'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 28
Fenomenal Fauna do Egito


Notas iniciais do capítulo

Olááá, meu povo! Eu retornei das profundezas do abismo. Não morri, mas peguei o bonde atrasado. Eu sei que prometi postar há umas semanas, mas foi IMPOSSÍVEL! Me encontro às voltas com meu último semestre de faculdade e não dei conta da infinidade de coisas que tinha para fazer. Peço desculpas pela demora.
A minha intenção era trazer um único e longo capítulo, mas não sei ser sucinta e a história se estendeu demais, totalizando mais de 22.000 palavras. Precisei dividir em duas partes, a segunda será postada logo em seguida, assim que eu finalizar a revisão.
Espero que gostem tanto quanto eu gostei de escrevê-lo e ignorem possíveis furos e erros de ortografia.



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06h24min

Estacionamento de Horrorland

Como é que Mary escapara com vida, eu nunca ia saber. Assim como, futuramente, não saberia explicar como é que dez adultos e uma criança cabiam em uma única e detonada ambulância.

A caminho de Horrorland, toparámos com o carro que capotara mais cedo. Era um veículo prata, bastante simples e um tanto obsoleto. Por insistência de Zoe, paramos de modo a verificar se os ocupantes estavam com vida, mas, para nossa surpresa, o carro estava vazio e sem sinais de fluidos.

 - Só pode ser mais uma peça que nos pregaram – comentara Dean, ao volante – E a Zoe dramatizando a situação...

Minutos depois, no entanto, há cerca de meio quilômetro do parque, avistamos duas figuras à beira da estrada, uma mais desgrenhada do que a outra. Não eram outros, senão o senhor e a senhora Fox.

— Vocês?! – exclamara o senhor Fox, um enorme galo na testa, quando Dean parou para recolher o casal – Mas o que estão fazendo fora do parque com uma ambulância? Aliás, não foram vocês que invadiram a contramão e quase nos mataram?!  

— Longa história! – respondeu Dean, arrancando tão logo puxamos as portas traseiras (elas não se fechavam mais, estando praticamente destruídas, mas bastavam em nos passar segurança) – Não temos tempo para explicações! E caso queira dispensar sua fúria em alguém, foi o moreno arrogante quem quase matou vocês.

Os Fox, no entanto, por exaustão ou o que quer que fosse, não questionaram nem renderam o assunto. Tanto melhor, pois não nos encontrávamos no melhor de nossos ânimos.  

Regina invertera os papeis com Alexa: enquanto a primeira se desfazia em lágrimas e culpa, a segunda lhe passara um braço pelos ombros, transmitindo-lhe toda a sua força. Minutos antes, quando Gancho e Dean empurraram a maca de Mary para a segunda ambulância, Regina fizera menção de acompanhar a prima ao hospital. No entanto, por mais cruel que fosse, precisavámos – mais do que nunca – das forças da Rainha.

— Regina, Zoe é absurdamente talentosa, mas hoje precisamos do talento de duas bruxas – a sinceridade de Dean me surpreendera  – Eu iria com a sua prima, mas também precisamos da minha força.

— Pela primeira vez na vida, Dean, eu concordo com a sua posição – Zoe assentira – Nenhum de nós é dispensável, mas se temos de priorizar, priorizaremos os mais fortes. Sendo assim, quem se habilita a ir ao hospital?

Gepeto já assumira o compromisso de ser o motorista, enquanto que Archie, de perna ferida, achou que era melhor que um médico verificasse a qualidade da sutura feita pelo velho. Foi Belle, então, quem tomou a iniciativa:

— Eu vou! Vocês só precisam de uma pesquisadora e a Ruby é mais forte do que eu, portanto a pessoa mais indicada.

Agora, nosso grupo reduzido, descíamos para o chão de cascalho do estacionamento. Regina, extremamente abalada, teve de ser carregada por August, que por fim a depositou num banco.  

— Eu não consigo contar ao David... – murmurou ela, as lágrimas escorrendo pelo pescoço.

— Eu conto! – Gancho coçou a cabeça, ele mesmo conturbado – Nos encontramos no posto policial?

— É – concordou Zoe – E a partir daí, pensamos no que fazer.

***

06h32min

Posto policial

— Mas eu não estou entendendo – ia dizendo a senhora Fox, que, descabelada, tinha um filete de sangue seco escorrido na lateral do rosto – Pra onde é que eles foram e por que é que vocês estão bancando os policiais e socorristas?

As inúmeras perguntas dos Fox forçaram Zoe a colocá-los para dormir. Em segurança na cela da tenda policial, os Price e a senhora Delgado sonhavam profundamente, alheios à tudo o que ocorrera na duração de seu sono. A destruição do altar, agora podíamos comprovar, servira para anular as pragas. Muito embora as rãs e moscas ainda estivessem presentes – agora, cada vez mais dispersas – e a água ainda fosse sangue, desde o surgimento do enxame não foramos surpreendidos por nenhum outro castigo.

— Não é garantia de que não vão usar outra fonte de poder contra nós – falou Graham, massageando as têmporas – Eu só quero ir pra casa, estou exausto...

— E não estamos todos nós? – a ruiva suspirou, o que era irônico, uma vez que ela se encontrava tão apresentável e revigorada quanto um dos deuses – Escutem aqui, não há mais o que aguardar, nós temos de entrar na pirâmide.

— Não! – me pronunciei – Não sem termos como lutar contra eles. Ou você acha que arrancar corações vai surtir algum efeito?

— Claro que não! Estou dizendo que talvez eu tenha uma carta na manga. Mas eu, e apenas eu, posso colocar esse plano em prática.

— Do que é que você está falando? – Dean fitou a ruiva com desconfiança, ao que ela jogou o cabelo para o lado, relaxando o corpo.

— Não posso dizer em voz alta, as árvores ouviriam...

— Que história é essa de árvore?! Se não quer que tomemos parte, azar o seu! Viram que mal agradecida? A pobre Branca quase morreu por ela e é assim que ela retribui!

— Não, Dean, eu vou honrar Mary!

O que quer que ela quisesse dizer com isso, não explicou, pois uma ligação de Sam desviou nossa atenção. Felizmente, e por pouco tempo, meu celular ainda se encontrava com um restante de bateria. Atendi rapidamente, em modo viva-voz para que os outros escutassem também.

— Sam, graças aos céus, me diga que tem novidades!

A voz do rapaz veio entrecortada pela respiração ofegante, como se ele tivesse acabado de correr uns dez quilômetros.

Ruby, eu matei o Bobby!

— O QUÊ?! – berrou Zoe, por pouco não caindo do assento, tamanho o susto que levou.

O falso Bobby! — ele tossiu – Não sei onde o Bobby verdadeiro está, mas vim até a casa dele e encontrei um ventríloco...

— Ventríloco?! – perguntou Dean, arregalando os olhos – Que diabos é um ventríloco?!

— Espere aí, então Bobby foi feito de marionete? – questionei, raciocinando o sentido da palavra.  

Bom, basicamente, ventrílocos são clones manipulados. Alguém os controla como a um boneco, falseando a voz deles, principalmente. Esse tentou me atacar quando eu percebi que não era o Bobby.

— Você está bem?!

Estou. Alguém convenientemente deixou uma estaca de prontidão. Matei a coisa quando tentou me matar. E eu acho que sei com quem estamos lidando... encontrei uma barra de chocolate entre os livros de Bobby. Bom, ele não é fã de açúcar...

— Gabriel! – Dean e Zoe exclamaram ao mesmo tempo,

Balancei a cabeça.  

— Que Gabriel é filho da puta, isso nós sabemos, mas duvido que ele faria com crianças algo tão cruel. E, além do mais, o que ele teria a ver com deuses?

É exatamente o que estou tentando explicar. Ele me favoreceu, me ajudou a dar cabo do ventríloco. Ele está agindo dos dois lados...

— Manipulado pelos deuses? – August se aproximara de modo a ouvir melhor.

— Convenientemente – comentou Zoe –, uma vez que Gabriel é capaz de tornar possível praticamente qualquer realidade. Os deuses não são suficientemente fortes sozinhos, no momento.

— Espere aí... e se estivermos presos numa realidade alternativa? – Dean repentinamente ficou muito sério, mais do que estivera antes – Como quando eu vivi um looping de mortes catastróficas sem ter consciência disso.

— Não acho que seja o caso, Dean...

— Ou como quando aquele filho sem mãe me prendeu na TV como um boneco de madeira homossexual – Pinóquio trancou a mandíbula e apertou os punhos.   

Grammy deixou escapar um riso agudo que parecia um balão de gás se esvaziando. Se conteve, porém, tão logo August e Zoe lhe ofereceram olhares de censura.

Seja lá o que Gabriel estiver fazendo, tentou sinalizar suas intenções quando deixou o chocolate como pista.  Eu o encontrei em cima de um livreto de orações a Rá, o deus-sol. Não sei que tipo de mensagem ele quis deixar, mas sei que Rá é o deus primordial que subjulga todos os outros.

— Talvez seja Rá à frente disso tudo – sugeri.

Talvez, mas eu diria que é exatamente o contrário. Talvez Rá seja o nosso único triunfo...

— Ele poderia interceder e controlar a situação – Dean se dirigiu ao irmão, muito embora eles ainda estivessem brigados – Sam, invoque Rá pelas orações; é nossa melhor aposta.

Eu não sou assim tão religioso, duvido muito que um deus importante fosse atender ao meu chamado.

— Bom, considerando que nossas orações a Castiel não estão surtindo efeito... – suspirou Zoe.

— E o que os faz pensar que Rá não teria impedido a ação dos deuses se pudesse? – a voz de Regina parecia vinda do além, rouca e fraca, assim como a sua aparência debilitada – Ou, melhor dizendo, se quisesse. Ele equivale aos outros, não vejo como confiar em qualquer um deles.

Ante a concordância com a fala de Regina, todos nos calamos. A ligação telefônica começou a emitir ruídos, sinal de que estava prestes a cair. Gancho vinha se aproximando com Gold e Baelfire, enquanto, à distância, David se deslocava em direção ao estacionamento. Quando, por fim, a minha bateria chegou ao limite, Zoe se ergueu de um pulo, mais enérgica do que todos nós juntos.

— Regina, vou precisar do seu Grimoire! Não equivale a magia negra, mas nós vamos combatê-los com o exato oposto...

***

06h43min

Posto policial

O exato oposto a que Zoe se referia era, obviamente, a magia clara. Mas não era exatamente disso que ela estava falando, quando, motivadamente, partiu em busca do Grimoire Mills.

— Se Rá é o deus-sol, talvez Gabriel queira dizer que temos de combater as trevas com um raio de luz. – ela atirou o livro pesadamente sobre uma mesa, abrindo-o ao meio em seguida – Pois bem, eu me lembrei de um feitiço que usei anos atrás, quando Sam, Dean e eu enfrentamos uma bruxa. Eles sequer se lembram, mas, na ocasião, eu a enfraqueci com a ajuda do poder ancestral.

— Poder ancestral – repetiu Regina, franzindo a testa – Ouvi as Beauchamp fazerem menção a isso, mas não sei do que se trata.

— São nossas antecessoras bruxas, vinculadas a nós por um fio de energia – a ruiva explicou, conforme folheava com cuidado as páginas amareladas do livro – Quando em boa intenção, podemos invocá-las como protetoras ou auxílio de emergência.

— E isso bastaria com os deuses?

— Não estou certa disso, mas o rompimento do véu que nos separa do submundo nos acrescenta uma vantagem. Se eu conseguir invocá-las diretamente do além, há uma boa chance de elas nos acrescentarem força. Proteção, ao menos.

— Zoe, você é tão incrível! – a essa altura, o meu queixo é que estava prestes a desprender do restante do rosto. Envaidecida, ela ajeitou os cabelos.

— Nós somos, Ruby! E sabe de uma coisa, você e Regina complementam a minha força. Mary e Belle não estão aqui, mas por elas nós honraremos o poder feminino.

— Vocês deviam fundar uma comunidade Wicca feminista – sugeriu August, bocejando lentamente.

— Aaaah que incrível! – gemeu Grammy, brilhando os olhinhos – Eu posso participar?

— Ah, cala boca, Grammy, não estou em condições de lidar com a sua infantilidade – Regina se ergueu para dar uma olhada no livro. A essa altura, eu mesma espiava por cima do ombro de Zoe.

— Uau, que feitiços incríveis! – comentei, sentindo meu corpo se arrepiar em animação, como se eu própria fosse sair orquestrando encantamentos e prendendo homens abusivos a árvores.

Alexa se aproximou um tanto hesitante. Ian cochilava agarrado ao pescoço de Baelfire, que se enrolara como uma bola em uma manta.

— Há algo que eu possa fazer por vocês? – ela fungou, coçando o nariz – Quero dizer, tudo o que fiz até o momento foi chorar feito condenada.

— Querida, não pense que não fez nada por nós – Regina afagou as costas dela com um mão – Pessoas que você ama foram tiradas de você, eu não esperaria menos de uma mãe e esposa.

— Tem razão... Sabe, eu sempre fui tida como fraca por chorar incontrolavelmente. Mas é esta a minha força, sem meu pranto eu não teria resiliência.

— Alexa, mais do que nunca precisaremos de você. – Zoe se voltou para ela, seu rosto expressando tanta lucidez e determinação que não havia como olhar para ela e não sentir uma bravura no fundo do coração – Há algo sim que você pode fazer...

***

07h07min

Caminhada entre o Posto Policial e a Pirâmide

— É mesmo admirável que tenham superado a sua experiência, Rumple – Regina prendera o cabelo num coque e arrancara as mangas do vestido, por mais enregelada que estivesse.

Gold fez cara feia para o apelido, respondendo:

— Bem, é como dizem, o mestre aprendendo com seus pupilos. Devo dizer que estou impressionado.

— É bom que esteja – retrucou Zoe, com certa arrogância – Nós demos o nosso melhor enquanto vocês, homens, perambulavam pelo parque sem atingir um êxito sequer.

— Não comece, Zoe – o humor de Dean mudara de exausto para extrapoladamente raivoso – Será que é possível termos alguns minutos de silêncio?

— Algumas verdades nunca são bem aceitas – a ruiva disse a mim, sorrindo de lado.

Concordei com um aceno de cabeça, parte de mim querendo dar a meia-volta e fazer companhia a Alexa, Bae e Ian no posto policial. Me sustentava, no entanto, na força das outras duas mulheres.

Abraçada ao Grimoire Mills, Regina parecia encontrar seu sustento no livro. Marchava à frente do grupo, alheia às conversas aleatórias que se passavam entre nós. Ela estremecia a cada vez que uma lufada de vento percorria o grupo; o frio, no entanto, não arrefecia sua determinação.

O agrupamento de nuvens nubladas acima de nós anunciava a tempestade que estava por vir. Muito embora já houvesse amanhecido, o dia se parecia com um final de tarde, a coloração cinza-escura do céu se intensificando. Os ares do outono bem acrescentavam ao clima sombrio instaurado pelos deuses; uma névoa opaca se formava nas montanhas mais distantes e, muito em breve, todo o parque estaria coberto em neblina.

Um vento possante sacudiu a floresta e os quiosques de comida pelo caminho; restos de lixo foram arrastados pelo cascalho, enquanto nossas roupas se enfunavam em nossos corpos. Regina parara em frente ao quiosque de cachorro-quente. Era a única barraquinha aberta, vazia e às moscas. O zumbido dos insetos inicialmente era muito vago, mas aumentou conforme nos aproximamos. Ao lado de Regina, Gold se virara para o restante do grupo.

— Tem sangue... – murmurou, apontando para a frente do quiosque, no qual havia uma mancha vermelha bem vívida.

— Cheira à carne morta! – August tapara o nariz.

Todos nos entreolhamos. Gancho verbalizou o pensamento coletivo.

— E se for... – começou, ele mesmo torcendo o nariz para o cheiro; se assemelhava ao odor de um açougue, porém muito mais intenso – ...uma das...

Ninguém se moveu, com exceção de Regina. Deu dois passos, bravamente se aproximando da bancada na qual se preparava os cachorros-quentes. Parou outra vez; desviou o olhar e soltou um soluço abafado. Gold se adiantou e deu a volta no quiosque, entrando pela porta que havia no fundo. Protegendo o nariz com um lencinho, examinou o que perturbara Regina. A essa altura, o resto de nós já se aproximara o suficiente. Gancho passara os braços por Regina, confortando-a.

— O que é, Gold? – Dean, se impacientando, foi à frente da bancada.

— Veja por si mesmo – e Rumplestiltskin ergueu uma bandeja de cachorros-quentes; em lugar das salsichas, eram recheados de carne vermelha crua, triturada e coalhada de vermes.

Senti minhas entranhas revirarem. Não fui capaz de identificar se se tratava ou não de carne humana. No chão, em meio a uma poça de sangue, uma peça de carne gelatinosa estava coberta pelos vermes, enquanto as moças avultavam em torno.

— É um jogo mental – falou Killian, me buscando com os olhos – É a quinta praga; a morte dos rebanhos.

Assenti, só então notando que era disso que se tratava.

— Eu disse que eles não iam parar – disse Graham, se afastando.

Retomamos a caminhada, August contestando o amigo.

— Não sabemos se é mesmo uma praga.

— As evidências estão aí, August...

E bastou Grammy fechar a boca. Virando a esquina de uma fileira de barracas, topamos com a barriga aberta de um boi. A cabeça estava pendurada a um poste de luz, escorrendo sangue. Mais à frente, um amontoamento de pelos ensanguentados marcava o cruzamento entre vias. Eram ovelhas esquartejadas, conforme constatamos. Quase cinco metros adiante, uma fileira de porcos fora pendurada como um varal entre um poste e outro; por mais que fosse assim nos abatedouros, a visão da carne recém-abatida era desconcertante: o sangue fresco jorrava, coagulando numa poça.

Zoe estava com expressão de quem ia vomitar, mas já o fizera na choupana e não comera nada desde então.

— É mesmo um jogo mental – disse – Querem nos afetar psicologicamente de modo a nos enfraquecer a tentativa de invadir a pirâmide.

— Covardes, por que não nos enfrentam cara-a-cara?

— Cale a boca, Graham! – Regina se estressara e bem teria dado na cara dele com o Grimoire, não fosse a distância em que se encontrava – Nós não somos páreo para uma luta agora.

— E o que é que estamos indo fazer, então? Ou você pretende atirar esse seu Grimoire feito um boomerang pra desacordá-los?

— Grammy, por favor... Zoe tem um plano, vamos confiar nela, sim?

— Obrigada, Ruby! Não estou com o minímo de paciência!

— Você nunca está, Regina...

— Ahn... pessoal... – August nos chamara a atenção, seu tom de voz ligeiramente preocupado – Er... qual é a próxima praga mesmo?

  - Chagas na pele – eu listara mentalmente a ordem das pragas – Por quê?

— Ah, que encantador... – ele riu de nervoso.  

De costas para o grupo, enrijecera os músculos, encolhendo-se. Gancho se aproximou, colocando a mão no ombro de Pinóquio, que recuou ante o toque com um gemido. Imediatamente, pequenos círculos de sangue mancharam sua roupa, conforme pústulas se abriam por todo seu corpo. Feridas marcaram seu belo rosto, desfigurando-o.

Os outros, logo também foram acometidos. Emitindo gemidos abafados e contendo interjeições de dor, continuaram a caminhada como se nada estivesse acontecendo. Sem compartilhar de seu sofrimento, estremecia agoniada, esperando que aquilo não os enfraquecesse: pareciam agora uma procissão de leprosos.

Sem intervalo entre uma praga e outra, bem sabia que corríamos um enorme risco estando desabrigados. Meu pensamento foi confirmado quando, acinzentando-se ainda mais as nuvens, um clarão percorreu o céu.

— Temos de buscar abrigo agora! – alertei, procurando pelas proximidades um local seguro e o mais sólido possível – Granizo é a sétima e mais mortal das pragas!

— Mas você está enganada, Ruby! – Graham se virou para mim, sua beleza se destacando ainda mais em meio ao horror da sexta praga – A mais mortal é aquela em que os primogênitos efetivamente morrem.

Uma intensa ventania se deslocava da floresta para o parque. O vestido de Regina subiu e, como suas mãos estivessem ocupadas, ela nada pôde fazer para nos privar da visão de sua calcinha vermelha.  

— Cala a boca, Graham, isso é coisa séria! – ela cuspiu, irritada, cega pelos cabelos se debatendo contra seu rosto.   

— É que o deboche é a minha válvula de escape! – gritou ele, por cima do som do vento.

— PARA O TREM-FANTASMA! – berrou Gancho, passando um braço pela minha cintura – AGORA!

Bem tentamos correr, mas a força do vento era tal que nos impedia de atravessá-lo com velocidade. Juntamente à poeira que nos invadia os olhos, objetos foram pegos pela ventania e eram perigosamente atirados em nossa direção. Quando um guarda-sol de praia veio planando feito um aviãozinho, Zoe o parou no ar, agarrando seu cabo encurvado.

— Guarda-sol, fique sólido, sólido como tábua! – ordenou, e no mesmo momento o guarda-sol enrijeceu, como se mergulhado em uma camada de gesso.

 Ela o usou para proteger todo o grupo: com o topo voltado para o vento, mandou que ficássemos às suas costas. Fizemos como ela dissera, nos amontoando atrás do guarda-sol, o que foi um meio eficiente de facilitar o restante do caminho até o trem-fantasma; com algo sólido cortando o vento, conseguíamos impulsionar maior velocidade ao deslocamento.

 Cerca de dois metros da entrada, porém, conforme aumentasse a intensidade da corrente de ar, o guarda-sol não mais suportou; embora tornado sólido, foi apanhado por um vento lateral, que por pouco arrastou Zoe junto. Ela não chegou a sair do chão (é claro!), mas, sem soltar o cabo, foi arrastada por pouco mais de um metro; quando ela caiu de joelhos no cascalho, Dean e August a agarraram pelos braços, berrando para que largasse o objeto; assim ela o fez, não sem antes ouvir de Dean uma nota de indignação.

— Sólido como tábua, Zoe? Sério? Por quê não concreto?

Um novo clarão piscou no céu, segundos depois seguido de uma trovoada. Não muito longe, a roda-gigante rangia, os assentos batendo contra a estrutura metálica. Nos demos as mãos, de modo a nos mantermos firmes em meio à rajada de vento. Persistindo, caminhamos mais alguns passos, alcançando, por fim, o trem-fantasma. Outra vez à frente do grupo, Regina foi a primeira a chegar à porta, destrancando-a com um feitiço.  

Foi então que um raio cortou o céu com um estalo que parecia o de um chicote; seguiu-se um forte estrondo, quando o flash de luz atingiu a roda-gigante: ela desabou com um rangido metálico, esmagando tudo o e que se encontrava em seu caminho e fazendo tremer o solo.  Gritamos, o choque do susto sobressaltando nossos corações. De olhos esbugalhados, Regina atirou para Gancho o Grimoire.

— O posto policial! – berrou, identificando a área que, mais provavelmente, o brinquedo atingira. Fez menção de ir até Alexa e os outros, mas berramos para que retornasse à segurança. Como nos ignorasse, Gold se viu na obrigação de impedi-la – ME LARGUE! BAELFIRE ESTÁ LÁ TAMBÉM!

Graham teve também de interferir, ajudando a contê-la. E logo não bastaram dois apenas: Dean se juntou ao furdunço com Zoe, que parecia prestes a estapear Regina. Nesse meio tempo, pingos esporádicos passaram a chuviscos, que passaram a um temporal. Então, pequenas pedras de granizo começaram a precipitar sobre nós.

— ANDEM LOGO! – berrava August, me empurrando para a entrada do trem-fantasma de modo a me poupar ser atingida pelo gelo.

— ...não me force a dar na sua cara! – Zoe agarrara Regina pela frente do vestido – Eu ensinei a Alexa um feitiço de proteção, até mesmo a ensinei a desenhar um pentragrama!     

— E desde quando Alexa é bruxa pra ministrar feitiços?!

— Sua estúpida, qualquer idiota é capaz de entoar orações! Não pode honrar Mary se morrer também!

O granizo agora caía com mais brutalidade; pedras maiores atingiram nossos braços e cabeças. Por fim, desistindo, Regina se deixou levar para o trem-fantasma, mas não com agilidade suficiente para escapar do granizo. O solo logo ficou coalhado de pedras; em grande número, caíam com tal velocidade que assumiam o mesmo fio de corte de uma faca. Atingida na lateral da cabeça, Regina guinchou e levou uma das mãos ao ferimento. Apressando-se, adentraram o trem-fantasma, Zoe por último, lacrando a entrada com magia negra.

— Não bastava querer morrer, quase levou todos nós junto! – ralhou Dean com Regina, em ar grosseiro e exasperado.

— Eu não pedi que me salvasse! – retrucou ela, rasgando um pedaço do vestido de modo a conter o sangramento na cabeça.

— Ora, você estava pedindo pra ser salva, exposta ao vento e...

Como se conectadas telepaticamente, Regina e Zoe tiveram o mesmo pensamento: ao mesmo tempo, bradaram um feitiço de uma palavra só; Dean continuou falando, só que de sua boca não saía um som sequer. As duas trocaram um toque de cumplicidade, batendo palma com palma, enquanto o Winchester torceu o nariz e esmurrou a parede.

— E que sirva de lição para você também! – Regina ameaçou Graham, apontando o indicador em sua direção – Até o fim desse dia, eu privo Dean Winchester da fala!

— Muito obrigada! – exclamei, eu mesma já muito irritada pela arrogância do loiro. E Gancho e August não precisaram dizer nada, a expressão deles por si só já indicava alívio.

Lá fora o vento continuava a zumbir, cada vez com mais intensidade. Me peguei imaginando que um tornado fosse apanhar nosso abrigo. As pedras de granizo surravam o teto com toda força e, com a tempestade, a energia caíra. Não havia entrada de luz natural no ambiente, de modo que Zoe e Regina tiveram de produzir iluminação por artíficio da magia. O cabelo da ruiva, antes tão impecável, dera nós nele mesmo, agora parecendo um ninho de rato. Gancho se sentara de encontro a uma parede, folheando o Grimoire com um ar interessado.

— Que espécie de feitiço vocês vão performar? – perguntou, curioso.

— Em primeiro lugar, um feitiço para secagem – falou Zoe, nos reunindo de mãos dadas num círculo. Encharcados, pingávamos água e estremecíamos de frio. Em questão de segundos, porém, fomos pegos por uma sensação de calor, como se fosse verão e estívessemos de férias na praia – Ah, bem melhor!

— Amiga! Você precisa urgente de um trato no cabelo! – guinchou Regina, fazendo menção de aplicar um feitiço nas madeixas da ruiva, que rapidamente negou a ajuda.

— Não, não, não! Não ouse tocar no meu cabelo! Eu mesma faço!

— Ora, então está bem! Talvez eu arriscasse deixá-la careca, não é?

Apesar da sensação de aconchego e, até mesmo, do alívio cômico proporcionado por Regina, nós não nos dávamos ao luxo de pouco mais de uns minutos de descanso. Nos sobressaltando, fomos surpreendidos quando o teto acima de nós foi arrancado pelo vento. Rapidamente nos deslocamos para o túnel percorrido pelos trilhos da atração; seria questão de tempo até que a cobertura ali também fosse levada pela tempestade, mas Zoe se adiantou em entoar o feitiço que já fizera antes com o guarda-sol.

— Teto, fique firme, firme como concreto!

Regina se uniu a ela e as duas passaram a entoar em uníssono. O granizo, enquanto isso, invadia a parte aberta da atração, atingindo com baques ocos os vagões do trem. O zunido do vento era um verdadeiro terror: me arrepiei da cabeça aos pés, temerosa. Os deuses, por alguma razão, haviam atingido o ápice de seu poder. Isso ou, anteriormente, eles só haviam tido a menção de nos assustar e enfezar com as outras pragas.

A meu lado, Dean cutucava com o dedão um feio calombo em seu pescoço. Gold estremeceu em ar de asco, ele mesmo refreando a vontade de raspar suas feridas com os dedos. Gancho me ofereceu uma piscadela de conforto quando o vento passou outra vez assobiando, impulsionando ar pra dentro do túnel pelas frestas nas paredes. Os constantes estouros no céu passavam a impressão de que o mesmo parecia prestes a despencar; em contrapartida, o esforço de Regina e Zoe parecia ter surtido efeito: o teto parecia tão reforçado que mesmo os granizos maiores não produziam ruídos ao se chocar contra o mesmo.  

— Ahn, garotas? – chamei, interrompendo o mantra entoado por ambas as bruxas; a ruiva se voltou para mim, as mãos ainda atadas às de Regina, compartilhando energia e força – Acho que já podem parar com o feitiço, estamos fora de risco.

Regina concordou, olhando para o teto e notando que se encontrava firmemente estável.  

— É sempre mais eficiente quando unimos forças – comentou – E então? Não devíamos fazer uso do poder ancestral agora? Essa torrente não me parece perto de acabar.

Zoe concordou com a cabeça, soltando as mãos de Regina.

— Em todo caso, ainda não acho que é o momento. Pretendo invocar as ancestrais quando finalmente alcançarmos a pirâmide. Por hora, vamos esperar que os deuses se cansem.

Somada ao vento uivante, a torrente que despencava junto ao granizo pouco a pouco se empoçava no chão do túnel. Não era o suficiente para causar uma inundação, mas nossos pés molhados chapinhavam em atrito com o chão de concreto. Cerca de cinco minutos depois, a tempestade ainda não mostrava indícios de que iria findar. Com um suspiro irritado e exausto, Regina passou a folhear o Grimoire em busca de uma solução.

— Bem, eu não exigiria que vocês se arriscassem nessa tempestade – e ela lançou um olhar feroz ao Winchester, que o devolveu com a mesma intensidade –, mas não vejo outra saída para a situação. Se ficarmos, seremos mortos, se sairmos... bem, seremos mortos de qualquer forma, mas ao menos lutando.

— E o que é que podemos fazer? – suspirou Gold, que até então estivera numa espécie de transe racional; ponderava com tanta intensidade que havia marcas profundas nos pontos em que sua testa se franzia – A não ser que saibam repelir o gelo – o que, obviamente, não sabem – eu diria que estamos fadados a morrer antes mesmo de alcançar a pirâmide.

— Talvez eu possa resolver isso – me pronunciei, falando alto por cima do ruído da chuva – Quero dizer, Graham e Gancho também não serão afetados pelo granizo; podemos procurar por algo que nos sirva de barreira...

Eis que o Caçador se pronunciou, erguendo um dedo.

— E por que é que nós temos de ir procurar, quando duas bruxas talentosas poderiam simplesmente materializar um maldito guarda-chuva?

— Porque não é assim que funciona, idiota! – vociferou Regina, fechando bruscamente o livro – Manipulamos a materialidade e os campos energéticos, não somos capazes de verter átomos em matéria.

— Ora, devia ser fácil para vocês! -  retrucou ele e Dean fez expressão de quem concordava – Eu quero dizer, de que servem as mandingas voodoo se vocês sequer estão aptas a manipular a realidade ao seu bel-prazer?

— Eu estou lhe avisando...

— E além do mais, Regina, de que vale esse seu poder se você constantemente verifica esse seu Grimoire? É óbvio que, no fim das contas, não se pode garantir que poderá nos salvar quando surgir uma ameaça que não conh...

No segundo seguinte, Graham se encontrava mudo. O Winchester riu sem produzir barulho, achando engraçadíssima a reação explosiva do rapaz, cujo primeiro ato foi atirar no chão o Grimoire. O livro ficou salpicado de água, fato que transformou Regina em uma bolha de raiva contida. Gancho e eu nos apressamos em arrastar Graham para longe do alcance da Annabelle desmanchada, antes que seu ódio vertesse pelas mãos, transformando o Caçador em qualquer coisa tenebrosa que não produzisse efeitos nocivos.

— Procurem por algo suficientemente grande que cubra a todos nós de uma só vez – berrou Zoe para nós, destrancando a porta com um gesto de mão.

Com Graham de má vontade, Gancho e eu nos responsabilizamos pela busca. O outro apenas nos seguiu, chutando as pedras de granizo que derretiam sobre o cascalho. A chuva escorria por dentro de nossas roupas, arrepiando nossos ossos. Por mais que o gelo nos atingisse, não produzia sensações de dor.

— Uma lona! – apontou Killlian, em meio ao lixo que se acumulara aos pés de uma mesa de piquenique virada do avesso. Parecia ser a cobertura de um dos quiosques, que fora arrastada pelo vento – Pode ser que sirva, não é?

— Me parece boa o bastante – comentei, puxando uma de suas pontas, listrada de laranja e branco.

Regina vinha chapinhando o solo, o Grimoire aberto sobre a cabeça, à guisa de guarda-chuva. A ventania enfunou seu vestido, revelando pela segunda vez a visão de sua roupa de baixo. Ela ignorou os olhares lascivos de Graham, ordenando que nos apressassemos em erguer a lona. Nós quatro cobertos, caminhamos de volta ao trem-fantasma, Regina murmurando uma série de feitiços. O restante do grupo já esperava à porta, protegidos pela única telha de zinco que restara.   

Tornada sólida, a lona nos protegeu em nossa marcha até a pirâmide. Com a densidade de uma camada fina de concreto, porém, reduzia nossa velocidade, uma vez que deslocávamos toda nossa força em sustentá-la acima de nossas cabeças. A ventania, por si só, era fator que também nos atrasava. Em poucos minutos, no entanto, cortamos o restante do caminho que nos separava da mais perigosa atração.

— Lá está a esfinge! – berrou Gold, apontando um dedo trêmulo em direção às formas da pirâmide e sua guardiã, que eram fustigadas pela chuva.

Deitada nas quatro patas, a criatura tinha cerca de seis metros de altura. Era semelhante à icônica Esfinge de Gizé: uma estátua cor-de-areia, com cabeça humana e corpo de leão. A diferença se encontrava em seu rosto, que, ao contrário da Esfinge de Gizé, tinha nariz. Erguendo-se ante a nossa aproximação, a esfinge soltou um rugido felino que perpassou nossos corpos com uma vibração. Agora de pé, tinha bem uns sete metros e meio de altura, suas garras se projetando, abrindo sulcos no chão.

  - Alto lá, mortais! – bradou ela, com um vozerio que lembrava um ronronar de gato amplificado dez vezes. Voltando suas pupilas vermelhas em nossa direção, fitou Gold, que era quem se encontrava à frente do grupo – Dispam-se da capa que os protege, do contrário, levarei em conta sua covardia.

— Mas não somos páreo para o granizo – retrucou Regina, atrás de Gold.

Em resposta, a esfinge ergeu sua grande pata, arrancando de nossas cabeças a lona. O granizo instantaneamente parou de cair, restando apenas a ventania e uma leve garoa. A essa altura, parte da névoa descera das montanhas para a floresta ao redor do parque.

— Encarem-me e os julgarei aptos a me enfrentar – disse a esfinge.

Por mais que sua tenebrosa presença nos arrepiasse a espinha, voltamos nossos olhares para seu rosto, que lembrava as feições de uma mulher, porém estava muito mais próximo das características de um felino. Um disco solar ornava sua cabeça, emitindo um brilho alaranjado difuso, tal como um pôr-do sol. Pendendo de seu pescoço, a cruz ansata nos lembrava de que já não dispunhamos de muito tempo.

— Agora que admito a sua bravura, digam-me, quem sou?   

Todos nos entreolhamos, conforme a esfinge pacientemente esperava uma resposta. Achei prudente não fazê-la esperar. Busquei os outros olhares, demonstrando a confiança de quem sabia o que estava enfrentando. O Winchester, ainda que desprovido de fala, com um aceno de cabeça me instigou a me pronunciar.

— Você é Sekhmet, a deusa-leoa! – bradei, com um tom de voz firme – Você é a patrona dos médicos e deusa das batalhas. Eu arriscaria dizer que nós nos equivocamos; depositamos no altar de Anúbis a responsabilidade pelas pragas, mas é você, Sekhmet, a deusa das epidemias.

Os olhos felinos brilharam. Em ar de aprovação, a cabeça da esfinge meneou para o lado, como um gesto de reconhecimento.

— Você está correta! Sou Sekhmet, filha da ira de Rá. Espalhei as pragas que confrontaram. O altar de Anúbis foi mera manipulação; castiguei-o, enviando-os a seu encalço. Sem corpo, ele se encontra débil e fora de ação. – ela fez uma pausa, na qual nos fitou – E não perguntarão o porquê de meus atos?

— Por que, ó deusa Sekhmet? – questionou August, quando ninguém pareceu ter coragem suficiente para fazê-lo.

— Porque apesar de ser uma deidade, Anúbis conserva algo de humano. É insolente e desrespeitoso como um homem. Eu o castiguei por negar minha impetuosidade – ela se voltou para mim – Agora, senhora sábia, dou-lhe carta branca para prosseguir. No entanto, aos que restaram, ofereço um enigma: decifrem-no e caírei derrotada; falhem e os devorarei de um só bote.  

Abrindo uma brecha na passagem, ela ergueu uma das patas dianteiras. Muito embora os outros detivessem expressões receosas, eu sabia que não devia demonstrar hesitação. Passei por baixo do corpo da estátua, alcançando a entrada da pirâmide. Me detive à porta, aguardando os outros. E se falhassem em decifrar o enigma, eu, sozinha, teria alguma chance contra os deuses?

— Pois bem, assim os desafio: do seio da terra ao vácuo do firmamento, quem de dois provém sustento? Cuidado, mortal, não vá se precipitar, pois quero ouvir de um sopro acertar: aferrolhado, sob a pena padeceu, morto de um golpe pelo Rei que o sucedeu. Duas charadas vertidas em uma decifração, um passo à frente quem tiver a solução.

Calando-se, a esfinge baixou a guarda, sentando-se sobre as patas traseiras. Com a minha visão ocultada pelos seis metros de estátua, não pude ver o restante do grupo, mas imaginava que exprimissem feições de desespero.

Era provável que ela não me deixasse responder o enigma, mesmo que eu detivesse a resposta correta. De qualquer forma, parecia ter exaurido meu raciocínio ao constatar que a esfinge era, na verdade, personificação da deusa Sekhmet. Dentro de mim, uma fagulha parecia prestes a se acender. Algo em mim detinha as respostas de que precisávamos; no entanto, elas me escapavam toda vez que eu tentava interpretar os lampejos que me passavam pelo terreno das ideias.

      Passados alguns minutos, a esfinge começou a impacientar. Erguendo-se novamente, produziu no fundo da garganta um rugido exasperado. Suas garras dianteiras se fecharam sobre o cascalho, cavando dois grandes buracos na terra.

— Avante, mortais, elejam seu representante! Falhem na solução e não os pouparei; do contrário, admitida a ignorância, apenas uma vida será sacrificada.

Foi a voz de Agust que ouvi se pronunciar. Pelo atrito pesado do cascalho, pude notar que ele caminhava corajosamente em direção à esfinge, se auto-elegendo representante do grupo.

— Pois bem, Sekhmet, você nos desafiou com duas charadas, mas exigiu uma resposta unificada. O seu enigma se responde com: Geb, o deus da terra, que aprisiona Seth, o deus do caos.

Emitindo um ruidoso grito felino, Sekhmet fez estremecer o solo. Me amparei às paredes da pirâmide, evitando ser derrubada pelo tremor. No segundo seguinte, rachaduras atacaram o corpo da esfinge, que por fim foi vertida em pó e pedregulhos. Com o caminho livre, meus amigos puderam passar, August à frente do grupo, ostentando um largo e orgulhoso sorriso.

— PUTA QUE PARIU! – fez Regina, trêmula e agarrada ao Grimoire – Desta vez, considerei que nossas vidas iriam para as cucuias.

— Aug, como é que soube a que deuses ela se referia? – perguntou Killian, incrivelmente surpreso.

— Ora, vocês subestimam a minha inteligência! – respondeu Pinóquio – A minha juventude desperdiçada em RPG’s e HQ’s mitológicas por fim rendeu frutos...

***

07h59min

Um túnel à esquerda

Modificada, a pirâmide passara de atração a cama-de-gato. Se antes falseava situações para nos pregar sustos, agora encontrava-se mais parecida, literalmente, com uma verdadeira tumba. Túneis estreitos e de teto baixo formavam um labirinto, direcionando-nos a passagens sem saída e, pior ainda, perigosas galerias.

Iluminadas por archotes, as paredes de pedra cinzenta crua nos isolavam uns dos outros; por alguma razão, fosse magia ou arquitetura, absorviam os sons produzidos dentro da pirâmide. Se gritássemos, ninguém nos ouviria; após separarmos-nos do restante do grupo, não mais ouvimos seus passos e vozes abafadas.

Encontrava-me em companhia de Zoe, Dean e Gancho. Não que fossemos partidários da presença do Winchester, mas precisáramos equilibrar as forças nos dois grupos: uma bruxa poderosa, um caçador experiente, um conhecedor da mitologia egípcia e um que somava força física. Agora, caminhando em silêncio, percorríamos tunéis à procura das crianças. Obviamente, para nosso desespero, nem mesmo os deuses se encontravam à vista.

Após dobrarmos à direita ao final de um longo túnel, topamos pela segunda vez com uma galeria. Ao contrário da vaziez da galeria anterior, esta detinha escrituras hieroglíficas nas paredes e uma representação em tamanho real do deus Toth: um humano que ornava uma máscara do pássaro íbis e portava, numa mão, a cruz ansata e na outra um cetro.

— Faz sentido – comentei, atirando a cabeça para trás de modo a enxergar onde terminavam as paredes; o teto era baixo, mas as paredes haviam sido construídas de modo a falsear a sensação de que o espaço era mais amplo – Atribuíam ao deus Toth a criação dos hieróglifos.

— O deus escriba – comentou Gancho, acariciando com o indicador os hieróglifos em baixo relevo – Por que será que Brendon se apossou de Toth como sobrenome?

 - Admiração, eu diria...

Zoe fitava a estátua, quase como se esperasse que a coisa fosse criar vida.

— Ah, eu tenho uma teoria... E se Brendon for Toth em pessoa?

Franzi as sombrancelhas.

— Então Toth estaria fazendo uso do corpo de Brendon?

— Claro! Por que outro motivo Brendon faria parte de uma loucura dessas, a não ser pelo fato de ser o receptáculo de um deus? Eu quero dizer, se ele se auto-intitulava um sacerdote, talvez soubesse que era especial.

Dean produziu ruídos no fundo da garganta, expressando a necessidade de falar. Zoe, no entanto, balançou a cabeça.

— Nós o privamos da fala até o fim do dia, lembra? Não acho que tenha algo inteligente a acrescentar.

O loiro revirou os olhos e se afastou em direção a uma parede, onde se pôs a examinar hieróglifos.

— Se Toth se apossou de Brendon, talvez tenha partido dele a motivação para todo esse plano – eu disse, o indicador apoiado ao queixo, conforme pensava alto – Ele é um matemático, não seria difícil pra ele projetar essa pirâmide.

— Claro! – os olhos de Zoe brilharam – Isso explica um egiptólogo recém-formado ter noções de arquitetura. Era Toth o tempo todo! E os pergaminhos retirados da Arquivologia, Toth saberia ler a escrita hieroglífica.

Killian concordava com o raciocínio, mas balançou a cabeça.

— Ainda assim, não explica o principal: o que as crianças têm a ver com tudo isso? E mais: o que Liam tem a ver com tudo isso?

 Dean raspou a garganta com insistência, até que Zoe, bufando, suspendeu por alguns instantes o feitiço que o emudecia.

— Está bem, Winchester, é melhor que seja importante!

— Um ritual – ele disse, um tanto rouco por ter passado tanto tempo sem usar a voz – Estamos no centro de um pentagrama, não há separação entre nós e o submundo, e deuses estão no comando. Eles querem performar um ritual! Algo para o qual precisem das crianças e dos primogênitos, do contrário, não levariam seu irmão nem o marido da mexicana. E mais: uma esfinge guardava a entrada; por que mais ela estaria lá, a não ser para nos dificultar o resgate das crianças?

— É claro, ainda há o fato de nos manterem distraídos – falei – Eles estão aguardando... Se quisessem nos matar, já o teriam feito.

— Sim, mas aguardando o quê? – Zoe botara as mãos na cintura, o olhar perdido.

Silenciamos por um tempo, pensando com nossos botões. Foi então que Gancho soltou uma interjeição de súbita descoberta, completando o raciocínio.

— O Sol! Estão aguardando o Sol! Era essa a mensagem de Gabriel!

A ruiva franziu a testa.

— Okay, onde o Sol entra nessa história? Se Rá tivesse que dar o ar de sua graça, já teria o feito... amanheceu há duas horas...

— O nascer do sol é fraco, comparado ao ápice do nosso astro... – raciocinei – ...assim como o pôr-do-sol...

— O SOL DE MEIO-DIA! – bradaram Killian e Dean em uníssono.

— Puta que pariu! – exclamou Zoe, tal como faria Regina se estivesse presente – Como esses desgraçados são astutos!

 - Como nós somos astutos! – corrigiu Dean, envaidecido.

— Antes que eu me esqueça, você está de castigo! – retrucou a bruxa, para a infelicidade do loiro, que fechou a cara ao perder novamente a fala – Certo, temos umas quatro horas até o meio-dia, o que é que vamos fazer?

— E não era você que dizia ter uma carta na manga? – ergui as sobrancelhas, cruzando os braços.

— Eu tenho! Não sei mais se surtirá algum efeito...

— Se ao menos nos dissesse do que se trata...

— Não posso me arriscar. Essas paredes podem ter ouvidos...

E, de fato, tinham.

***

08h16min

Um túnel afunilado

— Um eclipse – repetiu Zoe – Ao meio-dia. Performado por uma bruxa. Vocês só podem estar loucos!

— Você poderia invocar o poder ancestral – justifiquei, minhas pernas latejando, ameaçando cãimbras.

— Não era a isso que me referia quando mencionei as ancestrais – retrucou ela, finalmente demonstrando sinais de exaustão; seu rosto corara pelo esforço de descer pelo túnel em posição agachada e sua voz era entrecortada pelo esforço da respiração – Bruxas não manipulam o Cosmos! Deuses é que estão aptos a fazer isso.

— Ótimo! – a voz de Gancho ecoou pela pedra. Ele se encontrava alguns degraus mais abaixo, à frente de todo o grupo – Então invocaremos Rá. Ele manipulará a luz do sol, impedindo seja lá o que for que os deuses queiram fazer com ela.

— É mesmo um inconveniente não termos meios de nos comunicar com Sam... Se a essa altura Rá não nos proveio com ajuda, não atenderá as nossas orações.

— E o que diabos vamos fazer então?

— Eu não sei, Gancho! Espere até chegarmos ao fim desse maldito túnel!

Após deixarmos a galeria anterior pelo mesmo túnel que nos levara a ela, descobrirámos num canto escuro um alçapão que descia a um nível mais abaixo do subsolo. Extremamente próximas, as paredes formavam um corredor apertado cujo teto se encontrava pouco mais de um metro acima do chão. Estreitos degraus de pedra auxiliavam na descida, mas a falta de corrimões nos obrigava a ter cuidado redobrado: ninguém queria arriscar dar um passo em falso e quebrar o pescoço.

Cogitáramos que o túnel fosse dar em uma câmara, que bem poderia ser equivalente à Câmara do Rei. Em nosso raciocínio, pensamos que, se os túneis e galerias formavam labirintos e passagens sem saída para nos confundir, a estrutura da pirâmide bem podia seguir a mesma lógica de uma pirâmide verdadeira.

— Eles construíam labirintos e armadilhas de modo a confundir os saqueadores, não é? – dissera Gancho, que, convenientemente, passara tempo suficiente com Belle para absorver algum conhecimento – Se essa pirâmide for equivalente a uma verdadeira, talvez as crianças se encontrem na Câmara do Rei. Belle disse que era onde jazia o Faraó mumificado, assim como seus bens materiais. Se as crianças são valiosas aos deuses, faz sentido que estejam sendo mantidas nessa câmara.

No entanto, era improvável que tivessemos tão fácil acesso a ela. Eu achava que se tratava de uma armadilha, ainda mais pelo fato de termos topado com o alçapão por “acaso”. Zoe, porém, compartilhava de outra opinião.

— Bem, se não se tratar da Câmara, não pode se tratar de uma armadilha, tampouco. Se quisessem armar uma arapuca, não fariam isso de modo tão óbvio – dissera ela.

Agora, poucos metros do fim do túnel, eu era obrigada a concordar. Embora nos deslocássemos à luz de lanternas, o rastro de luz que vinha do final do túnel colaborava em iluminar boa parte do caminho. Faltando poucos metros para o fim, Zoe errou o degrau abaixo de onde se encontrava e, com um grito, escorregou escada abaixo até ser detida pelo corpanzil de Killian. Soltando palavrões e uma interjeição de dor, ela se apressou em passar à frente de Gancho, praticamente pulando por cima de sua cabeça. Atrás de mim, Dean emitiu um muxoxo de desaprovação.

— Zoe! – chamou Killian, descendo os dois últimos degraus e se erguendo para saír do túnel – Mas que diabos! Por que sempre teima em ser a primeira?  

— Vocês são absurdamente lentos! – ouvi a ruiva retrucar, quando finalmente alcancei a saída do túnel.

Ora, se aquele ambiente não era a Câmara do Rei, então eu não sabia o que era. Amplo e ricamente decorado, tratava-se de um aposento quadrangular, em cujo centro encontrava-se um sarcófago folhado a ouro. As paredes, absurdamente tingidas, pareciam refletir a intensidade e pompa que por si só era o sarcófago; a arte, tipicamente egípcia, retratava figuras numa cena mortuária.

Detive minha atenção na urna funerária, que Zoe e Killian faziam força para abrir. Feito de madeira, o sarcófago tinha na tampa a figura entalhada de um homem deitado, as mãos cruzadas sobre o tronco, uma coroa faraônica à cabeça. Talvez fosse a excitação de pela primeira vez ver um sarcófago, o fato era que eu sentia algo de intuitivo com relação àquela urna. Tratava-se de alguém significativamente importante, sem dúvidas; do contrário, não se encontraria naquela sala, naquela tumba.  

— Dean, uma ajudinha aqui – pediu Zoe, tentando enfiar as unhas pela fresta entre a tampa e o corpo do sarcófago. O loiro obedeceu prontamente, como se desesperado em ser útil.

Me uni à tentativa, desejando que houvesse por ali alguma alavanca que facilitasse nosso trabalho. Dean tentava impulsionar a tampa com um canivete, mas só conseguiu lascar um pedaço da madeira.

— Eu já sei! – Zoe bateu as duas mãos sobre a tampa, enraivecida – Foi lacrado com magia! Era de se esperar... Não me olhe assim, Winchester! Esse feitiço é inquebrável, só pode ser removido por quem o lançou.

— Ah, mas que adorável! – suspirou Gancho – Uma múmia em cativeiro!  

— Ele deve ter sido alguém importante...  

Quando o lampejo passou pela minha percepção, eu o agarrei antes que se dissolvesse entre o restante de meus pensamentos. A cena! O painel que eu ignorara antes detinha a resposta de que precisávamos. Bastou um rápido exame da pintura para que, tal como uma charada de esfinge, a trama dos deuses se resolvesse por completo na minha cabeça, um enigma que chegava ao fim. Soltei uma risada histérica, completamente desacreditada.

Eu sabia o que eles iam fazer.

— Que é isso? – perguntou Killian, repentinamente.

Um som abafado, que se parecia com o zumbido de um aparador de grama, ecoava ao longe. Apreensivos, nos colocamos em posição de defesa. A câmara em que nos encontravámos dava passagem para uma extensa e ampla galeria. A única outra saída era o túnel pelo qual descerámos.

 Cada vez mais próximo, o som tomava formas mais distintas. Agora era possível identificar que o que parecia o zumbido de um cortador, nada mais era do que o bater de milhares de asas. Percorrendo a galeria, o ruído mascarara os gritos de nossos colegas: aos trancos e barrancos, Graham e Gold se lançaram em nossa direção, seguidos de perto por Regina e August. “Corram”, suas bocas pronunciavam, as vozes inaudíveis em meio ao estardalhaço da ameaça que se aproximava.

Nos precipitamos pelo túnel que dava no alçapão. Limitados pela altura e largura do espaço, engatinhamos escada acima, não tão rapidamente quanto a situação exigia.

— August! – ouvi Regina gritar, quando Pinóquio soltou um gemido agoniado. Contrariando o que era esperado de mim, virei o pescoço ao invés de seguir em frente sem olhar para trás.  

— ANDEM! – berrou Gold, alguns degraus acima, apressando Graham, Zoe e Gancho, que se acotovelavam para conseguir subir.

Se pudesse falar, Dean gritaria comigo. Ao invés, me empurrava. Com a outra mão ele tentava arrastar Regina, mas ela se desvencilhou e deu meia-volta.

Descobri tarde demais o motivo dos guinchos de August. Produzindo um ruído infernal, a nuvem de gafanhotos invadiu o túnel. Atando-se às minhas roupas, os insetos me provocaram aflição, sacudindo as enormes asas e arranhando a minha pele. Agitando os braços, tentava afastá-los do meu campo de visão, mas a minha tática não surtia efeito. Não éramos páreo para aquela quantidade de insetos.

Extremamente aflita, inquieta e nauseada, perdi o sustento. Escorreguei do degrau, caindo por cima de Dean, que – sei lá como – manteve-se firme e conseguiu me amparar. Parei de me mexer, de modo a não arriscar desestabilizar seu equílibrio. Apertei os olhos e retesei os músculos, esperando que aquela tortura findasse.

Não sei quanto durou, mas quando finalmente abri os olhos, havia grandes gafanhotos presos ao meu cabelo. Dean gentilmente arrancou um deles de lá, atirando-o para longe com um peteleco. Tentei me livrar do outro, mas nesse momento avistei Regina, caída à entrada do túnel. Ela tentava se erguer e não conseguia, coberta de insetos. Eles já não voavam sobre nós, mas se amontoavam pelo túnel, em nossos corpos e na escada.

Dedos ossudos agarraram meu braço. Gold, ele voltara para nos buscar. Gritei por Regina e Dean me largou para ir em seu socorro. Gold agora me puxava, alheio aos gafanhotos que escalavam seu terno.

— August ainda está na câmara! – disse a ele, um tanto esganiçada.

Erguendo Regina, Dean tentou subir com ela nos braços, mas era impossível, na escada íngreme e de teto baixo. Gold se espremeu pelo lado deles para chegar à câmara, enquanto estendi a mão para agarrar a de Regina. Ela se machucara ao cair da escada: exibia uma escoriação na perna direita e uma de suas canelas virara uma bolota arroxeada.

Retomamos a subida, Zoe e Gancho às voltas com os gafanhotos, enquanto Graham desceu para nos ajudar. Dean amparava Regina por trás, enquanto eu vagarosamente a auxiliava na subida. Quando por fim alcançamos o alçapão, Killian já se livrara de todos os insetos que o atormentavam. Ele me puxou para cima, oferecendo a mão a Graham em seguida. Puxamos Regina depois, enquanto Dean desceu para ajudar Gold e August, que se encontravam nos primeiros degraus da escada.   

— Foi horrível! – choramingava Regina, espalmando as mãos no chão, tentando se sustentar na perna machucada.

— Tirem isso de mim! – esganiçou-se Zoe, incapaz de livrar-se de um gafanhoto que ficara preso aos seus cachos. Gancho o agarrou com um movimento brusco, fazendo a ruiva protestar quando arrancou um tufo de cabelo na manobra.   

— Eu vou matar esses desgraçados! – Regina tossiu, praticamente alheia à quantidade de gafanhotos que ainda estava por cima dela – Zoe, eu perdi meu Grimoire!

— ONDE?!  

— Não sei, não lembro mais em que momento deixei cair...

— Aqui está! – Gold acabara de sair pelo alçapão trazendo o livro – Você o largou na escada.

A ruiva assumiu um ar de censura, exausta o bastante para soar plácida, mas austera o suficiente para soar rígida.

— Regina, o Grimoire é nossa religião, não o perca. Nunca.

August subiu empurrado por Dean. Se encontrava em estado de choque: trêmulo, a boca seca e o rosto branco. Tinha pavor de insetos.

Por instantes, nos limitamos a recobrar o fôlego. Os gafanhotos chiavam, se movendo pelo espaço. Ainda nos livrando dos insetos, evitamos nos aproximar das paredes, ocupadas pelas criaturas. Minhas narinas se encontravam em chamas, o esforço para respirar exigindo total capacidade dos pulmões e vias nasais.

Dean despiu a camisa de uniforme de vigia noturno, que usava desde a nossa ida à faculdade; suado, ele arfava sofregamente, buscando algo com que matar a sede. Apanhou de um dos bolsos uma frasqueira, bebericando de seu conteúdo e nos oferecendo o mesmo em seguida. A bebida desceu amargando, mas produziu em meu corpo o efeito que eu precisava; estremeci, retomando as forças, tentando esquecer o que se tornaria um novo trauma.

Regina liberou Dean do castigo, quando ele sinalizou que precisava falar.

— Nós derrotamos a maldita Sekhmet, isso devia por fim as pragas! – exclamou, alongando os braços e o quadril.  

— Nós derrotamos a esfinge— corrigi – Sekhmet apenas nos liberou a entrada.

— Tem que haver um meio de abater esses malditos! Zoe, estou falando sério, você precisa pensar em algo.

 - E já pensei, Dean! Você ouviu Sekhmet: sem um corpo, eles se tornam débeis espíritos. Temos de destruir os receptáculos! Como, eu não sei...

— Como é que fez aquele lance do coração? – perguntou Gancho, amparando August, cujo corpo respondia ao medo com intensos tremores.

— Magia negra – respondeu ela, puxando os fios ruivos para trás de modo a enxugar o suor da testa – Mas não há meios de eu conseguir fazer isso outra vez. Com Anúbis, me aproveitei de um momento de distração.

 - Ótimo, então os distraíremos! – falou Gold, tentando ajeitar o terno, como se isso fosse livrá-lo dos vincos amarrotados – Pensarei em algo.

— E agora? – questionou Graham, a quem Regina decidira devolver a fala – Já passamos pela oitava praga e em breve enfrentaremos a penúltima. Vamos continuar percorrendo túneis sem fim até cairmos na total escuridão?

— Antes de qualquer coisa, eu sei o que eles pretendem fazer... – me pronunciei e todos os olhares se voltaram na minha direção; alguns esperançosos, outros amedrontados. Não saber era desesperador, mas saber era igualmente angustiante.

Abri a boca para dispersar as informações, mas neste exato instante, um tenebroso ruído perpassou as paredes. A essa altura, os gafanhotos se locomoviam debilmente, inofensivos e totalmente alheios à nossa presença. A nova ameaça, no entanto, se aproximava em maior número, com maior velocidade e maior potência. August guinchou, angustiado, encolhido a um canto. Dean agarrou o archote mais próximo de sua cabeça, parecendo saber do que se tratava o ruído.

— Garotas, precisamos de fogo – disse, incrivelmente sério, ainda assim muito calmo.   

— Não pode ser o que estou pensando... – gemeu Regina, a face lívida.

O loiro soltou uma risada.

— Você também assistiu A Múmia, não é?

Graham se esganiçou, de olhos esbugalhados.

— Não me digam que são escaravelhos carnívoros!

Bastou que pronunciasse a última sílaba. De um rompante, bolotas pretas começaram a cair do teto. Não precisei pensar duas vezes: vertendo todas as minhas forças para as pernas, saí em desabalada carreira pelo túnel. Se havia algo que eu detestasse mais entre os invertebrados, esse algo eram os besouros. Naquele momento, meu egoísmo veio à tona. Abandonando os outros, pensei apenas em mim própria.

Atrás de mim, outros passos ecoavam. Dean berrava com Regina, enquanto a mesma se queixava de dor. Dobrei a primeira esquina, tomando um caminho à esquerda. Sem tempo para raciocínio, me deixei levar pelo meu desespero, movendo-me em direção aos corredores que facilitavam meu deslocamento. Parei, enfim, ao alcançar uma passagem sem saída. A parede exibia um painel entalhado, retratando as figuras de Osíris, Néfts, Ísis e Seth.

Virei o pescoço, me aliviando ao descobrir que os escaravelhos se limitaram a permanecer no outro túnel. Retornei até a junção entre os corredores, buscando avistar algum dos outros. Por dentro das paredes, mais insetos se deslocavam. Fugi para longe da movimentação, que se assemelhava aos guinchos estridentes de um bando de morcegos. Dobrei um túnel que até então não me lembrava de ter percorrido. Segui por ele, que ia se afunilando à medida que também ia se tornando cada vez mais íngreme.

Terminando em uma câmara gelada e de aspecto sombrio, furtivamente adentrei a mesma, mantendo-me colada à parede. Inicialmente silencioso, o ar reverberou ruídos. Passos soaram do outro lado da câmara, alguém vinha se aproximando por outro túnel. Pelo ritmo da respiração e peso das passadas, eu sabia que se tratava de Dean.

— Dean? – chamei, quando divisei apenas seu vulto na penumbra. Por algum motivo, apenas uma luz pálida proveniente de uma tocha iluminava o centro da câmara.

— Ruby! Graças aos céus! – ele soltou a respiração e atravessou o espaço vazio para me alcançar – Me perdi nos malditos túneis, não sei mais onde estão os outros... Você está b...

Com um baque surdo, algo despencou no subsolo. Agarrei a tocha, tentando arrancá-la do suporte de pedra que a mantinha de pé. O loiro soltou um murmúrio abafado, praguejando do fundo de um buraco. Verti meus últimos resquícios de energia em forças para os meus braços; ergui a tocha do suporte com ambas as mãos, produzindo um som rascante com a brusquidão da manobra. Dean se encontrava em um fosso, em meio a um amontoamento de víboras.

— Ruby, uma corda, alguma coisa! – gritou ele, mantendo imóvel uma serpente amarelo-esverdeada. Presa pelo pescoço, ela agonizava sob o peso do rapaz, que caíra bem onde ela se encontrava. À volta dele, outras quatro deslizavam ameaçadoras, como se aguardando o momento propício de dar o bote.

— Eu não tenho nada em mãos! – gritei de volta, me decidindo se era inteligente tentar afastá-las com fogo.

— Puta merda!

— Se você se erguer talvez eu consiga agarrar suas mãos.

Ele riu nervosamente.

— Não seja boba, mais provável que eu a arrastasse para o fosso com meu peso.

Passos leves se aproximaram, descendo pelo mesmo túnel que me levara à câmara. Pelo ritmo falho das passadas, imaginava que fosse Regina.

— Winchester, é você? – perguntou em um eco, mancando câmara adentro. Se aproximou quando me viu agachada à beira do fosso – Meu Deus do céu! Winchester, se queria se matar, que o fizesse bem rápido!

A essa altura, as víboras se erguiam para a presença de Dean, mas não atacavam. Ou se excitavam ante o prazer de brincar com seus nervos, ou não tinham pretensão de irromper sobre ele. Sem condições de performar um exame mais atento, eu não tinha muita certeza de que fossem venenosas; apostava, porém, que não se encontrariam trancafiadas em um fosso caso fossem dóceis.

Regina agachara ao meu lado, o Grimoire aberto à sua frente. Dean se impacientava, seu peitoril descoberto brilhando de suor. Após folhear metade do livro, a bruxa se convenceu de que não havia um único feitiço relacionado a serpentes.

— Está bem, é melhor isso funcionar – ela passou a mão pela testa, afastando os fios de cabelos que se prenderam a ela com suor – Rezem para que meu latim enferrujado dê conta.

Falando com bastante clareza, ela começou a se dirigir a Wadjet, a deusa das serpentes. Compreendi pelo contexto das palavras que ela dizia algo como “Wadjet, Rainha das Serpentes, conceda-me um pedido. Livrai-nos do veneno mortal, tornai-nos resistentes”. Após mais duas repetições, Regina se calou. Esperara que um indício sobrenatural confirmasse o efeito de sua oração.

— Não funcionou... – murmurou ela, me oferecendo um olhar desesperado – Talvez só funcione em egípcio antigo.

— Ahn... – fez Dean, movendo as pernas – Eu acho que as víboras não são exatamente a nossa preocupação no momento...

Algo relativamente pesado e grande se movia no canto mais escuro do fosso. As víboras, voltando-se para o som, deslizaram em direção às sombras. Erguendo-se com cuidado, Dean se certificou de que a víbora que estrangulava não o atacaria. Nas pontas dos pés, tentou agarrar a beirada da abertura do fosso, mas seus braços não a alcançavam.

— Ruby, segure as minhas pernas! – mandou Regina.

— E a sua lombalgia? Deixe que eu faço! – dobrei meu tronco para baixo, esticando meus braços para o Winchester, que conseguiu agarrar meus pulsos. Fazendo força, tentei puxá-lo para cima, mas é óbvio que sequer o ergui do chão.

— Andem logo! – berrou ele, quando a coisa nas sombras começou a sibilar, deslizando pelo chão de areia.

— Não somos suficientemente fortes! – berrei de volta. Lançando um olhar em direção ao sibilo, vi um par de olhos amarelos brilhando na penumbra. A língua se movia rapidamente, captando as vibrações no ar, enquanto o corpanzil pesado e maciço se desenrolava lentamente.   

— Regina, o que está fazendo?! – Graham nos sobressaltou com sua repentina chegada. Aproximou-se do fosso, apenas para hesitar ante o sibilado.

— O que está esperando?! Tire ele de lá! – indignou-se a Rainha, enquanto usei um tom de voz mais afável para dirigir-me a ele.

— Grammy, eu reconheço a sua fobia, mas sozinha eu não consigo!

— Andem logo! – gemeu Dean, entredentes.

Fosse o desespero de Dean ou fosse uma lufada de coragem, o fato é que Graham me imitou e, como fosse um pouco mais alto, Dean conseguia agarrar seus antebraços. Um tanto nervoso, o Caçador desviou sua atenção quando a serpente começou a se deslocar para Dean. De cabeça triangular do tamanho de uma bola de basquete, a víbora tinha escamas sobrepostas e uma coloração cinza-chumbo opaca. Abrindo a bocarra, ela projetou para fora suas presas.

— ANDEM LOGO!

Reagindo, Graham se muniu de todas as suas forças. De um só impulso, arrastou o loiro por metade do caminho. Regina se adiantou em agarrar um dos bíceps do Winchester, somando à força de Graham. Juntos, eles quase o puxaram completamente do buraco. A víbora deu um bote, errando por centímetros o pé direito de Dean. Agarrei a cintura de suas calças, ajudando Grammy e Regina a terminar de içá-lo bem a tempo de a cobra dar um segundo bote.

— Puta que pariu, Dean! – chiou Regina, caída por baixo do Winchester. Arfando, ele se arrastou para o lado, tombando no assoalho.

— Essa... foi por pouco... – balbuciou ele, respirando aceleradamente – O...obrigado!

— Não tem de quê! – respondi, me erguendo antes que minhas pernas cedessem ao cansaço – O que era aquela coisa?

— O mal -  falou Regina, sentada de pernas cruzadas. Se abanava com uma das mãos, recuperando-se do susto. Grammy, em contrapartida, se mantinha em silêncio, seus ombros tensos ante a proximidade com as serpentes – Vamos sair daqui, antes que Graham saia correndo chamando pela mamãe.

— Cala a boca, Regina! – retorquiu ele, trancando as mandíbulas e recusando-se a oferecer a mão para ajudar a bruxa a se erguer.

— Ora, não fique assim! – ela sacudiu a poeira do vestido – Não é vergonha nenhuma. Aug tem medo de insetos...

— Eu agradeceria se vocês calassem a boca! – Dean se levantou um tanto cambaleante, o estresse novamente se apossando de seu humor.

— Ora, cale-se você, Winchester— retrucou Graham, suas sobrancelhas formando um vinco de irritação na testa –, antes que eu o atire outra vez no fosso.

Nem bem ele terminou a palavra fosso, a gigantesca serpente se projetou do buraco, surpreendendo-nos. Joguei meu corpo para trás bem a tempo de ser golpeada pela cabeçorra que se agitava no ar.  

— PUTA QUE PARIU! – berraram Dean e Regina em uníssono, esta última me agarrando pelos ombros para me fazer levantar. Corremos os três em direção à saída, mas Graham, estático, encontrava-se amedrontrado demais para conseguir se mexer – GRAMMY!

Foi a primeira vez que vi Regina se dirigir a ele com angústia. Erguendo-se três, quatro, cinco metros acima de Graham, a serpente se precipitou para ele, a bocarra aberta exibindo grandes presas de uns quinze centímetros. Mirei meu revólver, enquanto Regina mirou uma bola de fogo na víbora, acertando o alvo bem na cabeça. Embora pendendo para o lado, a serpente não se queimou. Irada, girou o pescoço na direção de Graham, passando seu corpanzil pela cintura do homem. De um só puxão, ela o arrastou em direção ao buraco, eu e Regina nos apressando a lhe agarrar os braços antes que batesse no fundo do fosso.

Ainda que nossa força conjunta equilibrasse a força vertida pela víbora, ela era muito mais vigorosa. Dean foi vitorioso em acertá-la com uma tiro, mas a criatura quase parecia não sentir nossas tentativas de machucá-la. Esperneando, Grammy lhe deu um chute na cabeça; nós o puxamos mais uma vez, a distração da serpente forçando-a a ceder o aperto no corpo dele. Dean encravou nela seu canivete, enquanto instigava Graham a continuar com os chutes. Confundida pelos estímulos dos dois homens, ela fraquejou quando Regina lhe atirou outra bola de fogo. Afrouxando o aperto, escorregou o corpo para as pernas do Caçador, que com mais alguns chutes se livrou do domínio da cobra.

Nós o carregamos para longe, Dean erguendo suas pernas. Assim que alcançamos o início do túnel, Regina se voltou para o fosso. Produziu um intenso fogo azulado, como o que eu vira Zoe produzir na choupana. Não permanecemos na câmara para vê-lo queimar as víboras em seu ninho.

— Você está bem? – Regina passou as mãos pelo rosto de Graham, quando, já no túnel, o depositamos no chão. Ela amparou em seu colo a cabeça do homem, que mais ofegava do que tremia.

— Eu fui picado? – perguntou ele, erguendo-se de modo a verificar as próprias pernas. Com exceção das manchas roxas pela interrupção abrupta da circulação, ele se encontrava perfeitamente normal.

— Você é imune, bobinho! – lembrei, parada acima dele. Regina balançou a cabeça.

— Você teve sorte, Graham! Uma criatura dessas certamente seria capaz de passar pelo feitiço de Joana. Você estaria morto, a essa altura.

— Bem, então lhes devo a minha vida – murmurou ele, sentando-se de encontro à parede.

— De nada! Eu certamente esfregarei isso na sua cara muitas vezes.

— Regina! – chamou Dean, mais abaixo na saída do túnel – É melhor lacrar aquele fosso, antes que mais alguém caia nele.

Graham se voltou para mim, me fitando com os olhos caídos de cansaço.

— Ruby, o que é você ia nos contar antes dos escaravelhos?

Suspirei, afastando do rosto uma mecha de cabelo.

— Eu sei que ritual eles vão performar...


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Notas finais do capítulo

Enquanto não retorno com o próximo, que tal aquele comentário pra me dar uma moral?

PS.: Eu não vou matar a Mary



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