. Nos esprememos contra as paredes, mas não era necessário: atirando contra a deusa, August e Gold forçaram os cavalos a pararem. Erguendo-se nas patas, eles caíram com estrépito, derrubando Ísis na manobra. Ela se levantou, irada, ostentando um cetro de ouro.

— Vocês realmente acharam que pudessem me derrotar com isso? Eu, a Grande Ísis, não sou páreo para armas mortais!

No segundo seguinte, Gold e August eram arremessados pela deusa. Aterrissaram um por cima do outro, inconscientes e em posições estranhas. Regina mediu forças com Ísis, performando feitiços de modo a enfraquecê-la. Estouros e rastros de luz pipocaram pelo ar, as ancestrais que haviam restado acrescentando forças à bruxa.  

Dean insistia em atirar contra Ísis, porém sem produzir grandes efeitos: dois tiros lhe acertaram os membros, mas ela era inabalável. Uma a uma, as ancestrais foram fraquejando, desaparecendo no ar. Quando Cora foi a última a sumir, Regina se encontrava no limite de suas forças. Sangrando pelo nariz, por fim caiu de joelhos. Recusando-se a enfrentar uma oponente mais fraca, Ísis se dirigiu ao resto de nós.

— Ora, me parece um tanto injusto que enfrentem-me de igual para igual quando estou em vantagem – ela sorriu de lado, girando o cetro duas vezes: ele virou numa longa e afiada espada, igualmente dourada. Apontando-a para Dean, desafiou-o num duelo, transformando seu revólver em uma lâmina de igual magnitude – Vamos, garoto, mostre-me do que é capaz!  

Cortando o ar com velocidade, as espadas começaram a se atracar. Dean, obviamente, não estava habituado àquele tipo de embate. Foi rapidamente derrotado, Ísis derrubando sua espada. Ela agarrou seu rosto, pinçando suas bochechas com o indicador e o dedão.

— Você é inútil! Mas eu bem poderia usufruir de seu corpo – salivou ela, sorrindo diabolicamente.

Aproximando-se furtivamente, Gancho fez menção de apanhar a espada que Dean deixara cair. Foi pego em meio à manobra, Ísis largando do loiro para agarrar Killian pelo pescoço. Ela o ergueu com o esforço de um único braço, atirando-o de encontro à parede. Dean tentou golpeá-la nas costas, mas, ágil, ela o socou no estômago com o cotovelo; ele se dobrou ao meio, arfando.

Grammy partiu para cima da mulher, inutilmente agarrando seus cabelos; ela meneou a espada no ar, visando acertar o tronco do homem. Nesse momento, porém, me atirei sobre ela, derrubando-a. Nos amontoando sobre a deusa, tentamos exaurir suas forças; porém, astuta, ela estalou um dedo.

— Eu tentei ser justa, mas vocês são corruptos! – cuspiu ela, bradando algo em egípcio antigo.

— Justiça não inspira sobrevivência – retrucou Dean, torcendo seu braço, o que, é claro, não surtia efeito em lhe causar dor.

— Corram! – berrou Regina, cambaleando com o Grimoire em mãos.

— O QUE FOI AGORA? – o Winchester chegara ao limite de sua paciência; a cada minuto na pirâmide, fugir era sempre a melhor opção. E digamos que a covardia de fugir com o rabo entre as pernas não era algo que agradasse ao loiro.

— Minha guarda pessoal ficará especialmente feliz em dissecá-los! – a espada de Ísis verteu novamente em cetro. Ela nos cegou com a luz dourada que provinha do mesmo – Matem todos!

Corri cegamente sem ter noção do que estávamos para enfrentar. O ar subitamente foi invadido por um aroma cadavérico, como um bafo apodrecido de cem mortos. Trombei com August, que acabara de se erguer. Inconsciente, Gold era arrastado por Dean e Graham.

— Que adorável! – gemeu Pinóquio, agarrando as pernas de Gold.

Éramos perseguidos por um exército de múmias. Ressecadas, se tratavam de puro osso e bandagens úmidas. Embora fossem cadáveres, não eram limitadas por seu estado de decomposição. Tão velozes quanto nós, elas portavam adagas e lanças, mas nós portávamos Regina. A Rainha as combateu com fogo, derrubando metade delas de uma só vez. Apanhei uma lança que caíra, mirei na cabeça de uma, mas acabei derrubando três, quando a primeira caiu sobre outras duas.

— Que patéticas! - Regina debochou - Isso é tudo o que ela pode fazer?  

Ofendida, uma múmia relativamente mais nova saltou sobre as costas da Rainha. Ela se defendeu com o Grimoire, acertando-o em cheio na cabeça da criatura, que, decapitada, ainda tentou persegui-la cegamente; atropelada pelas outras, porém, acabou abatida.  

Dobramos uma esquina, apenas para descobrir que outro exército se aproximava. Retomando a consciência, Gold se boquiabriu para o cenário absurdo em que nos encontrávamos. Sem armas nem meios de nos defender, fomos obrigados a partir para a pancadaria. Chegava a ser engraçado que mortos e vivos estivessem em combate: ao menos, havia equilíbrio entre ambas as partes.

Mas em se tratando de deuses e magia, equilíbrio não podia ser uma vertente. Regenerando as múmias abatidas, Ísis retomara seu lugar à biga. Fomos cercados pelo exército e só então me dei conta do propósito daquela luta: não se tratava de nos matar com adagas, mas sim de extenuar nossa energia. Não importava quantas múmias derrotássemos, Ísis incansavelmente as regeneraria. Era assim que ela nos subjulgava ao seu poder: brincava conosco, usando de sua posição de força.  

— Me encanta a persistência humana – comentou ela, gloriosamente de pé em meio ao seu exército – Eu certamente farei bastante proveito de vocês, mortais.

A essa altura, alguns de nós caíam em exaustão. Regina não mais suportava as dores, seu corpo falhando em prosseguir. Ela desabou e foi agarrada por várias múmias. Sem a resistência da Rainha, falhamos em manter a nossa. Um a um, fomos levados pelas múmias. Quando eles se amontoaram por cima de mim, August e eu éramos os últimos a lutar. Agarrada por dedos longos e ásperos, o vi ser engolido pela massa de cadáveres.

Fechei os olhos, extremamente exausta, e me deixei levar para o que viesse em seguida.  

***

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Chão áspero, espaço apertado e escuro            

Me movi, meus braços e pernas dormentes pela posição em que me encontrava deitada. Fui de encontro a algo sólido com a cabeça, meu nariz se chocando com o que estava à minha frente. Tateei e descobri ser uma parede. Sentando-me, percebi que não me encontrava amarrada; mantida em cativeiro em um ambiente escuro, apenas pude depreender que se tratava de um sala ou fosso de solo arenoso.

Funguei. O ar cheirava a mofo. Agora eu compreendia o que é que Damon queria dizer com “mofo de sepultura”. Um odor que pinicava as narinas, incomodando com seu aspecto de lodo malcheiroso e envelhecido. Apertei as narinas para conter um espirro, mas ele acabou saindo com um ruído estridente.

— Ruby? – chamou Regina. .

— Sim! Você está bem, Regina?

— Se estar bem é estar num fosso escuro e coalhado de ratos, então estou ótima!

Ah, mas que beleza! Era tudo de que eu precisava... Pensei ter ouvido guinchos, mas acho que se tratava de imaginação.

— Onde estamos? – perguntei, forçando os olhos para tentar divisar alguma coisa na escuridão, mas ela se encontrava tão presente que eu parecia estar cega.

— E isso importa? Estamos vivos, até onde sei.  

— E os outros? – me pus de joelhos e engatinhei em direção à voz. Precisava de contato físico, a escuridão me incutia arrepios.

— Não sei… Acho que nos separaram para evitar uma rebelião. Depois que as múmias me agarraram, só vi uma sucessão de túneis e então apaguei.

— Onde é que você está? – tateava sem topar com algo sólido. Ela ergueu o braço e me assustei quando seus dedos roçaram a minha bochecha – Que mão gelada!

— Eu estou morta por fora – resmungou ela, apoiando a cabeça em meu ombro - Ruby, o que é que vamos fazer?

— Zoe irá nos salvar… não é? Ela não é manipulável… Ela consegue…

— É… Mas é claro…

Silêncio. Nossos corações batiam em ritmos diferentes, cada qual concentrada em sua própria respiração.

— Rê…

— Hum?

— Você perdoou a Cora?

— Não sei… acho que sim… Acho… Acho que eu tenho pena dela… Mais pena do que raiva…

Funguei.

— E quanto a Grammy?

— O que tem?

— Você o ama?

— Ruby! – imaginei que ela revirasse os olhos – Se quer performar um questionário sobre a minha vida, não o faça enquanto nos encontramos num calabouço.

— Ama?

— É claro! Ele é um de meus melhores amigos, o idiota.

— Não quis dizer como amigo…

— Meu Deus… Quer me perguntar isso outra hora? Eu sequer estou sabendo o meu próprio nome.

Ri, ainda que a circunstância não fosse propícia ao bom humor. Um ferrolho se moveu, a porta deslizando para o lado. Alguém entrou e agarrou Regina, erguendo-a. Antes que eu tivesse tempo de reagir, um par de braços me levantou de um arrastão. Fui empurrada pela escuridão, as mãos estendidas a frente de meu corpo, temendo topar com algo. Pela brusca mudança de temperatura, eu compreendi que atravessamos um dos túneis, para então alcançar uma das galerias.

— Ai! – Regina foi para o chão com um baque – Que estupidez!

As mãos me pressionaram para baixo, afastando-se em seguida. Houve mais movimentação pelas proximidades, outras duas pessoas sendo empurradas para o assoalho. Alguém aterrissou em cima de mim sem cerimônia.

— Ei! Tenha modos! - reclamou, em alto e bom som.

— Dean!

— Ruby? Ainda bem que eu caí no macio…

— Tire a mão daí! - estapeei seus dedinhos pervertidos, quando tocaram minha coxa.

— Senhor, eu sou muito jovem pra morrer! Ai! Ai! Não precisa me tratar com tanto descaso!

— Graham, por que tão escandaloso?

— Regina! – ele tropeçou antes de cair – Como é bom ouvir sua voz!

— Ô, sai pra lá com essa boca! – Dean empurrou Grammy, quando este confundiu a disposição dos corpos.

— Saiam de cima de mim!

— CALEM-SE! – alguém berrou. Parecia-se com a voz de Zoe, mas eu não tinha muita certeza. Soava mais grave do que de costume.

— Que gentinha rude… - murmurou Regina.

Novos passos se aproximaram, outros corpos caindo sobre nós. Killian veio acompanhado de August, e Gold foi trazido por último. Nos apertamos uns aos outros, num abraço reconfortante. Em murmúrios apressados, alguns se perguntavam o que estava para acontecer e davam pela falta de Zoe. Eu nada disse, aterrorizada demais para sequer pensar em revelar o que sabia. Não devia me arriscar a ser morta por ter informações demais.

— Eu trouxe todos, como você requisitou – disse uma voz masculina desconhecida.

— Ótimo! Ele quer que eles presenciem o procedimento – respondeu outra voz desconhecida, essa feminina – E minha irmã?

— Banhando-se. Estava com uma aparência horrível! Eu disse a ela que uma deusa não deve se portar com desleixo.  

— Perfeito! Toth vem trazendo a última testemunha. Convém nos prepararmos também.

Quando as duas vozes se afastaram, Dean comentou, alto o suficiente para que todo o grupo ouvisse.

— Deve ser a Zoe. Por que será que ela ficou por último?

Será que ela havia sido rejeitada como receptáculo? Não tivemos tempo de teorizar, pois quem eles chamavam de testemunha logo caiu por cima de Graham.

— Ai! Cuidado aí!

— Graham? É você?

— Liam!

Não houve comoção maior do que o reencontro dos Jones. Em prantos, os irmãos se abraçaram. Liam dissera estar bem, mas encontrava-se abatido, sua voz extremamente enfraquecida.

— Eles não me disseram nada... Fiquei o tempo todo perguntando da minha filha, mas eles me disseram pra me calar e não fazer perguntas. Me trancafiaram em um poço, de onde eu não via nem ouvia nada.

— Como foi que o sequestraram? – perguntou Gold, fungando constantemente.

— Só me lembro de ter ido com um policial. Ele... me beijou... No segundo seguinte, eu acordei na escuridão do poço.

— Manipulação por saliva – murmurou Regina – Será que foi assim com as crianças?

— EU JÁ NÃO MANDEI SE CALAREM?! – a voz grave retornou, soando idêntica ao tom de voz de Zoe. Dean notou isso também, porque chamou por seu nome, no entanto sem obter resposta – E então, que horas são?

— Faltam poucos minutos – falou uma voz melodiosa, feito um ronronar de gato. Sekhmet— Minhas forças estão se extirpando, não sei quanto mais poderei nos prover.

— Você fez mais do que o suficiente, Sekh. Recolha a praga, deixe que nos encarem.

Dois segundos depois, chamas tremularam por todo o espaço, preenchendo o ar de fumaça. Pisquei, a luz repentina me agredindo as pupilas. Como imaginara, nos encontrávamos à galeria principal da pirâmide, a que tinha passagem para a Câmara do Rei. Seu teto alto era sustentado por uma série de colunas, todas decoradas por inscrições hieroglíficas. Mais arejada do que as outras, possuía uma abertura retangular na parte superior da parede lateral; a luz do sol entrava por ela e, refletindo em um espelho estratégicamente preso ao teto, incindia no centro da sala, próximo a uma mesa quadrada de pedra.   

De pé à nossa frente, Zoe nos encarava, um sorriso perverso brincando em seu rosto. Mais atraente do que de costume, ela travaja outras roupas: um vestido branco de linho plissado, que lhe chegava até os pés, e sandálias com correias de ouro; à cabeça, uma peruca preta, tipicamente egípcia, encimada por uma tiara em formato de cobra. Os olhos da cobra eram dois diamantes, que brilhavam à luz dos archotes. Ela também portava joias: braceletes de ouro, um pingente de lápis-lazuli ao pescoço e brincos de ágata. De olhos delineados, suas íris azuis se destacavam.

Realmente, fazia jus ao que dissera na choupana, sobre ser uma rainha.

— Zoe?! – surpreendeu-se Dean, olhando-a de cima a baixo. Seu queixo caiu, assim como o de todo mundo; ele encontrou dificuldade em fechar a boca – Que diabos está fazendo?!

— Sua Zoe se encontra fora de alcance, no momento – Zoe, que não era mais Zoe, cruzou as mãos em frente ao corpo; sua voz, embora tivesse a mesma entonação, era pronunciada com mais gravidade, como se Zoe tivesse tomado hormônios masculinos – Farei companhia a ela por uma temporada.

— Você virou homem?!  

— Ela me cedeu o uso de seu corpo, de boa vontade.

— Mas... você é homem?! Num corpo feminino?

Ela torceu o nariz, demonstrando irritação. Se fosse Zoe, já teria socado Dean e feito um escândalo.

— A ideia o incomoda? Pois, a mim, me agrada muito este corpo – ela alisou a própria cintura, como quem se auto-aprecia – Não me importa que seja feminino, eu o venero... Agora, apresento-lhes Sekhmet! Mas vocês já tiveram a oportunidade de se conhecer, não?

Uma moça pequena, de olhos pequenos e nariz arrebitado se aproximou. Tinha a pele parda bronzeada e vestia-se exatamente como Zoe; a diferença é que seu vestido era um tanto mais decotado, ornado por franjas em um dos ombros e quase transparente, de tão leve o tecido.

— Ora, se não é quem decifrou a minha esfinge! – ela fitou August com seus olhos pequenos de felino, sorrindo sedutoramente – A vida dele nós pouparemos: farei desse corpo a minha morada.

Pinóquio estremeceu, não sei dizer se por excitação ou amedrontamento. Ela, em seguida, voltou-se para mim.

— Sábia senhora! Você soube me nomear quando ninguém o sabia. A sua vida eu deixarei imperturbável, em sinal de respeito. Quanto aos outros – ela produziu um rangido felino no fundo da garganta –, bem, quem poderá dizer? Que seja feita a vontade Dele.    

— Dele quem? – questionou Dean, desconfiado.

— Do Grande Poderoso! Aquele cujo nome é sagrado

— Deus?! 

O soar de um gongo repercutiu pela sala, vibrando em meu peito. Toth o tocara e Sekhmet se apressou em portar-se ao lado dele, próxima à mesa de pedra.

Tambores começaram a tocar, acompanhados pelo som de sistros. Os sistros eram chocalos de bronze que, produzindo sons rítmicos, ecoavam no ar uma sensação de êxtase. Tocando os instrumentos, os deuses adentravam a galeria em procissão, a deusa Ísis à frente, portando num relicário a cruz ansata. Atrás dela vinham sua irmã Néfts e Hator, a deusa-vaca. Depois delas vinha Brendon e depois de Brendon vinham Bastet, a deusa-gato e Khepri, o deus-escaravelho. Deuses que eu não conhecia vinham em seguida e, para fechar a alegoria, vinham sete crianças: Clem entre elas.     

Todos os deuses trajavam vestes parecidas com as de Toth e Sekhmet, ricamente enfeitados e portando as respectivas máscaras animais que os representavam. Toth e Sekhmet colocaram suas máscaras. Ísis era a única que não tinha uma, pois ornava na cabeça uma coroa de chifres curvados, que conservavam um orbe azul-turquesa em seu centro. Brendon, por sua vez, também não usava máscara e, ao contrário dos outros, vestia unicamente um manto negro ao estilo de robe. Sua cabeça fora raspada e seus olhos delineados por Kohl, o cosmético egípcio.

As crianças, feito anjos, usavam mantos brancos e pareciam em estado de transe, de olhares fixos e movimentos robotizados.  

A procissão seguiu até a mesa de pedra, a música cessando assim que a alcançaram. As sete crianças se colocaram ao redor de uma bacia de mármore, depositada ao norte da mesa. Ísis se colocou ao sul, enquanto o restante dos deuses formou um círculo ao redor da mesa. Ao meu lado, meus amigos se encontravam confusos. Gancho segurava Liam, impedindo que tentasse ir ao encontro de Clem.

A deusa feiticeira nos ofereceu um sorriso diabólico, intensamente provido de orgulho. Falando em alto e bom som, voltou as palmas das mãos em direção à terra, bradando:

— Eu, a Grande Ísis, reúno em solo sagrado meu panteão: sobre a mesa sagrada e sob a luz do Grande Rá, performo em meu nome o Ritual de Ascenção – as chamas tremularam e ela ofereceu uma mão a Brendon – Aqui, neste solo, de pé adentra O Receptáculo. Ele, que proverá um corpo ao Grande Senhor dos Grandes, eu convido a deitar-se à mesa sagrada.

Brendon primeiramente se sentou à mesa quadrada, deitando-se depois com as mãos cruzadas e os dedos sobre os ombros: a posição mortuária das múmias. Sua cabeça se encontrava para o norte, enquanto os pés apontavam para o sul. Ísis deu a volta à mesa, posicionando-se ao norte.

— Hoje, enquanto durar o Samhain, estão abertas as vias entre mundos. Nós, Grandes Manipuladores do Cosmos, nos dirigimos ao Grande Senhor dos Grandes. Nós invocamos Tua Presença, erguendo a ti os nossos braços. Venha, Senhor dos Senhores, aceite como perdão nosso sangue – cada um dos deuses, munido de uma adaga dourada, produziu um rasgo profundo na palma da mão esquerda. Permitindo que escorresse o sangue, eles voltaram a palma para baixo, em direção à terra – Nós o oferecemos sete gotas de sangue mortal, preço que pagamos pela sua ausência. Beba dessas gotas, Ó Senhor dos Senhores, e nos atenda com indulgência.

Pingando ao chão, as gotas foram absorvidas, desaparecendo instantaneamente. Ísis se voltou para as crianças, ainda portando a adaga. Erguendo-se no mesmo momento, Liam saiu de seu lugar; Killian o agarrou pela camisa, mas Ísis já se adiantava em forçá-lo a se sentar. Preso ao chão como se suas pernas fossem de pedra, o Jones mais velho nada pode fazer além de assistir, resignado, a deusa-bruxa rasgar a mão das crianças com a adaga.

 - Aceite, ó Senhor dos Senhores, o sangue puro que nós o oferecemos. De espíritos inocentes nutriremos Teu Corpo, beba da energia vital, encontrando o seu sustento – as sete crianças vertiam seu sangue na bacia de pedra, completamente alheias à dor e a tudo mais que estava acontecendo. Apanhando a bacia, Ísis a ergueu acima de Brendon, virando, após, seu conteúdo na boca do rapaz – Seu Receptáculo sorve Sua Força. Aceite-o, Ó Grande dos Grandes, Senhor dos Senhores. Possua o que é seu por direito!

Agora, Ísis subira sobre o tronco de Brendon, uma perna de cada lado de seu corpo. Os deuses, ajoelhando-se, encostaram suas testas ao chão, em posição de respeito e submissão. Erguendo no ar a adaga, Ísis bradou para o ar, pouco antes de a luz do sol se mover.

— Senhor dos Senhores, Grande dos Grandes, eu sacrifico Seu Receptáculo em seu nome! Poderoso Geb, Senhor da Terra, receba este sacríficio! Eu lhe ofereço esta alma em uma barganha: honre a promessa e liberte a alma daquele que aprisiona – descendo a adaga, Ísis golpeou Brendon no abdômen; ele agonizou por uns instantes, até pender a cabeça para o lado, caindo morto. Seu sangue empapou suas vestes quando Ísis puxou a adaga.

Após alguns segundos de intenso silêncio, todas as tochas se apagaram de um só sopro, o solo tremulando bruscamente, nos desestabilizando. Ísis pulou para o chão, aguardando. Foi então que, seguindo o movimento do Sol no céu, o rastro de luz que entrava pela abertura na parede incindiu sobre o corpo morto de Brendon.

— Chegou a hora, Grande Senhor dos Grandes! Erga-se das profundezas das trevas! Eu o invoco, clamo seu nome em direção à luz! Que o Grande Rá guie seu caminho! EU O INVOCO, SENHOR DOS SENHORES! ERGA-SE EM NOSSO CHAMADO! DAS TREVAS PARA A LUZ, DA TUMBA PARA O CORPO, EU INVOCO SETH, O SENHOR DO CAOS!

Os gritos de Ísis ecoaram ampliados pelas paredes de pedra. Houve um brilho dourado sobre o corpo de Brendon, tocado pela luz do Sol. Logo em seguida, uma fumaça densa, negra e espiralada se ergueu do solo de um rompante, preenchendo todo o ar que nos cercava. Com um ruído semelhante ao de uma sucção, a fumaça adentrou o cadáver de Brendon, desaparecendo dentro do mesmo.

O sangue do rapaz foi reabsorvido pelo corpo, que moveu os pés e as mãos, abrindo os olhos em seguida. Erguendo-se da mesa de pedra, Seth desceu para o chão, todos os deuses se curvando aos seus pés.

 - Irmão! – Ísis lhe tomou uma das mãos, na qual depositou um beijo. Seth dilatou as narinas para o ato, encarando com asco a irmã – Seth! Meu querido, Seth!

— Querido? – repetiu ele, sua voz tão fria que parecia uma nevasca se deslocando de dentro do corpo – Não fui querido enquanto descartável, fui... irmã?  

— Meu irmão, tende misericórdia!

Ele se livrou do toque de Ísis. Caminhou por entre os outros deuses que, amedrontados e ainda em posição de humilhação, não se atreviam a encará-lo.

— Ora, ora, como se atrevem? Vocês todos vindo testemunhar a minha ascenção? Belo trabalho em reunir meus inimigos, irmã. A que devo as honras de tal recepção?

Se Seth berrasse, não soaria tão tenebroso. Seu tom de voz calmo era o que nos que ministrava medo. Ele parecia um psicótico prestes a cometer uma chacina.

— São tempos sombrios, Seth! – respondeu Ísis, fitando-o bravamente – Invoquei-o porque só tu pode recobrar o que é nosso por direito.

— Nosso? E esse nosso me abrange? Porque, em todos esses anos, eu me encontrei completamente só na prisão de Geb. E agora você, irmã Ísis, vem me dizer que eu devo recobrar o que é nosso?   

Ela se manteve muda, sem argumentos. Seth riu, tão friamente que diria-se que estava sendo dissimulado.

— Outra vez, sem palavras... Da última vez que esteve desprovida de fala, tentava me explicar como é que dera a luz enquanto Osíris se encontrava morto. E por falar nisso, não vejo entre meus entes o meu querido irmão. O que foi que aconteceu? Ele por um acaso se encontra outra vez morto ou preferiu covardemente me evitar?

— Eu o enviei com Hórus para uma prisão provisória – retrucou ela – Nem um nem outro se encontra disponível para o seu divertimento.

— Ah, então é disso que se trata... Uma prisão, não para puni-los, mas para me privar de matá-los – ele se afastou de Ísis, dirigiu-se aos deuses – Ergam-se, mostrem suas faces!

Todos eles despiram as máscaras. Reconheci entre eles os rapazes da van que nos dera carona até o parque; o que me assustara com a fantasia de palhaço e o que se travestia de zumbi. Toth foi um dos poucos a sustentar o olhar frio de Seth. Todos os outros abaixaram a cabeça, envergonhados ou com medo.

— Por que é que Anúbis não se encontra entre vós?

— Seu receptáculo foi destruído – Sekhmet se orgulhou em dizer, livre de qualquer culpa – Ele me irritou, então o retirei da jogada.

Seth riu levemente.

— Sekhmet, sempre raivosa – ele contemplou as crianças – Digam-me, que ano é?  

— Dois mil e trinta e dois depois de Cristo – disse Toth, se adiantando em apanhar pergaminhos enrolados, como se quisesse mostrar a Seth o atual calendário.

Cristo? Quem é Cristo?

— Foi o filho de Deus, que passou pela terra muito tempo depois de sua queda, Senhor.

Deus? Quem é Deus? Não é Rá o Grande Senhor do Cosmo?

— Não mais! – respondeu Ísis – Nós decaímos, irmão. Fomos colocados à posição de divindades mitológicas. Não existimos, em outras palavras.

Parecendo ter levado uma bofetada, Seth transfigurou a cara em uma expressão desacreditada.

— Como foi que se deixaram cair nessa situação? Vocês eram tudo o que importava! Nós éramos tudo o que importava.   

— O mundo mudou... O ser humano depositou sua fé em outras divindades.

— NÓS DEVÍAMOS SER AS ÚNICAS! – berrou ele, indo de um lado para o outro, seu robe deslizando pelo chão – Vocês se deixaram abater!

Nenhum dos deuses se atreveu a encará-lo, com exceção de Ísis, cuja coroa de orbe emitia um brilho azulado.

— Mas é claro que deixamos... Fomos subjulgados por quem se proclama Todo Poderoso. De lá do seu exílio em Geb, não testemunhou as humilhações a que fomos submetidos. Julgados pela ira de Deus, rebaixados à míseras lendas egípcias.

Conforme Ísis seguramente falava, Seth ia transfigurando sua expressão. Passou de irado a compreensivo, então outra vez furioso. Toth, de modo a confirmar os argumentos de Ísis, acrescentou:

— Ele humilhou o povo egípcio com pragas, Senhor. O próprio Ramsés II caiu em posição de fraqueza: viu cair morto seu primogênito e todos os primeiros filhos do Egito.  

Sekhmet também falou, colocando-se entre Toth e Ísis, de modo a acrescentar-lhes força moral.

— Ele maculou nosso sagrado Nilo, amaldiçoou o nosso povo, nos desproviu de sustento. Nem mesmo Rá saiu ileso, Sua Gloriosa Luz vertida em trevas. Caindo o Faraó, caímos todos.

— Poucos crentes ainda depositam sua fé em nós, como o receptáculo que de boa fé o comporta – Toth apontou para Seth respeitosamente, a cruz ansata sobre a palma aberta – Nós o ascendemos porque acreditamos na Sua vitória sobre Deus e seu batalhão.

Seth expirou lentamente, sua boca se crispando num sorriso apertado. Ele acenou com a cabeça, demonstrando respeito aos três que o encaravam de pé.

— Se esse Deus se encontra no topo, como haverei de destroná-lo, estando enfraquecido por milênios de subjulgação?

— Ah, irmão, Teu Rigor sempre foi Tua Força – Ísis ergueu as mãos para tocar-lhe o rosto, mas bruscamente ele a afastou – Nós já demos início ao processo, anos e anos de planejamento exaustivo. Sekhmet mostrou-se bem-sucedida em seu poder de tirania: pelas últimas horas, soltamos nesta zona de poder as mesmas pragas a que Deus nos submeteu.

—  Provida de forças, serei capaz de direcionar as pragas por todo o globo – Sekhmet sorriu de lado, confiante – Conjuntando as nossas forças, estaremos aptos a verter nossa energia vital em Sua Causa.

— E de bom grado vocês o farão por mim? – Seth ainda se encontrava relutante em confiar nas palavras que ouvia, embora por fora se portasse como quem acreditava – O que é que, possivelmente, desejam em troca?

— Sustento! – respondeu Ísis – Abandonar a prática canibal, ir além do que esses corpos mortais podem nos oferecer.

Quatro deuses vinham trazendo o sarcófago que víramos anteriormente na câmara ao lado. Depositaram-no aos pés de Seth, que arqueou para Ísis uma sobrancelha.

— Neste sarcófago jaz Teu antigo corpo – esclareceu ela, passando uma mão pela tampa – Uma vez provido de forças, será capaz de regenerar-se sem necessitar outra vez um receptáculo. Então, um a um, nos supriremos das forças mortais, recuperando nossa posição em seus altares.

— Tuas palavras são providas de argumentos, irmã... mas não vejo como eu possa resgatá-la de Teu definhamento. Fosse assim tão fácil, não me arrastaria das trevas para a luz. Afinal, não foi tu, Ísis, quem colocou contra mim meu sobrinho? Não foi tu quem tramou minha queda? Quem tramou a ascenção de Hórus como Faraó? E não foi tu quem preferiu Osíris, ao invés do Seth que a venerava?

Inerte e silenciosa, Ísis deixava pender os braços às laterais do corpo, um sinal de fragilidade e reconhecimento de seus atos. Por um momento, os dois irmãos travaram um embate mental; o deus, embora se encontrando mais fraco, dominando a irmã por manipulação emocional.

— Fosse assim tão fácil, não me arrastaria das trevas para a luz – repetiu ele, num sopro que era quase um sussurro – Devo interpretar Teu silêncio como uma confirmação – ele sorriu, orgulhoso pelo efeito nocivo de suas palavras – E por que é, eu me pergunto, que durante milênios vocês se prostraram? Por que é que, mais de dois mil anos após o Cristo, resolveram resgatar-me de meu exílio?  

Dando apoio à honra de Ísis, Toth se pronunciou:

— O Senhor há de compreender que não foram propícias as circunstâncias. Durante séculos nos quedamos isolados e por décadas eu caminhei entre os homens, à procura daquele que seria Teu Receptáculo. Enfim, após milênios, apenas agora fomos capazes de performar a Vossa Ressurreição.

— E foi Tua a ideia, sábio Toth? – ele comprimiu os lábios num sorriso, ante a confirmação do outro – Sendo assim, será meu Sumo Sacerdote, enquanto tu, irmã Ísis, detém o meu perdão.

Ela se jogou aos pés de Seth de joelhos, depositando numerosos beijos em suas mãos. Ele a ergueu de sua posição submissa, delicadamente tomando as mãos envoltas em joias entre as suas mãos.

— Irmão, eu aprecio a sua misericórdia...

— No entanto, irmã, meu perdão não é sinal de clemência. Eu pouparei Teu Receptáculo, ascenderei Teu poder junto ao meu, mas apenas quando entregar-me ambos Osíris e Hórus.

Ísis imediatamente hesitou com uma expressão receosa.

— Irmão, Osíris e Hórus...

— Não podem se colocar em meu caminho, assim como não posso me colocar no deles. Enquanto dois viverem, o outro padecerá e vice-versa. Se é mesmo teu objetivo verter de forças o meu manto, não hesitará em abatê-los.

Ela assentiu, lívida e com expressão de quem parecia prestes a vomitar. Toth, dirigindo-se a Seth, achou prudente desviar sua atenção para causas mais imediatas.

— Senhor, antes de qualquer coisa, temos para Ti um presente. Teu Trono sagrado e Teu Cetro, bem como Tua Coroa.

Quatro deuses entraram carregando um trono, que nada mais era do que uma cadeira de madeira maciça, de espaldar quadrado reto e assento côncavo. Folhada a ouro, detinha no topo do espaldar uma série de inscrições hieroglíficas. Sentando-se pomposamente, Seth ergueu a mão para o cetro de ouro, cuja ponta curvada lembrava a cabeça de um martelo. Sobre uma almofada aveludada, Ísis trazia a coroa: branca, formato de cone, ornada por uma serpente dourada. Ela a depositou sobre a cabeça do irmão, ajoelhando-se em seguida.

— Todos renunciam ao deus Seth! QUE SE PROCLAME O VOSSO NOME!

Os deuses imitaram seu gesto, todos erguendo aos céus as palmas das mãos. Entoando seu nome, fizeram vibrar as paredes e o solo, os archotes se avultando em chamas douradas.

— Agora – ergueu-se Ísis, sorrindo abertamente – Apresentarei-lhe o homem que o proverá de conhecimento. Um subalterno de Deus, um de seus soldados.

Seth se mostrou satisfeito, enquanto Ísis se retirava para buscar a pessoa a quem se referia. A meu lado, Regina se mexeu, após manter-se imóvel por longos minutos. É que Seth direcionou o olhar para o lugar em que nos encontrávamos, pela primeira vez notando a nossa presença. Ele fez sinal a Toth, sussurrando-lhe no ouvido. Por algum tempo, os dois se falaram em murmúrios.

Ísis retornou trazendo Gabriel por uma coleira dourada. Um cordão igualmente dourado atava seus braços ao corpo. Abatido, ele fora espancado no rosto. Nos oferecendo um sorriso tristonho, se deixou levar até Seth, sendo enfim empurrado para o chão aos seus pés. O deus o agarrou pelo pescoço, examinando-o.

— Um ser de asas longas – comentou ele, com escárnio – É esse o guerreiro de Deus?

— Sou o arcanjo Gabriel, soldado dos céus!  

Arcanjo?! Ora, por essa eu não esperava. Estava explicado o especial interesse dos deuses pelo Brincalhão. Era ele quem proveria a Seth as fraquezas de Deus, se é que ele tinha alguma.

Seth estava rindo estrondosamente. Os deuses forçaram também o riso, de modo a agradá-lo.

— Soldado dos céus? Eu definitivamente esperava mais... Ora, ficarei especialmente interessado em ouvir o que tem a dizer. Companheiros, convém sustentar-me, sinto-me enfraquecer.

— Como deseja, meu caro – Ísis prestou uma reverência, mandando trazer uma oferenda.

Sua irmã Néfts entrou arrastando um homem alto e magro, de pele bronzeada e olhos castanhos. Imaginando que fosse o Senhor Delgado, contive um grito quando Néfts o degolou, atirando seu corpo sobre a mesa de pedra.

— Convém que juntem-se a mim neste banquete – ergueu-se Seth, abrangendo os deuses com um gesto de seus braços – Por terem tão bravamente se sacrificado em meu nome, eu lhes ofereço a trégua.

Enquanto, vorazmente, os deuses se alimentavam do morto, Gabriel lançou a Regina um olhar significativo. Ela estivera murmurando, evocando as ancestrais como fizera anteriormente. No entanto, fosse por serem mais fracas ou por terem sido banidas, não atenderam de imediato as suas preces.

Seguindo o olhar de Gabriel, avistei ao fundo da galeria a presença de Cora. De pé à frente de um painél, ela tentava nos dizer alguma coisa. Regina balançou a cabeça, sem entender do que se tratava a mensagem. Sua mãe silenciosamente apontara para a figura colorida de um Rei, um Faraó ao trono. Como Seth, ele ornava uma coroa, mas a sua era listrada de azul e amarelo; feito um lenço, cobria sua cabeça, deixando de fora as orelhas e terminando em pontas arredondadas sobre os ombros.

— O que ela quer dizer? – sussurrou Regina, em desespero. Cora desapareceu em seguida, deixando-nos às voltas com a interpretação da figura.

— Não importa, nós não temos meios de vencê-los – Dean se deixara abater, desesperançado.

— O que será das crianças? – questionou Liam, de olho em Clem, que como as outras crianças ainda se encontrava em transe.

— Seth os consumirá, de modo a regenerar parte de suas forças – explicou Regina – Se houvesse meios de feri-los, eu o faria. Nada de bom pode sair desse banquete.

— Devia ser eu naquela mesa – Liam estremeceu, evitando a nauseante cena da carne e sangue sendo consumidos – Eles disseram que eu tenho presença de espírito, que sou, verdadeiramente, um filho do Egito.

— Como assim? – Gancho franziu a testa – Nós temos ascendência egípcia?

— Não tenho certeza... O fato é que me descartaram quando o outro homem surgiu na jogada. Eles selecionaram bem os seus peões. Todos nós nos encontramos aqui por uma razão.

Findado o banquete, restaram sobre a mesa apenas ossos e manchas de sangue. De olhos fechados, Seth parecia sentir fluir a energia do cadáver para o seu corpo. Os outros deuses, igualmente, satisfeitos, estremeciam como se completamente abarrotados de carne.

— Ruby, como é que nós vamos despertar a Zoe? – Regina agarrou meu braço, angustiada, pois sequer havia meios de alcançarmos a ruiva.

— Eu não faço ideia... Ela disse que ia resistir, mas estava enganada.

— Eu vou matar a Zoe – gemeu Dean.

— Isso se não a matarem antes...

— Silêncio! – bradou Seth, notando o nosso burburinho. Ele abriu os olhos, fitando-nos com suas orbes escuras – Acredito que é hora de eu compartilhar com vossas senhorias o meu sangue. Vocês me ofereceram o vosso, parece-me justo que agora eu ofereça o meu. Irmã Ísis, traga-me a bacia de mármore e a adaga. 

Obedientemente, Ísis atendeu a ordem do irmão. Sem desviar o olhar, Seth ainda nos encarava.

— Não estou gostando desse olhar – estremeceu Graham, virando a cabeça para o lado.

— Toth! – chamou Seth, quando Ísis depositou a bacia e a adaga à sua frente – Traga-me as jovens. Estou especialmente atraído pela feiticeira.

Ambas Regina e ísis arregalham os olhos e a boca. Esta segunda, indignando-se, dirigiu-se ao irmão em ar de fúria.

— Irmão! Então pretende me substituir?!

— Não substituir, tolinha, apenas busco diversão... Não leve a mal, Teu receptáculo é impecável, mas hoje busco outro tipo de beleza.

Toth atravessou a galeria, abaixando-se de modo a agarrar Regina. Como ela tentasse resistir, o deus lhe estapeou a face. Seth, irritando-se, o censurou.

— Não lhe estrague o rosto! Quero que venha de espontânea vontade, ou não venha de modo algum.

— Eu... – começou Regina, corajosamente – Ora, eu não sou um objeto sexual!

— E não tenho pretensão de que seja – retorquiu ele, seus olhos brilhando, intensamente desejosos de Regina – Quero que se sente à beira de meu trono, para que eu possa admirá-la.

Admirar-me? Por que diabos quer me admirar?

— Porque nunca topei com tal espécime de beleza antes... Não fosse mortal, eu a tornaria minha.

Catatônica, Regina se ergueu vagarosamente, observada por todos os pares de olhos que se encontravam na sala. Com um aceno de cabeça, Toth indicou que ela prosseguisse até onde se encontrava Seth. Ela assim o fez, lentamente.

— E a outra, Senhor? – perguntou Toth, girando o pescoço para Seth.

— Hum, deixe que venha quando sentir-se à vontade. Quero que me banhe os pés, parece ter as mãos delicadas.

Com um sorriso jocoso, Toth aproximou o rosto do meu.

— Quando sentir-se à vontade – repetiu, entredentes, seus olhos brilhando. Era quase como se Zoe falasse por ele, seu ar impaciente vindo à tona. Ele se afastou, enquanto expirei pela boca.

— Bem, não tenho lá muita escolha – murmurei, me proibindo de encarar Gancho, pois sabia que sua expressão aterrorizada amoleceria a minha coragem.

— Ruby – August me agarrou pelo punho, como se fosse me impedir – A cobra! Cora indicava a cobra!

Olhei uma vez mais a figura do Faráo no painél. É CLARO! Sua coroa era encimada por uma serpente dourada, de cabeça preta e peito triangular estufado, com detalhes em azul e laranja.

— Aug, você é um gênio!

— Papai sempre disse que eu era!

Me ergui, meu coração acelerado. Atravessei a galeria, aproximando-me de Seth. Regina já se encontrava aos pés dele, a adaga em mãos. O deus lhe ofereceu o pulso direito, que ela riscou com a lâmina. Derramando sangue dentro da bacia, Seth acariciou os cabelos da Rainha.

— Diga-me, bela feiticeira, de onde provém seu poder?

— Das descendentes de Asgard...

— Asgard, o outro mundo... E você, igualmente bela – ele ergueu a mão áspera e gelada para me tocar o rosto – Como a chamam?

— Ruby...

— Ruby... valiosa como a pedra que a nomeia... Toth!

— Senhor?   

— Há algo mais que eu possa dar-lhes de beber junto ao meu sangue?

— Águas antigas do Nilo, irmão – respondeu Ísis, irada pela atenção que nos era destinada – Guardei-as durante milênios, aguardando o momento propício de usá-las.

— Perfeito! Ruby, pedirei que leve esta bacia a Toth, para que ele verta nela a água.

Assenti, Regina me passando a bacia, que segurei firmemente com ambas as mãos. Toth se encontrava na câmara ao lado, remexendo frascos em uma urna de madeira. Ante a minha chegada, ele ergueu um jarro negro, a tampa que o cerrava em formato de cabeça de crocodilo. Derramou uma água límpida, porém com odor ferruginoso, dentro da bacia. Sangue e água começaram a se misturar, girando em uma espiral. Foi então que, para a minha surpresa, Toth apanhou do chão uma víbora exatamente igual à do painél. Ele lhe apertou a cabeça, forçando suas presas a dispensarem na água seu veneno.

— Zoe! – sibilei, num sussurro. Ela sorriu, meneando à cabeça em direção à galeria.

Retornei, devolvendo à Toth a bacia. Ele agradeceu, levantando-a acima da cabeça.

— Das águas do Nilo misturadas ao meu sangue, dou-lhes de beber! – bradou. Ofereceu a bacia primeiramente a Ísis, que sorveu um grande gole. Em seguida, sua irmã e ex-esposa Néfts. Depois...Toth.    

Senti uma vertigem se apossar de meu corpo, minha visão escurecendo como se eu estivesse prestes a desfalecer. Mantive o equílibrio, piscando para afastar as lágrimas. Zoe bebeu sem hesitar.

Com um grasnido estranho, Ísis se dobrou ao meio. Cuspindo, arfou em busca de ar, sufocando.

— Não bebam da bacia! – gritou Sekhmet, correndo a socorrer a Grande Ísis.

Seth encarou a mistura na bacia, tentando entender o que ocorrera. Enquanto isso, Néfts começou a demonstrar os mesmos sintomas da irmã. Trêmula, eu encarava Zoe, esperando que ela também caísse envenenada. A ruiva, no entanto, triunfantemente gargalhou em histeria. Todos os olhares se voltaram para ela, que, erguendo o braço direito, mostrou a Seth o bracelete que usava. Era em forma de uma serpente, a mesma do painél e a mesma que nos cedera seu veneno. O bracelete começou a se mover pelo braço da ruiva, convertendo-se em uma cobra de verdade. De um pulo, ela deu um bote em Seth, que num reflexo saltou para o lado.

— Wadjet! – berrou ele, em fúria, a cobra deslizando em sua direção, sibilando. Usando os outros deuses de escudo, Seth escapou para o fundo da galeria – Veneno não pode nos destruir! O panteão egípcio resiste imortal!

— Pois que resistam nas profundezas de Geb! – cuspiu Zoe.

Por fim, cedendo ao veneno, Ísis e Néfts caíram mortas. Tal como acontecera com Anúbis, fumaças densas espiraladas deixaram os cadáveres, desaparecendo ao atravessar as paredes. Reagindo contra a serpente, os deuses tentavam matá-la em defesa de Seth. Fugindo em direção aos túneis, o deus covardemente abandonou os outros. Gancho e os rapazes correram a perseguí-lo, enquanto Gabriel, libertado do cordão que o mantinha incapacitado, materializou no ar uma lança. Atirando-a na direção dos deuses, empalou três deles de uma vez.

Sob a luz do Sol que refletia sobre a mesa de pedra, Zoe ergueu as mãos para o céu.

— GRANDE DOS GRANDES, PODEROSO RÁ, EU INVOCO A TUA PRESENÇA!

Um pássaro cantou nas alturas, descendo da luz. Parecido com uma garça, tinha uma camada de penas cinzas sobre penas brancas e um bico alongado muito fino. Era o Bennu, a ave mítica da lendas egípcias. Pousando sobre a mesa, abriu as grandes asas, num brilho intenso de luz branca. Ofuscados pela luz, os deuses que haviam restado gritaram e guincharam quando seus corpos entraram em combustão. Caindo mortos, todos abandonaram seus receptáculos, cortinas de fumaça serpenteando pelo espaço.

Ouviu-se então o trotar de cavalos, que numa entrada brusca puxavam o deus Osíris numa biga. Portando um grande frasco branco de tampa em formato de cabeça de gavião, ele ergueu no ar seu cetro. Houve um brilho azulado, então as fumaças erráticas foram sugadas para dentro do frasco.

— Porra, Osíris! – xingou Regina, em sua melhor versão revoltada – Por que diabos não veio antes? Cacete!

O Bennu voou para o braço do homem, que acariciou seu bico.

— Não me encontrava forte o bastante, muito menos meu filho – ele ergueu o frasco, dando a entender que aquele era Hórus – Ísis nos manteve trancafiados de modo a nos proteger de Seth. Agora, no entanto, deixem comigo. Minhas irmãs serão julgadas, assim como o restante do panteão.

— E quanto a Seth? – perguntou Zoe.

— Fugiu, abandonando o receptáculo. Assim como Anúbis, estará demasiado fraco para agir sozinho.

— Convém que vá procurá-lo, ele é uma ameaça à humanidade – opinou Regina, em tom de preocupação.

Osíris assentiu, descendo da biga. Abaixou-se defronte aos pés do receptáculo que abrigara a deusa Bastet. A serpente Wadjet se encontrava abatida, estirada em uma linha. Ao tocá-la, ele a reviveu. Erguendo-a em direção à coroa que usava – igualzinha à de Seth, com exceção da serpente –, ele a depositou ali, transformando-a em um ornamento apenas. Então, sem dizer mais nada, retomou a biga e, impulsionando os cavalos, desapareceu à penumbra na Câmara do Rei.

***

13h36min

Caminhada em direção ao Posto Policial

— Ela é a Rainha das Serpentes, a protetora do Faraó – ia explicando Aug a Graham, que não entendera o lance com Wadjet.

— Ah! – fez ele – Por isso Zoe foi imune ao veneno?

— Eu não era ameaça a Hórus, que é o Faraó por direito e merecimento – disse ela, ainda trajando suas roupas de linho e a peruca.

— E como foi que expulsou Toth de seu corpo? – perguntei, ainda impressionada com a força que ela detivera sobre o mesmo.

— Não expulsei.

— ESSA COISA AINDA ESTÁ AÍ DENTRO? EXPULSE-O DAÍ IMEDIATAMENTE!

— Cale a boca, Winchester! Meu corpo, minhas regras!  

— Zoe, eu ouvi bem? – Regina recuperara o Grimoire, que Ísis surrupiara dela quando fomos levados pelas múmias – Tem um hóspede no seu corpo?!

 - Toth não é ameaça! Farei bom uso dele, assim como fez Brendon – esclareceu ela, despreocupadamente – Vocês subestimam demais a minha inteligência! Para começar, eu só aceitei ser hospedeira com base nos meus próprios termos. E, em segundo, lugar, vocês acham mesmo que eu ia deixar um homem se apossar de meu corpo se não tivesse o mínimo de confiança de que eu teria monopólio sobre o mesmo?

— Zoe, você é fantástica! – esganiçou-se Graham – Que pena não termos nos conhecido na escola, sinto que você teria defendido a minha honra enquanto fui um fracote.  

De ego inflado, ela sorriu abertamente.

— Me sinto lisonjeada... Ele não vai ficar aqui por muito tempo, é claro, apenas enquanto não houver receptáculo mais adequado. E enquanto for conveniente nos ajudarmos.

— Ora, pois então que vá com esse homem pra outro lugar! – retrucou Dean, possesso – Eu é que não vou me arriscar a conviver com a sua pessoa enquanto houver outro ser aí dentro dessa cabeça.

— Ah, e você assume que eu vá ficar numa boa com você apenas por termos feito as pazes? Não mesmo! Passou da hora de eu ter meu próprio lugar... Vou passar uma temporada no QG, se não for problema.

Eu sorri, feliz pelo fato de que, pela primeira vez em muito tempo, o QG estaria novamente movimentado.

— Problema nenhum! As Beauchamp e a Regina também estarão lá.

— Ah, meu Deus, vai ser um clã de bruxas! – comentou Gancho, ao longe, trazendo uma das crianças no colo.

Após mais alguns metros, finalmente alcançamos o posto policial, que, sob as armações de metal da roda-gigante, cedera metade do teto. Ouvindo a aproximação, Alexa saiu porta afora, correndo e se atirando sobre Liam, que trazia Clem nos braços. O pequeno Ian veio de encontro ao grupo com Baelfire, enquanto, um a um, os pais das outras crianças vinham ver o que estava acontecendo. Alheios ao fato de que, pela maior parte do tempo, estiveram submersos em sono profundo, tentavam entender como se dera o resgate das crianças.

— Okay, acho que é nessa hora que eu burlo as regras e altero memórias – Zoe suspirou, exausta demais para performar feitiços. Adiantando-se, Gabriel ergueu uma mão.

— Deixe que eu faço, lindinha, só vai levar dois segundos!

Levando dois dedos às testas dos pais e das crianças, ele os forçou a esquecer as últimas horas. Também recuperou o carro capotado dos Fox, tornando-o novo em folha. Deixando o parque, as famílias fizeram o caminho de casa, como se nunca tivessem passado a noite de Halloween nele. Quanto a Liam e Alexa, a estes foi dada uma escolha.

— Um apagão mental e vocês nunca mais vão se lembrar do que tentaram fazer à sua filhinha – dizia Gabriel, balançando os dedos na frente do casal – Não precisam esquecer a noite toda, claro, apenas a parte que envolve monstros e desespero.

Alexa balançou a cabeça. Embora abatida, parecia ótima.

— Eu não quero esquecer, preciso me lembrar da força que sustentei para proteger essas pessoas. E preciso me lembrar do tipo de ameaça que existe por aí.

— Eu, idem. – Liam abraçava a esposa pela cintura – Reconheço agora o quão importante é o seu trabalho, irmão. Eu gostaria de nunca tê-lo julgado mal por isso.

— Águas passadas! – Gancho sorriu, dando de ombros – Só não vá ficar paranóica, procurando um bicho-papão pelos armários, Lexy.

— O bicho-papão existe?!

— O Gancho diz que sim – confirmou Regina, um tanto duvidosa – Eu nunca vi um, pra começo de conversa. 

— Ora, Regina, bastava se olhar no espelho!

— O que disse, Winchester?!

Pelo visto, tudo voltara ao normal. Acima de nossas cabeças, o Sol encontrava-se glorioso, brilhando furiosamente em meio ao azul-celeste. Não fossem os sinais da chuva e do granizo, ninguém iria dizer que, horas antes, foramos castigados com pragas. E, por falar nelas, foram varridas junto com Sekhmet: não havia mais nenhum indício de sua passagem; até mesmo as lêndeas abandonaram as cabeças suadas de nossos amigos.

O que ainda nos restava era a dúvida: teria Seth matado os primogênitos?

— Não – respondeu Zoe, após consultar a voz em sua cabeça – Segundo Toth, os deuses tinham a pretensão de forçar os primogênitos a depositarem sua fé neles. É como disse a Belle, para eles o primeiro filho é sagrado. A cruz ansata não tinha intenção de nos marcar, mas, pelo contrário, poupar-nos da ira que Seth verteria na direção dos que não fossem primogênitos.

A cruz ansata também desaparecera dos que haviam sido marcados. A única marca que nos restara era a lembrança do que havíamos passado. Bom, para Regina, restavam também as marcas das unhas das múmias.

— Depois dessa, vou passar uma semana inteirinha no SPA! Preciso urgentemente de uma massagem nas costas e uma hidratação no cabelo.

— Ah, vamos juntos, Rê! – Grammy agiu feito uma criancinha animada por ir ao circo – Eu preciso de um banho de pepino na cara, sinto meus poros abertos.  

— Me poupe! Depois de uma noite inteira em sua companhia, eu já tive o suficiente! E você sabe o que significa ir para um SPA? Significa que eu vou me isolar da humanidade!

— Poxa, Rê... E eu tentando ser legal contigo...

Revirei os olhos para Grammy, divertida

— Não foi isso que eu quis dizer quando disse para convidá-la a sair...  

— Ruby – chamou Alexa, vindo para o meu lado com seu kit de emergência – Você ainda não comeu, não é? Tome um chocolate, vai lhe dar energia.

— Ah, obrigada Alexa! Zoe disse que você foi ótima com os pentagramas. Graças a Deus eles os protegeram.

— É, eu nunca nem tinha entoado orações; sou agnóstica. Precisei confiar que minha determinação fosse nos manter seguros.

— Não se esqueça de que fui eu quem suportou seus gritos histéricos – lembrou Baelfire, fazendo questão de esfregar na cara dela que não agira sozinha -  É claro, eu também mostrei a ela o jeito certo de desenhar o pentagrama, ela mal sabia fazer uma linha reta...

Em meio ao burburinho de nos encontrarmos sãos e salvos, ninguém deu muita atenção a Gabriel. Me aproximei, estranhando seu silêncio. Ele sorriu vagamente, coçando um dos olhos. 

— Você está bem? – perguntei.

— É claro, sou mais forte do que você – ele soltou um risinho.

— Arcanjo, então? Por que é que um soldado de Deus se encontra em meio aos humanos e não onde pertence?

— Loooonga história, excessivamente complexa e entediante para o momento. Eu lhe conto outra hora, quando caçar deuses não estiver entre seus planos.

— Hum – cruzei os braços, desconfiada – E você, tentou caçá-los por si mesmo? Como foi apanhado?

— Lá vem ela outra vez! Fui pego enquanto tentava protegê-la do seu... como é que eu posso dizer, perseguidor apaixonado?

— Jefferson? Como assim tentando me proteger?

— Sou um arcanjo, não sou? – sorriu ele, de um jeito que espremia os olhos e formava covinhas nas bochechas – Temos uma longa história, eu e aquele homem. Opa, não me olhe assim, não fomos namorados...

Ri. Gabriel conseguia ser genuinamente engraçado e simpático quando queria.

— Você não vai me contar, não é?

— Não! – ele cruzou os braços e balançou a cabeça – Também é narrativa para outro momento. Apenas saiba que eu estive na sua cola...

— Então também é culpa minha você ter sido pego.

— Não! Nem pense nisso! Eu fiz o que tinha que estar fazendo... Foi divertido, no fundo. Eu quero dizer, não sou um anjinho no sentido puramente literal da palavra – ele exibia um sorriso travesso – Bem, tenho que levar as três crianças sem família até o Departamento de Polícia de Seattle. Nos vemos por aí!

— Ei, Gabriel! – chamei, quando ele se afastou em direção à saída – Foi você quem fez o lance da abdução das crianças?

Aquilo andava me atormentando. Não imaginava como elas pudessem ter sumido sem que ninguém notasse.

— É claro! Você não esperava que a Lady Gaga viesse cantar num parque chinfrim, não é? Era a música o alucinógeno; vocês nem notaram que entraram em transe...

E ele desapareceu no ar, largando pra trás o aroma de jujubas. Bem, de minha parte, Gancho nunca ia saber que sua deusa inspiradora se tratara de uma ilusão.

Parti com o restante do grupo em direção ao estacionamento. Dean acabara de arrancar a peruca de Zoe, revelando o fato de que ela se encontrava careca. Indiferente, ela alisou o próprio couro cabeludo.

— O que foi, nunca viu alguém sem cabelo? O que você esperava de uma purificação corporal? Era moda entre os egípcios raspar a cabeça.

— Eu até que gostei, mas assim a sua cabeça fica parecendo uma bola de bilhar.

— Sou obrigada a concordar, Zoe – gargalhara Regina, em alto e bom som – Sinto falta das madeixas ruivas. 

— Eu não. Sinto-me linda assim! De qualquer forma, vou preparar um tônico de crescimento rápido quando chegarmos ao QG.

Lembrei-me de que, chegando em casa, Gancho ia lidar com Finnian. Suspirei. Ia mesmo ser uma ser uma temporada agitada...


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Notas finais do capítulo

Bom, sobre o próximo, não faço ideia de quando conseguirei postar e não farei promessas, porque a Lord Of The Seas é a próxima fic que pretendo atualizar. Espero retornar em breve e estarei por aqui respondendo mensagens e comentários. No mais, agradeço a paciência e as mensagens de carinho. Vocês são incríveis ♥
Beijos de luz!



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