'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 1
A Caça & O Caçador


Notas iniciais do capítulo

Hey people! Finalmente a fic nova. Quem já acompanha minha outra fic (Como irritar um capitão pirata), sabia que eu estava preparando esta. Resolvi postar um pouco antes do esperado. Não deixem de ler as notas da história porque falei algumas coisas importantes lá. Já tenho o segundo capítulo quase pronto, mas só vou continuar a postar se tiver uma quantidade razoavel de leitores. Outra coisa, como vou começar mais uma fic nova, talvez não tenha tempo de atualizar esta toda semana. Provavelmente vou atualizar esta uma semana sim e outra não. Quem me conhece sabe que costumo escrever capítulos grandes, então aproveitem. Usei a música da Lily Allen porque achei que esse refrão combinava com o capítulo. Enfim. Espero que gostem e não deixem de comentar. Aceito críticas e sugestões.



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“I don't know what's right and what’s real anymore

I don't know how I'm meant to feel anymore

When do you think it will all become clear

'Cause I'm being taken over by The Fear”

The Fear – Lily Allen

Seattle, Washington. Ano 2031.

O ruído de meus passos contra o asfalto era o único som audível. Uma chuva fina começara a cair e a lua cheia brilhava no céu. As ruas estavam desertas àquela hora, exceto as avenidas principais, essas estão sempre movimentadas. A chuva aumentou e coloquei o capuz da blusa para me proteger. Um vento frio chacoalhou as árvores e os postes da rua piscaram.

Os pingos de chuva caíram com mais força e comecei a correr para chegar em casa antes da tempestade. Um relógio bateu a meia-noite e a lua brilhou com mais intensidade. Escorreguei na calçada molhada e caí com um baque.

– Merda! – praguejei.

Levantei-me devagar e acabei por constatar que não me machucara muito, apesar de ter batidos os joelhos com força quando caí. Continuei meu caminho, dessa vez sem correr. A chuva aumentou ainda mais e ainda tinha que andar mais uns quarteirões. Se a droga do carro não estivesse no conserto...

Um cão uivou ali perto e todos os cães da vizinhança uivaram e latiram em resposta. Ri achando graça. Outro uivo, desta vez mais perto.

Não achei que corresse perigo. Sou um tanto inconseqüente e não me preocupei com o fato de estar sozinha àquela hora. Se alguém tentasse me violentar ou assaltar – e isto é comum nesta cidade – ninguém apareceria para me salvar. Mas não pensava nisso, gostava dos riscos...

Parei assustada quando vi dois enormes olhos amarelos me encarando. Um enorme cão negro estava parado do outro lado da rua. Tinha um pelo lustroso e era duas vezes maior do que um cão comum. Mas aquilo não era um cão...

Noite de lua cheia, meia noite, um cão uivando pra lua... Não demorou pra que eu ligasse uma coisa à outra. Um lobisomem! Mas lobisomens não existem. Quero dizer, não que eu acreditasse nisso. Sempre soube que lobisomens eram criaturas fictícias, mas pelo visto há mais coisas estranhas no mundo do que eu podia imaginar.

Os olhos da criatura brilhavam intensamente e ele rosnou pra mim, abrindo sua bocarra cheia de dentes afiados. Fui tomada por um grande desespero e não conseguia sair do lugar. Fiquei paralisada, vendo a baba espessa cair da boca do bicho. Ele rosnou mais uma vez, ameaçando-me. Ele ia me atacar. Ia me atacar e me estraçalhar e ninguém viria em meu socorro.

Corri em disparada. O bicho veio atrás. A chuva aumentava cada vez mais e eu mal conseguia ver pra onde estava indo. Olhei pra trás rapidamente e vi que o lobisomem estava cada vez mais próximo. Não sabia o que fazer ou pra onde ir, apenas corri como se minha vida dependesse disso. E na verdade dependia.

Não havia alma viva naquelas ruas; ninguém que pudesse me ajudar ou pelo menos me fazer companhia na corrida. Rezava alto pedindo a Deus que fosse salva. Minha única salvação seria conseguir chegar até uma das avenidas principais, aí pegaria um táxi pra bem longe daquela coisa peluda e sanguinária.

A chuva despencou com mais força e clarões iluminavam os céus de quando em quando. Um raio caiu ali perto e todas as luzes se apagaram. Acabei por escorregar e caí de cara no chão. Agora, pensei, estava completamente perdida. Não sabia onde estava, não tinha nada, nenhuma arma com a qual pudesse me defender. Já até imaginava as manchetes dos jornais na manhã seguinte: Garota é encontrada morta em subúrbio de Seattle, Jovem é assassinada brutalmente, Mulher é morta por lobo...

Num surto de adrenalina, arranjei forças pra me levantar e comecei a correr desorientada. Podia ouvir a criatura se aproximando e sabia que aquele seria meu fim. De todas as mortes que eu imaginava, aquela era a mais cruel e dolorosa. Tudo o que ia restar de mim seria uma poça de sangue e umas poucas tripas espalhadas pela calçada. Do modo como vi os olhos da criatura brilharem, sabia que estava faminta.

Minhas pernas doíam e podia sentir sangue escorrendo por meu rosto. A queda tinha sido feia, mas fiquei feliz por constatar que meu nariz ainda estava inteiro. Não sabia se gritava, se chorava ou se apenas rezava mais alto. Será que Deus não estava escutando minhas preces? Sei que nunca fui muito religiosa, mas esperava que Ele fosse me ajudar naquela hora de necessidade. Por mais que eu fosse uma pecadora, achava que não merecia morrer daquele jeito. Um cadáver irreconhecível no meio da rua? Não, eu realmente não merecia aquilo. Sempre quis morrer de velhice, depois de uma vida plena e feliz. Imagino que é esta a morte que todos esperam. Mas no momento, não era bem uma escolha.

Corri o mais rápido que pude, com as mãos estendidas à minha frente para evitar que topasse com uma parede ou algo do tipo. Os raios não paravam de cair e a cada vez que vinha um trovão parecia que o céu ia desabar sobre minha cabeça. Pisei em falso e quase caí. O terreno estava desnivelado e percebi que tinha descido da calçada para a rua. A criatura ainda estava atrás de mim; podia escutar sua respiração descompassada, era quase capaz de sentir seu desejo obsessivo por meu sangue. Ele era mais rápido do que eu, não sabia como não tinha me alcançado ainda.

Tive a impressão de estar atravessando uma rua e foi quando vi os faróis do carro desgovernado vindo em minha direção. O veículo freou a centímetros de onde eu estava, por pouco não me atropelando. Um cara bonitão desceu do carro carregando uma arma e começou a atirar contra o lobisomem, que estava prestes a me atacar. Gritei e tapei os ouvidos pra me proteger do barulho dos tiros. O lobisomem apenas desviou das balas e fugiu.

– Droga! – o recém chegado praguejou.

Eu tremia toda encolhida e assustada, iluminada pelos faróis do carro. O estranho veio até mim.

– Você está bem? – perguntou. Tinha um sotaque irlandês e sua voz era rouca e sexy.

– S-sim. – respondi com a voz fraca - Aquilo... aquilo era um lobisomem?

– Era. Ele não te mordeu, mordeu?

– Não.

– Menos mal. – o homem foi na direção do carro, um Chevy Impala 67 de cor preta. – Entre!

Mesmo sem conhecer o homem e sabendo que não devia confiar em estranhos, achei que seria mais seguro se estivesse com ele do que sozinha numa rua escura e com um lobo à solta. E bem, o cara tinha acabado de me salvar. Respirava com dificuldade e tremia de frio e susto. Entrei no carro, sentando-me no banco do passageiro, e o homem deu a ré, virando para a direita em seguida.

– Fiquei o dia todo na trilha desse lobisomem – ele falou enquanto dirigia – Ainda bem que cheguei a tempo, ou você não teria muita chance.

Eu não sabia o que dizer. Queria perguntar o que ele era ou quem era, mas não tinha nem forças para falar. Passamos para uma rua iluminada, pelo visto o apagão não tinha sido geral. Mal vi o caminho que percorremos, tão trêmula e assustada que estava. Ele estacionou em frente a uma pequena igreja e desceu do carro.

– Fique aqui! – disse, apanhando a arma e dando a volta no carro.

– A-Aonde você vai? – perguntei, ao mesmo tempo em que abria a porta e descia para a calçada.

– Atrás do lobo, é claro. – o homem se afastava, com a arma na mão direita.

– Vai me deixar aqui sozinha? E se a coisa vier atrás de mim outra vez?

– Vá para a igreja, lobisomens não pisam em solo sagrado – ele sumiu no fim da rua e fiquei paralisada demais para fazer alguma coisa. Estava tão frio! Minhas roupas estavam coladas ao meu corpo e mal conseguia respirar.

Escutei um uivo não muito longe dali. Quem ouvisse iria achar que se tratava de um cachorro, mas tremi de medo ao pensar no lobisomem. A porta da igreja estava trancada, mas supus que estaria segura se sentasse na escadaria em frente. Ainda chovia, mas as gotas já não caíam com tanta força. Não me senti segura ficando ali sozinha, então acabei indo na mesma direção em que o homem fora. Virei numa esquina e o vi recostado contra uma caixa de correio. Ele recarregava a arma, atento a tudo o que acontecia. Virou-se para me olhar quando ouviu meus passos.

– Eu não mandei você ficar na igreja? – ele ergueu uma sobrancelha. Como assim mandou? Nós mal nos conhecemos e ele acha que manda em mim?

– Eu... eu não quero ficar lá sozinha, estou com medo... – estremeci quando um vento frio passou por nós.

– Sabe atirar?

– Quê? – franzi a testa. Que raios de pergunta! Óbvio que não sabia atirar - Não, claro que não.

– Não importa. Segure aqui – Ele me entregou a arma, um pequeno revólver preto. Então remexeu num dos bolsos do sobretudo que usava e tirou outro revólver igual ao primeiro. – Está carregado com balas de prata. Basta mirar e puxar o gatilho. Vamos!

Caminhamos em linha reta. Não fazia ideia de como o homem sabia pra onde ir, mas supus que tivesse muita experiência com essas coisas. Ele era meio estranho, na verdade. Parecia a mistura de um pirata com um roqueiro. Mas era bem bonito, não se podia negar. Estava inteiramente vestido de preto e seu sobretudo esvoaçava com o vento. Ele também tinha um brinco na orelha direita e podia jurar que usava delineador, mas não tive tempo de reparar bem nisso.

O lobisomem uivou de novo, dessa vez mais perto. Viramos mais uma esquina e passamos a seguir para a esquerda. Não queria ficar muito atrás do homem, por isso caminhava a uma distância segura, ao lado dele. Ele caminhava com postura ereta, decidido. Percebi que seus passos eram seguros e largos, ao contrário dos meus. Eu caminhava a passos trôpegos, sentindo dor por todo meu corpo.

Avistamos um borrão preto passar correndo na outra extremidade da rua e corri quando o homem correu. Alcançamos o fim da rua e o estranho parou na esquina. Escutou atentamente, depois se virou para mim.

– Fique atenta, ele é muito rápido...

Assenti, sem saber o que dizer. O homem parecia não se importar com a chuva, mas eu não agüentava mais aqueles pingos martelando meu rosto.

– Droga! Perdemos o bicho de vista!

O homem virou novamente à direita, indo na direção em que o lobisomem fora. Eu apenas o segui. Meus cabelos grudavam em meu rosto e pescoço, minhas pernas estavam bambas, meu corpo doía e minha boca sangrava pela queda de uns minutos atrás. Mas em todo caso, estava feliz por não ter quebrado nenhum dente. Hoje em dia garçonetes não se dão ao luxo de ter plano dentário.

O lindo, charmoso e misterioso desconhecido continuou caminhando a passos silenciosos. Ele me alertou, dizendo que não devíamos chamar a atenção do bicho. Bem, eu estava mesmo fazendo isso, caso ele não tivesse notado. Tentava caminhar sem fazer barulho e até prendia minha respiração de vez em quando, temendo que o bicho pudesse escutar à distância. Me perguntei o que aquele homem estaria fazendo atrás de um lobisomem. Talvez fosse caçador. Queria perguntar seu nome, mas não ousei falar.

Alguma coisa se movimentou do outro lado da rua, onde havia uma pequena praça. Houve um farfalhar nos arbustos e o homem se aproximou devagar, com a arma em riste e pronto para atirar contra a coisa. Fiquei onde estava, escondida sob o toldo de uma loja. Estava amedrontada demais para me aproximar, e, além disso, me senti segura ali. O homem mais uma vez praguejou quando descobriu que o que estava nos arbustos era um gato, que fugiu diante de sua aproximação.

– Nós o perdemos – foi tudo o que ele disse, em seu sotaque irlandês – Vamos, vou te levar pra casa.

Ah, isso era realmente legal da parte dele. Você pode me julgar, dizendo o quanto fui ingênua ao aceitar a carona de um desconhecido, mas era a única coisa que eu podia fazer. Estava molhada, e assustada, e congelando, então apenas o segui.

Retornamos pelo mesmo caminho. A chuva diminuíra, mas ainda havia raios e trovões. O homem caminhava apressado e eu praticamente corria para alcançá-lo. Ele atravessou uma rua e eu ia fazer o mesmo quando avistei o lobisomem há uns poucos metros dali. Me encarava com aqueles olhos terrivelmente assustadores. Tentei gritar para o homem, mas minha voz não saiu. Parecia um daqueles pesadelos horríveis, quando você quer agir e não consegue. Recuperei minhas forças quando o lobisomem correu em minha direção, pronto pra me estraçalhar com aqueles enormes dentes. Gritei aterrorizada e corri sem rumo, ao invés de atirar no bicho. Acabei me esquecendo de que estava armada, embora o revolver pesasse em minha mão. O homem, que já estava um tanto distante e não percebera que eu não o seguia, voltou-se quando gritei e correu com a arma erguida, pronto pra atirar contra a criatura.

Um carro veio deslizando pelo asfalto molhado e parou com uma freada quando atravessei na frente dele. Não tive tempo de parar e acabei rolando por cima do capô. O motorista desceu do carro, vindo até mim e perguntando se eu estava bem. É claro que não estava, como estaria? A última coisa que vi foi um borrão preto correndo e atirando contra o lobisomem. Desmaiei em seguida.

***

Eu abri os olhos. Estava deitada, talvez num sofá, e alguém se sentava ao meu lado. Assustada, agarrei a mão da pessoa quando ela fez menção de limpar os ferimentos em meu rosto.

– Ei, calma – ouvi a pessoa dizer e tentei focar seu rosto.

Era o homem misterioso que me salvara do lobisomem. Encarei seus olhos azuis tempestuosos e ele me encarou de volta. Desviou o olhar em seguida e apanhou uma gaze no kit de primeiros socorros sobre uma mesinha de centro. Vi que estava deitada num sofá preto de couro, provavelmente no apartamento do homem.

– Que aconteceu? – perguntei fracamente.

– Você foi atropelada. Sorte sua ainda estar inteira. – ele embebedou a gaze em um líquido que reconheci como água oxigenada e em seguida pressionou a gaze sobre o pequeno corte em minha têmpora. Gemi por causa da ardência e em seguida o homem colocou um curativo sobre o ferimento.

– Quem é você? – indaguei, curiosa por saber seu nome.

– Bem, onde estão minhas maneiras? Não fomos formalmente apresentados... Killian Jones... Acho que esta devia ser a hora em que você me agradece por ter salvado sua vida.

Pisquei. O homem parecia um tanto arrogante, até irônico. Estava mesmo muito grata por ele ter me salvado e cuidado de meus ferimentos, mas não achei que ele fosse ter a audácia de pedir pelo agradecimento.

– Hum, obrigada... por salvar minha vida – disse, da forma mais gentil que consegui. Então resolvi interpelá-lo, começando por perguntar se o lobisomem morrera – Aquela coisa... morreu?

Ele assentiu, ainda sentado na beira do sofá. Remexia nos acessórios de primeiros socorros, guardando tudo de volta na pequena maleta branca. Levantou-se em seguida, depositando a maleta sobre um dos armários metálicos acima da pia. Num primeiro momento, pensei que estávamos num pequeno apartamento. Não havia paredes separando a sala e a cozinha.

– E o motorista do carro? – perguntei. Imaginei que o homem teria ficado atordoado, após ter me atropelado e visto um maluco atirar contra um lobo enorme.

– Ele ficou preocupado quando você desmaiou, queria levá-la ao hospital, mas eu disse que a traria pra casa – respondeu Killian, encostando-se num dos balcões da cozinha – Quanto ao lobisomem, ele não vai abrir a boca. Sabe que não acreditariam nele.

– E quando acharem a coisa?

– Por que continua chamando a criatura de coisa? – ele perguntou, ao invés de responder minha pergunta. Dei de ombros.

– Vai responder ou não? – perguntei e ele sorriu levemente, virando-se e procurando algo nos armários metálicos.

– Dei sumiço no bicho. Em todo caso, ainda há dezenas de lobisomens por aí, aquele lá não era o único.

– Você caça lobisomens? – tentei me levantar, apoiando-me ao braço do sofá.

– E outras criaturas sobrenaturais. – ele assentiu.

– Sobrenaturais?

– Que não são naturais – ele se virou pra me olhar e explicou como se fosse óbvio - Lobisomens, vampiros, bruxas, poltergeists... criaturas estranhas que estão a solta pelo mundo. Meu trabalho é caçá-las e matá-las.

Fiquei muito séria enquanto absorvia essa informação e Killian, por alguma razão, achou que eu fosse duvidar do que ele dizia.

– Você é a primeira pessoa que não me chama de louco por causa disso. – ele disse - Quer dizer que acredita em mim?

– Eu quase fui morta por um lobisomem, é claro que acredito em você.

Ele riu e se virou para pegar uma chaleira. Imaginei que fosse preparar um chá, pois encheu a chaleira de água e a depositou no fogão.

– Você não me disse seu nome – lembrou.

– Ruby Lucas.

– É um prazer conhecê-la, senhorita Lucas.

Consegui me sentar e cheguei à conclusão de que não quebrara nada ao ser atropelada. Encontrei manchas arroxeadas pelo corpo, no entanto. E minha cara, pensei, não devia estar muito boa. Que pessoa normal conseguia se estabacar no chão duas vezes e ainda ser atropelada? Em todo caso, tinha sorte de estar viva, e devia isso a Killian Jones.

– Onde estamos? – me levantei, caminhando com dificuldade até a janela mais próxima. Lá embaixo avistei uma avenida muito iluminada. O tráfego de carros era tranqüilo àquela hora da noite. Devíamos estar no quarto ou quinto andar de um prédio, a julgar pela altura. Aquilo não era um apartamento no fim das contas, notei. Parecia ter sido um andar só de escritórios, mas agora estava ocupado com mobília, como numa casa.

– É um prédio abandonado – Killian respondeu, como se soubesse o que eu estava pensando – Eu o transformei num quartel general, um lugar em que pudesse organizar minhas caçadas.

Virei-me para olhá-lo. Ele não estava mais vestido de preto. Usava uma calça cinza de algodão e regata branca, que deixava à mostra seus braços musculosos e os pelos do peito. Seus cabelos muitos pretos ainda estavam úmidos e acabei por comprovar que estava certa, ele estava mesmo usando delineador. Peguei-me observando-o por uns instantes. Ele era bem bonito e atraente, devia fazer muito sucesso com as mulheres.

– Você deve estar com frio – ele apanhou um cobertor grosso e me envolveu com ele. Quando fez isso, vi que ele tinha uma tatuagem no antebraço direito: uma caveira usando tapa-olho e bandana, e dois ossos cruzados abaixo dela – Vou te arrumar roupas secas e amanhã te levo pra casa.

– Obrigada! – agradeci, desviando os olhos do homem.

Estava mesmo com frio. Minhas roupas estavam grudadas ao corpo, como uma segunda pele, e meus cabelos estavam úmidos e embaraçados. Killian me trouxe uma xícara de chá de camomila, que ele disse que me acalmaria. Ainda estava assustada pelo o que acontecera, mas fui me acalmando aos poucos. Agradeci Killian por sua gentileza e ele apenas sorriu, também bebendo chá.

– Mora aqui sozinho? – indaguei, apreciando o gosto doce da camomila. Ele assentiu.

– Mas não fico aqui por muito tempo. Saio por aí atrás de criaturas, vivo mais em hotéis de beira de estrada do que aqui. – ele me observou por uns instantes, depois se levantou e caminhou até um canto pouco iluminado, onde vi um elevador – Vou buscar roupas secas. Fique à vontade.

Observei enquanto ele entrava no elevador e a porta se fechava. Era um elevador antigo, assim como o prédio em que estávamos. Os elevadores de hoje possuem comandos digitais e são muito mais rápidos. Olhei em volta. Parecia do tipo de prédio que um dia abrigara escritórios. As janelas eram grandes e os vidros estavam muitos sujos, mas inteiros. Killian claramente transformara aquele andar numa casa.

A cozinha era bem grande, com armários de aço inoxidável. A geladeira era de um modelo antigo, talvez de duas décadas atrás, assim como o fogão. Havia uma mesa e bancos compridos, todos feitos de madeira. Também vi uma lava-louça e uma lavadora de roupas a um canto. Já a sala era formada por conjuntos de sofás e poltronas, cada um de um modelo e de cores diferentes. Tinha uma mesinha de centro e um tapete felpudo. Estantes lotadas de livros cobriam uma das paredes. Havia mesas de escritório e computadores de mesa antigos. Também notei alguns arquivos de aço. Havia uma porta fechada que imaginei ser um banheiro. O resto do andar estava ocupado por caixas fechadas e outras dezenas de cacarecos.

Killian voltou trazendo roupas femininas. Desculpou-se dizendo que talvez ficassem muito grandes pra mim, mas que era tudo o que ele tinha. Em seguida me indicou a porta fechada, dizendo que era o banheiro e que poderia tomar banho se quisesse, mas que a água era fria. Apenas troquei de roupa, já tinha tomado um bom banho de água fria e ainda me sentia gelada. Killian me dera um bonito vestido azul de algodão e um casaquinho branco de lã. Como previra, as roupas ficaram um tanto grandes, mas não me importei. A lã manteve o calor do meu corpo e eu finalmente parei de tremer de frio.

Agradeci a ele mais uma vez, por ser tão bondoso e gentil. E nós mal nos conhecíamos. Killian era misterioso e intrigante e quis saber mais sobre ele.

– Essas criaturas... por que as caça? – perguntei, sentada ao sofá. Ele depositava as xícaras sujas na lava-louça.

– É o meu trabalho – ele respondeu vagamente, depois mudou de assunto, como se não quisesse falar muito sobre isso – Você devia dormir um pouco, passou por muita coisa.

– É muita bondade sua, mas... não sei... eu mal te conheço...

Ele achou graça.

– Não sou um louco tarado, sabe? Se fosse, provavelmente já teria me aproveitado de você enquanto estava inconsciente. A não ser que queira sair nessa chuva, sugiro que vá se deitar. Há quartos lá em cima. Te levo pra casa amanhã.

A chuva recomeçara e agora atingia as janelas com força. Pensei um pouco. Não devia estar na casa de um desconhecido, mas esse desconhecido também salvara minha vida. Vovó devia estar preocupada e provavelmente acharia que eu estava morta se não fosse pra casa. Pedi pra usar o telefone e não me surpreendi nada quando vi que era de um modelo antigo, daqueles sem fio e com identificador de chamadas.

Ruby, onde é que você está? – a voz de vovó soou aflita e esganiçada – Sabe que horas são? E por que não atendeu seu telefone? Estou ligando há horas!

– Estou bem, vovó – disse. Perdera meu celular enquanto estava correndo do lobisomem e provavelmente não o acharia nunca mais – Meu celular está fora de área. Escuta, vou dormir na casa de uma amiga, por causa dessa chuva. Sim, sim vovó, vou ficar bem. Volto pra casa amanhã, está bem? Tchau!

– Não é legal mentir, sabia? – Killian comentou, com um sorriso divertido. Dei de ombros e entramos no elevador, que era realmente bem antigo. Killian apertou o botão do sexto andar e o elevador subiu devagar. Me senti tentada a perguntar por que tudo ali era tão antigo, mas não o fiz.

Saímos no andar que tinha sido transformado em quarto. Havia várias camas separadas em baias por biombos de plástico. Aquilo realmente devia ter sido um grande escritório antes. As lâmpadas eram muito simples e lançavam uma iluminação amarelada sobre as camas. Me perguntei por que haveria tantas camas, já que Killian dissera morar sozinho. Não cheguei a formular a pergunta, porque ele já entrava numa das baias e arrumava a cama.

– Espero que fique confortável – ele disse, ajeitando o travesseiro e colocando um cobertor grosso pra mim.

– Está ótimo! Nem sei como lhe agradecer...

Killian apenas sorriu e desceu pelo elevador, me deixando sozinha. Parecia loucura dormir ali, com um desconhecido que caçava criaturas sobrenaturais, mas me senti segura com ele. Me deitei, puxando o cobertor. Em questão de segundos já estava dormindo.

***

O sol adentrava pelas janelas, lançando sombras pelo quarto. Procurei por Killian, mas ele provavelmente já acordara. Desci para o quinto andar pelo elevador e encontrei o homem preparando o café da manhã.

– Bom dia – ele disse sem me olhar. Colocava pó de café na cafeteira e me convidou a sentar à mesa, perguntando se eu dormira bem.

– Muito bem, obrigada! – disse, ainda sem me sentar. Me aproximei, fazendo menção de ajudá-lo – Precisa de ajuda?

– Não, não, você é minha convidada, apenas sente-se. – respondeu gentilmente. Depois depositou frutas na mesa, além de ovos estrelados e bacon. – Eu teria preparado algo melhor, mas não tive tempo de sair pra fazer compras.

– Tudo bem...

– Então, em que bairro você mora? – ele serviu uma bela porção de ovos estrelados em meu prato.

– Ravenna.

– É um pouco distante daqui, estamos no centro da cidade.

Agora que o sol adentrava pelas janelas manchadas, pude ter uma visão melhor do andar em que estávamos. Era realmente enorme e cheio de janelas. Vi ferramentas jogadas a um canto e havia até uma serra elétrica. Havia muitas caixas fechadas, como se Killian tivesse acabado de se mudar. Notei rastros de algo branco na beirada das janelas e imaginei o que seria aquilo. Não queria parecer intrometida, mas acabei perguntando:

– O que é aquilo nas janelas?

– Sal.

– Pra quê?

– Proteção. Barra a entrada de espíritos – explicou ele, mordendo uma maçã.

Ficamos em silêncio por um tempo. Eu pensava em milhões de coisas e tinha milhões de perguntas. Temi incomodar Killian, caso perguntasse demais, mas não consegui me conter.

– O que fez com o lobisomem que matou?

– Dei sumiço nele, já não disse? – ele continuou comendo sua maçã.

– Como? Você o enterrou?

– É o que pretendo fazer. Na verdade o coloquei no porta-malas e...

– Aquela coisa está no porta-malas do seu carro? – me arrepiei toda, pensando que teria que me sentar naquele carro de novo, tendo um lobisomem morto no porta-malas.

– O que tem? – Killian arqueou a sobrancelha, parecendo divertido - Por que o chama de coisa? Aquela criatura também era humana, sabe?

Larguei o garfo que segurava, pondo as duas mãos na boca.

– Você matou uma pessoa?!

– Era isso ou ele matava a gente – o homem deu de ombros. Levantou-se e atirou os restos da maçã na lixeira.

– Mas... mas... ele tinha uma família! Talvez até filhos, uma esposa...

– Não há nada que possamos fazer – Killian me olhou – Foi mordido por outro lobisomem e amaldiçoado, condenado a se transformar em toda lua cheia e vagar por esta cidade, até voltar à forma humana. Acredite, fizemos um favor a este pobre coitado. Além disso, ele deve ter deixado um legado de outros lobisomens e um deles poderia ter sido você. Não ia querer isso, né?

Eu o encarava, completamente pasma. Ele apenas se sentou e pôs-se a comer ovos com bacon. Notei que ainda havia resquícios de delineador nos olhos dele. Sorri, aquilo realmente lhe dava um charme, mas nunca soube de nenhum homem que usasse aquele tipo de maquiagem.

– Por que usa delineador?

Ele me olhou, parecendo surpreso por eu ter reparado nisso. Mais surpreso ainda por ter perguntado uma coisa dessas. Sorriu e deu de ombros.

– Eu gosto, destaca meus olhos.

– E por que estava todo de preto, ontem à noite?

– Camuflagem. Basta que eu me esconda num canto pouco iluminado e ninguém me vê.

Resolvi ir mais longe.

– Você tem família?

– Não exatamente.

Ele parecia do tipo solitário. Killian era um tanto... excêntrico. Mas eu estava me sentindo atraída. Havia alguma coisa nele, algo que me fazia querer conhecê-lo melhor, descobrir seus segredos...

– E por que tudo aqui é tão antigo?

– Você é bem curiosa, não é? – ele disse, mas estava sorrindo. Poderia dizer que estava se divertindo com as perguntas, mas não tinha muita certeza – As coisas modernas gastam muita energia e além do mais, não vou ser escravo da tecnologia.

Assenti, concordando com ele. Hoje em dia as pessoas dependem demais da tecnologia. Já existem robôs que realizam serviços domésticos, mas não sou adepta do uso de máquinas como empregadas. Me arrisquei a fazer mais uma pergunta.

– Só mais uma coisa: se criaturas sobrenaturais existem, quer dizer que o bicho papão também é real?

Ele soltou uma gostosa gargalhada.

– Eu sabia que uma coisa dessas estava por vir. – disse. Depois depositou a louça suja na pia – O fato é que eu não sei, não faço ideia se existem bichos papões por aí. Mas eu diria que sim, são reais.

– Não vou dormir nunca mais...

Ele riu, dizendo que havia métodos de proteção e que me ensinaria alguns se eu quisesse. Sal, pelo o que entendi, barrava a entrada de fantasmas e espíritos, quando espalhado em portas e janelas. Sem falar nos dentes de alho e crucifixos, para se proteger contra vampiros. Água benta também era útil e Killian até me deu um pouco.

– O que estava fazendo sozinha na rua ontem à noite? – ele me perguntou. Era sua vez de me abordar com interrogações.

– Meu turno no trabalho acaba às dez e precisei voltar pra casa a pé, já que meu carro está no conserto.

– Hum. Me deixe adivinhar: trabalha numa loja de rock?

– Não. Mas de onde tirou isso? – eu ri. Ele provavelmente perguntara isso por causa das mechas vermelhas no meu cabelo. Vovó achou que eu estivesse revoltada com o mundo quando pintei o cabelo assim, mas na verdade é apenas meu estilo. – Diz isso por causa do meu cabelo?

– É. E por causa das unhas pretas – ele me observava, me analisando – Tá bem, não sei. Em que você trabalha?

– Sou garçonete – suspirei – Não é algo de que me orgulhe muito, mas no fim das contas é um emprego.

– Pelo menos é um emprego normal – ele comentou – Não gosta de ser garçonete?

– Não é um emprego ruim, mas é chato... quero dizer, não é muito legal andar pra lá e pra cá servindo pessoas. Teria escolhido outra coisa, se pudesse.

Ele ficou me olhando, parecendo pensativo. Coçou a barba por fazer e então soltou uma pergunta que eu não esperava:

– Sabe ler?

– É claro que eu sei ler! Mas que pergunta!

– E sabe navegar na internet? Tem experiência com computadores?

– Bom, eu sei digitar e montar planilhas. E sim, sei navegar na internet, quem não sabe?

– E sabe realizar serviços domésticos? Lavar roupas, limpar o chão, fazer comida...?

– Sei... Por quê? No que isso te interessa?

Estava achando tudo aquilo estranho, mas Killian parecia tramar algo. Ele pensou por uns segundos, depois disse:

– Talvez pudesse ser minha assistente.

– Assistente? – ergui as sobrancelhas, surpresa.

– É. Acho que está mais do que na hora de eu contratar alguém pra me ajudar.

– O que quer dizer? Quer que eu saia com você pra caçar? De jeito nenhum!

Eu jamais enfrentaria lobisomens de novo. E a ideia de sair por aí com uma arma... é, não apreciava isso nem um pouco.

– Não, não é nada disso... – Killian explicou - Achei que seria bom ter alguém pra me auxiliar nas caçadas, mas fazendo pesquisas na internet e consultando livros. E também preciso de alguém que cuide do prédio, você sabe, que faça a limpeza e organize o lugar...

– Quer me contratar como empregada? – fiquei indignada. Não conseguia ver como aquilo seria melhor do que ser garçonete.

– Assistente, como eu disse – ele me encarou com aqueles olhos azuis, o tempo todo falando calmamente. – E eu lhe pagaria o dobro do que ganha como garçonete, até o triplo. O que me diz? É pegar ou largar!

Fiquei pensativa, analisando a situação. É claro que sempre quisera ser mais do que uma simples garçonete, mas nunca tivera oportunidade de ir pra uma boa faculdade e também não era inteligente o bastante pra arrumar um emprego melhor. Mas aquele homem estava me oferecendo um emprego e pra ganhar o dobro do que eu ganhava como garçonete. Será que valeria à pena?

– Você poderia até morar no prédio se quisesse. – Killian continuou, tentando me convencer - Teria que manter tudo limpo e arrumado, além de organizar arquivos, mas nada que exigisse muito de você. Eu tive outra assistente, há muito tempo, e ando sentindo falta de alguém pra me ajudar.

– O que aconteceu com a outra?

– Ela se cansou do emprego e se demitiu. Em todo caso, acredito que você vai se dar bem. E então?

Desconfiei um pouco. Se o emprego fosse bom, talvez a outra não tivesse se demitido. Mas eu também pensei no dinheiro. E claro, poder morar num bairro mais agitado. Vovó tinha uma pensão num dos bairros familiares de Seattle. Eu gostava da tranqüilidade do lugar, mas também gostaria de viver num lugar mais movimentado.

– Eu não sei... Por que eu? – perguntei. Não era tão inteligente assim. Como seria capaz de ajudá-lo?

– Ora, porque você se saiu bem ontem à noite.

– Me saí bem? – arqueei as sobrancelhas – Como é que ser atropelada é se sair bem?

Ele riu.

– Me pareceu muito corajosa quando fomos atrás do lobisomem. Qualquer pessoa ajuizada teria permanecido na igreja, mas você não. E não é fácil encontrar pessoas que acreditem na existência de monstros, eu poderia demorar meses até encontrar alguém que quisesse o trabalho. E então, o que me diz?

– Tudo bem – disse depois de um tempo, após pensar calmamente – Mas vai ter que me pagar muito bem, incluindo as gorjetas que eu costumo ganhar como garçonete.

– Fechado! – Killian abriu um sorriso e trocamos um aperto de mão.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Mereço comentários? Deleto a fic? Beijos e até a próxima (se tiver próxima) rsrs